Homem de duas vocações, desde a adolescência viu despertar o impulso criativo ao mesmo tempo que sentiu, no calor dos grandes acontecimentos que marcaram as primeiras décadas do século XX, o chamamento e o imperativo da luta política e revolucionária. Durante toda a sua vida, Volodia Teitelboim conviveu com a "tensão" entre as duas vocações, para ele plenamente compatíveis, salvo as evidentes dificuldades de tempo.

Durante cinco décadas Volodia Teitelboim foi membro da Comissão Política do Comitê Central do Partido Comunista do Chile, ocupando o cargo máximo de secretário geral no final dos anos 80 e durante a primeira metade da década de 90. Hoje, ainda membro do Comitê Central do Partido, recém-eleito no XVI Congresso realizado em outubro do ano passado, dedica-se prioritariamente à literatura.

Seu batismo de fogo no jornalismo foi a reportagem esportiva em jornal de grande circulação. Depois dedicou-se por inteiro à imprensa revolucionária, sendo um dos fundadores do jornal El Siglo, até hoje o órgão central do Partido Comunista Chileno. Participou também, como editor e redator de revistas teóricas e culturais. De sua obra literária, destacamos Filhos do salitre, romance popular com várias reedições no Chile e no exterior (em Cuba chegou a ser adaptado como novela de rádio nos anos 60), A semente na areia, tendo por cenário o campo de concentração de Pisagua, A guerra interna, acerca do tenebroso fascismo chileno da Junta Militar dirigida por Pinochet, e a obra biográfica memorialística sobre os grandes poetas chilenos deste século, Pablo Neruda, Gabriela Mistral, Vicente Huidobro, e ainda Os dois Borges, em que analisa a vida e a obra do escritor argentino Jorge Luís Borges.

Foi entre as sessões do Congresso, por coincidência precisamente no dia em que o ex-ditador Pinochet era preso em Londres, que Volodia Teitelboim nos concedeu a honra do encontro e da entrevista. No decorrer de uma amena conversação de mais de duas horas, o dirigente político e escritor fez profundas reflexões sobre a história do século XX, a atual crise da civilização na época do neoliberalismo, a cultura, o papel da intelectualidade, entre outros temas palpitantes. Com serenidade, apresenta argumentos que sabe serem polêmicos no âmbito do movimento comunista, mas que têm o mérito de manter aberto um necessário debate. (JRC) JCR – O senhor está escrevendo um livro de memórias intitulado Um moço do século XX de memória pessoal e de grandes fatos históricos do Chile e do mundo. Sua intenção é transmitir uma mensagem de esperança, ao posicionar-se desde a perspectiva de alguém que ultrapassa os 80 anos sentindo-se jovem?

Volodia Teitelboim – Sim, exatamente. O calendário é inexorável. As pessoas têm uma idade do ponto de vista físico, mas eu me sinto jovem, levando em conta a minha paixão pela vida, meu contato com a realidade e também meu afã de participar como se fosse jovem.

Um homem que tem mais de 80 anos viveu quase todo o século, com as mais distintas etapas, viu diversos ciclos históricos, conheceu quase todas as provas que seu país experimentou e, de certa maneira, o Continente. Portanto, é uma pessoa que viveu também de alguma maneira o impacto da maior crise do sistema, que foi a de 1929 a 1933, derivada da quebra da bolsa de Nova York, que produziu a ruína de todos os países, entre outros motivos, por se tratarem de economias dependentes que não tinham como escapar das sinalizações que vinham da metrópole – os Estados Unidos.
N a minha adolescência, minha primeira juventude, vi desmoronar esse sistema. Era uma época em que a esperança e o sonho da revolução tinham muita urgência, porque fazia 13 ou 14 anos que a Revolução bolchevique triunfara. Foi um grande momento em que grandes setores da humanidade, sobretudo os intelectuais e os operários confiavam na possibilidade de uma mudança social muito profunda.

Era uma época de muita miséria, de doenças provocadas pela pobreza, como o tifo, e de falências dos estados. Com exceção da nascente União Soviética, todos os outros países estavam em declínio, o que exerceu uma enorme influência sobre os intelectuais do mundo Ocidental. Os mais importantes tomaram-se comunistas, porque viam no comunismo a nova sociedade que poderia livrá-los da crise e também devolver sua reputação e tirá-los da alienação.

Eu era um garoto que começava a enfrentar a vida e me sentia envolvido por essa grande onda de esperança. Se estou falando de um moço do século XX é porque há muitos moços do século XX, não só no Chile, como em todo o mundo. São jovens do século XX, que assistiram a esse grande desmoronamento, e que concebiam também uma esperança alternativa, o socialismo.
JRC – Hoje se observa um grande contraste entre o ambiente do início dos anos noventa e a situação de crise profunda em todo o mundo capitalista.

Volodia Teitelboim – Exatamente. É um tempo de desesperança, que invadiu muita gente progressista. O desalento da década de 90 se reverte com certa lentidão, gradualmente e sob diferentes formas. Mas, pelo menos aqui no Chile, é muito patente na juventude, porque, com a ditadura militar, foi uma cobaia, no sentido do que disse o ditador Pinochet: as pessoas que têm mais de quarenta anos estão perdidas do ponto de vista da mentalidade, porque foram apodrecidas pelo marxismo-leninismo, para usar seu linguajar. Então, devemos nos fixar nas crianças e nos adolescentes, porque ainda têm a mente limpa, são um campo virgem e podemos incutir-lhes nossa doutrina, o fascismo.

Nomearam militares que nunca haviam passado por uma universidade como reitores e expulsaram a maior parte dos catedráticos, os docentes mais destacados. Expulsaram 20.000 estudantes, cortaram carreiras inteiras e controlaram também a educação média e primária para formar o homem fascista.
Essa juventude não se tomou fascista em virtude da realidade que estava vivendo, mas aboliu da memória a história de seus pais e de seus avós e se alguma vez se referiam a ela era para culpar seus antepassados, que acreditavam na liberdade, na democracia, na participação, nos direitos do povo, no humanismo, o que era pernicioso. Então, essa juventude foi criada numa espécie de vazio, e durante muito tempo se disse no Chile, e em muitas partes do mundo, que a juventude não tinha ideais e que queria viver somente o dia presente uma coisa muito peculiar dos tempos de decadência.

Mas, nos últimos quatro ou cinco anos, começou a se produzir no Chile, de maneira muito veloz, um despertar da juventude, que se revela no fato de que em nosso país todas as federações de estudantes universitários estão dirigidas pela esquerda, com lideranças eleitas democraticamente através do voto. Uma grande maioria dessa esquerda é comunista, e algo muito particular e esperançoso é que muitas dessas agremiações são dirigi das não só por rapazes, mas por mulheres, o que revela um duplo despertar.

JCR – Seria por este despertar da esperança que o senhor se dedica tanto ao memorialismo, tanto do ponto de vista das grandes figuras literárias de seu país, como Pablo Neruda, Gabriela Mistral, Vicente Huidobro e também à memorialística política, propriamente dita ? Que papel isso pode desempenhar na formação dessa consciência para despertar a esperança?

Volodia Teitelboim – O resgate da memória é tarefa importante, ante a imposição da antimemória, da amnésia programada como sistema de governo e também de classe. Que dizem Pinochet e seu grupo? "Não se deve olhar para o passado, nem recordar, deve-se olhar só para o futuro". Eles, que são os representantes das trevas, do passado mais tenebroso, do ponto de vista propagandístico descrevem-se como partidários do futuro e dizem que se deve olhar para o futuro. E por que querem olhar somente para o futuro? E a que futuro querem olhar? Não conseguem olhar para o passado porque o passado os condena, porque têm as contas pendentes dos horrores praticados, pelos desaparecidos, pelas violações aos direitos humanos. Mas achamos que se deve relembrar, como condição necessária para que o drama, a hecatombe não se repita.

Se não houver memória dos crimes cometidos, as pessoas não criarão uma autodefesa psicológica para evitá-los quando o perigo se apresentar e se repetir. O animal está em sua toca preparando o bote. Creio que é absolutamente indispensável que as pessoas, a opinião pública, vão fundo na busca da verdade e da justiça a re peito do que se passou, como uma espécie de antídoto que previna a repetição de e dramas espantosos.

Nós temos a tarefa essencial, como um dever social, de denunciar, tarefa que deve abranger milhares de pessoas, inclusive as pessoas simples, todos aqueles que sofreram na própria carne, em sua família, o drama dos crimes.

Se esses senhores voltarem a repetir aquilo, merecerão a condenação do mundo. E não haverá impunidade eternamente. Pode haver aqui no Chile, temporariamente, um senador vitalício que recebe honras, mas que não se pode mover do país. A punição a Pinochet pode ser um aporte da justiça, além de ter um fundo solidário. Há uma certa consciência mundial, que se está estendendo, de que os crimes contra a humanidade não têm fronteira e não prescrevem com o tempo.

Meu trabalho concentra-se no momento no campo da cultura. Escrevi memórias e biografias sobre Neruda, Gabriela Mistral, Borges e Huidobro. Este trabalho, do ponto de vista da análise literária, deve ser rigoroso, deve ter muita exatidão, não para repetir as imagens conhecidas, mas para completar as fisionomias e os significados desses autores e não simplesmente a respeito de si mesmos, de sua própria poesia, mas também como representantes dos grandes sonhos de seus povos. Neruda, além de ter sido o maior poeta do amor, do canto da natureza, das coisas do mundo e dos objetos, foi também, como disse a academia sueca, o poeta de todo o mundo violentado, do mundo latinoamericano, do mundo dos esquecidos, dos golpeados. Portanto, é muito importante que sua obra seja um patrimônio das pessoas e não só um patrimônio do leitor de poesia, mas do povo, porque afinal ele falou ao povo, foi o advogado dos povos, foi o poeta do povo, pois há uma tendência para estigmatizar Neruda como unicamente o poeta do amor, sem considerar o resto.

Gabriela Mistral também teve o grande sonho de um país onde os trabalhadores, os camponeses, as mulheres, a juventude, os professores, os estudantes sejam respeitados e ela mesma disse que nenhuma dessas categorias podia esperar nada da onda militar, por ser a negação do pensamento livre.

O que sei é que são esforços para a recuperação da memória, que vêm por muitas vertentes, porque há uma luta entre a desmemória e a memória. A desmemória tem, por sua vez, o reforço do grande controle, quase um monopólio, dos meios de comunicação e atua também de forma subliminar, não só apagando ou silenciando o que se passou, mas também propondo um mundo de fantasia, que é o mundo global, que a televisão transmite todos os dias, pelos cinco continentes, o mundo da ficção.

JCR – Em sua obra, o senhor fala também sobre "os dois Borges". Sinteticamente, o que esse enfoque significa?

Volodia Teitelboim – Este é um desafio que impus a mim mesmo, porque Borges, para a opinião da esquerda, representava o homem que negava a realidade e, além disso, apoiou as ditaduras militares, como fez na Argentina com Videla e no Chile com Pinochet. Eu, que sou uma pessoa de esquerda, um comunista, leitor de Borges, conhecedor também de todas as suas posições políticas, sinto a necessidade de dissipar incógnitas, de aprofundar a questão: por que um homem, que é um escritor eminente, pode cometer no plano civil aberrações tais como apoiar as ditaduras militares, até mesmo fazendo elogios a Pinochet e aceitando sua condecoração? Por que? O que há por trás disso? O que levou a isso?

Tratemos de examinar, evitando o maniqueísmo. É preciso terminar com o simplismo e entrar na dialética de Borges que, durante a I Guerra Mundial, muito jovem apoiou a Revolução Russa, inclusive criando hinos, os "hinos vermelhos" e depois mudou. Por que mudou?
É necessário mergulhar nas distintas dimensões de Borges, no funcionamento de seu mecanismo mental. A vida explica Borges. Ele nasceu condenado à cegueira. Sua mãe, portanto, tinha de protegê-lo, não o deixando sair à rua. Ele foi criado num jardim com grades. Temeroso do mundo, ele se refugia em sua biblioteca.

Borges nega a realidade, mas como tem de ocupar esse vazio, vai construir uma nova realidade, que é uma realidade fictícia, a realidade da fantasia literária. Criou uma literatura que escapa da realidade, foge e vai pegar temas que têm três mil anos, a civilização babilônica, assíria etc, ou fugir do próprio espaço, que não será Buenos Aires, mas a cultura nórdica. E o faz brilhantemente. Criou um mundo paralelo, porém este mundo paralelo, de qualquer maneira, está determinado, ainda que não seja uma operação simples, mas um logaritmo complicado, de vários graus. No fundo, o que está por trás de tudo é uma realidade antiga, da qual não se pode escapar, assim como não se pode escapar das lutas dos homens, das sociedades diferenciadas. E, finalmente, ele tem de fazer um "mea culpa". Infelizmente, a realidade existe, e, disse ele textualmente, "infelizmente, eu sou Borges".

Então fez um "mea culpa", disse que se equivocou, que não sabia de nada, que era inocente. Foi terrível, porque no fundo ele era um homem solitário, um humanista que procurou escapar da realidade que desconhecia e que, para ele, simplesmente não existia. Naturalmente, existia e estava esmagando o país e centenas de milhares de compatriotas seus e também no Chile.
Esse é um grande propósito que tenho: remover o maniqueísmo que possa afetar nossas fileiras. É um convite à análise completa, objetiva, de todos os pontos de vista, dos diferentes fenômenos – político, social, econômico, também cultural, literário e pessoal.

JCR – Como disse no começo da entrevista, os intelectuais se aproximaram dos comunistas no início do século. Depois houve um afastamento. O senhor acha que é possível romper esse sectarismo, esse maniqueísmo, para que se possa, uma vez mais, aproximar o comunismo da inteligência? E que seu trabalho segue nessa direção? E que, portanto, seria o desafio dos Partidos Comunistas fazer isso?

Volodia Teitelboim – Creio que sim. Este é um grande desafio, pois os Partidos Comunistas têm de mudar. Têm de ser mais marxistas, mais dialéticos. A queda da União Soviética e dos governos socialistas do Leste europeu foi uma tragédia. Mas pode representar uma libertação muito importante se acabar definitivamente o estigma que nos impingiram de que nada tínhamos de chilenos, de brasileiros, porque estávamos a serviço de uma ideologia internacional. Isso em termos era verdade, porque também existiam traços de absurdo seguidismo, possivelmente quanto a apoiar todas as atitudes internacionais da União Soviética que eram motivadas por razões de Estado, coisas que às vezes apoiávamos com dor no coração. Isto acabou.

Agora deve-se pensar com a própria cabeça, andar com os próprios pés e dar importância ao seu país, sem perder o sentido de que seu país faz parte do mundo e portanto o internacionalismo existe, mas sem deixar de fazer um exame mais profundo da realidade e, sobretudo, de envolver-se com o povo e dar respostas profundas; e também reivindicar uma palavra que ao mundo e ao vocabulário comunista não foi proibida, mas esteve como que calada: a palavra inteligência e a palavra cultura.

JCR – Agora mesmo um comunista acabou de ganhar o prêmio Nobel de literatura.

Volodia Teitelboim – Exatamente, essa é uma demonstração de que o comunismo, o socialismo, a revolução, têm um poder de atração muito forte sobre todas as inteligências honestas, porque outro grande problema também é o problema da sedução que exerce o sistema sobre o intelectual. Estou falando do intelectual a quem o sistema oferece uma participação, que responde à sua ânsia por cargos, que será recompensado. Então em troca de apoio ou de silêncio, abandonam seus princípios e abrem mão para sempre da esperança de mudanças. O que, por outro lado, é a história dos grandes renegados.

JCR – o senhor crê, nesse sentido, que nestes tempos de revolução tecnológica e também de irracionalismo filosófico, de pragmatismo, de individualismo exacerbado, consumismo, é possível demonstrar com inteligência a vigência dos princípios do humanismo socialista e dos fundamentos do marxismo, de maneira integral?

Volodia Teitelboim – Eu creio que sim. E é muito importante proceder a uma leitura contemporânea do marxismo, não para dizer que Marx estava errado, mas para selecionar em Marx essa verdade fundamental que mantém sua inteira vigência. Quando fazemos a análise da anatomia do capitalismo, seu funcionamento, a mais-valia, a alienação, é para sermos capazes de traduzi-la para a linguagem de cada país, de cada povo e de cada pessoa; e aplicá-la como verdades aplicáveis à vida concreta e real e que explicam problemas distintos. Isso é um desafio também para o aprofundamento, para o desenvolvimento das culturas revolucionárias, que serão sempre culturas universais, abertas. Mas, a recuperação de Marx é absolutamente indispensável e já está começando no mundo. Porque agora, é claro, temos a revolução tecnológica, temos tantas mudanças e tantas invenções que, sem dúvida, no fundo é Marx quem está por trás disso tudo, enquanto explicação. Porque o neoliberalismo é, de maneira complicada, simples ou descaradamente uma forma de capitalismo nestes tempos. E este capitalismo não escapa à análise marxista. E escondem esta análise, que não é ensinada nas universidades e alguns tratam de criticá-la, sob o argumento de que são idéias obsoletas, que o marxismo já está acabado, uma vez que a União Soviética não funcionou. Mas a União Soviética não funcionou precisamente porque não levou em conta os ensinamentos de Marx.

JCR – Seria este o principal papel atual do intelectual comunista e de esquerda, em face da luta contra o neoliberalismo, o de fazer esse resgate, essa análise, essa explicação atualizada dos fenômenos do mundo?

Volodia Teitelboim – Eu creio que sim. E não somente uma explicação mas também fazer uma proposta. Creio que assim como o começo do século XX, na época da I Guerra Mundial e depois da vitória da Revolução Russa, foram tempos revolucionários, é possível que também o século XXI, que será de grandes contradições e de grandes lutas e com grandes perigos, conheça uma nova onda de vigência do socialismo. E que também se produza um reencontro do marxismo, que pode ter nomes muito diversos em distintos países e que pode vir de correntes distintas, não somente do Partido Comunista, porque agora estão surgindo muitos movimentos, inclusive à margem dos partidos, mas são movimentos sociais de base que correspondem a necessidades setoriais, como os movimentos ecológicos, movimentos de mulheres, juvenis, dos sem-terra, movimentos sindicais, operários que surgem também do profundo descontentamento e da sensação de infelicidade das camadas médias.
Creio que os marxistas têm de entender que a classe média está composta de trabalhadores, intelectuais, pessoal administrativo. Então não é o caso de alguns pequenos setores do proletariado industrial terem de assumir essa condição privilegiada de representar a revolução, porque isso é sectário, limita enormemente. É necessário estudar a composição social do país.

JCR – E nesse sentido poderia ser um ponto de partida constatar que se refuta a idéia do fim da história e que a idéia de uma nova transformação está nascendo.

Volodia Teitelboim – Na verdade o fim da história, como o fim do mundo, o fim do homem é um total absurdo. É uma pilhéria, uma pequena astúcia da propaganda para transmitir a idéia de que tudo será igual eternamente e que nunca haverá mudança alguma. E eles mesmos dizem, o próprio Fukuyama, que o mundo futuro será muito entediante, muito aborrecido, porque não acontecerá nada importante. Isto é completamente absurdo. A história não se repete, de maneira idêntica nunca, e deve ser levado em conta também o que aconteceu e por que aconteceu, por que houve a queda da União Soviética. É necessário enfrentar os erros com toda a franqueza, com toda a valentia, com toda a coragem, desnudando também toda a autocrítica. A autocrítica com nosso próprio partido. A Internacional desempenhou um papel num momento determinado, mas um papel que estava determinado também pela idéia da revolução mundial. E então privilegiou-se o fator internacional, assim chamado, que era o fator externo sobre o fator interno, de responsabilidade de cada partido. Portanto, o problema da consciência é muito importante, o problema de um enriquecimento da consciência do comunista. Creio que o comunista continua sendo o tipo de homem mais nobre do século XX, para não falar de outro século, porque é um homem que entrega sua vida à causa da humanidade. Entretanto, foi mal compreendido, desfigurado, e ele próprio, em muitos casos, se enclausurou em três ou quatro preconceitos e, ao se ver isolado, recaiu na lógica fatal da seita dizendo: "somos poucos mas somos os bons, somos os justos, não importa que o mundo caminhe em direção oposta; não tem importância alguma, porque somos os justos". Isto é errado, porque a seita não mudará o mundo.
Não basta trabalhar com uns poucos.
Deve-se trabalhar com milhões, deve-se trabalhar com a maioria e ganhar a maioria, porque finalmente este movimento, este mundo comunista, tem de ser um mundo democrático e libertário porque o comunismo é o reino da liberdade, no qual inclusive os estados desaparecem e toda a força de coação é eliminada. Não podemos esquecer isso e teremos de fazer com que as pessoas saibam o que é o comunismo.
O comunismo não é feito de tipos que andam com uma faca entre os dentes para assaltar e tomar todas as propriedades, matando as pessoas, não são os gulag, nem os campos de concentração, o stalinismo, etc. Não. O comunismo é, essencialmente, a busca da felicidade humana e para todos não para alguns poucos, como é a característica atual.

JCR – o senhor falou em dissipar as incógnitas e também sobre três ou quatro verdades absolutas em relação às quais os comunistas se aferraram. Um dos problemas que se observaram, sobretudo na produção artístico-cultural do chamado realismo socialista, foi a intenção de criar uma cultura à margem da história e do patrimônio cultural da humanidade. Ao lado disso, foram evidentes os conflitos relacionados com a liberdade individual do criador. Como intelectual orgânico 'que é, comunista, que opinião tem a esse respeito?

Volodia Teitelboim – A criação cultural não está determinada, não está, digamos, monopolizada por uma classe. A sociedade de classes fatalmente determina que a classe que controla os meios de produção, que controla politicamente a sociedade, necessita, para isso, de controlar a mentalidade das pessoas e de desenvolver uma cultura e valores que sejam aceitos pelo senso comum da sociedade, e para isso trabalham com a fábrica de criação de opiniões que está em toda a parte do mundo. Eles as têm nas mãos: são as escolas, as universidades, os jornais, as rádios, a televisão e também as religiões.
As culturas podem ter origens bem distintas, mas devem ser buscados os denominadores comuns. As culturas são sempre contraditórias, porque há culturas e subculturas ou anticulturas. A cultura é sempre um campo de batalha entre posições diferentes. Creio que os comunistas não podem querer um monopólio e ninguém pode pretender um monopólio. Deve se procurar um denominador comum para certas coisas em certas fases porque o mundo e a sociedade se desenvolvem e, também, a luta se desenvolve através de etapas. Então, é preciso saber unir, num determinado momento, em tomo de um princípio fundamental, que mova toda a história e todos aqueles que estejam de acordo. Ou seja, o comunismo e a cultura comunista têm de ser esse grande fator.
O realismo socialista foi, a meu juízo, uma subordinação torpe do mundo da cultura e da literatura em particular, e da arte. Houve interesses estatais de um momento determinado que ganharam muita força com o stalinismo. Ou seja, tudo passou a ser instrumento de uma determinada finalidade estatal e política. Estou falando do Estado em termos amplos, pois, na verdade, podem ser interesses de um grupo que monopoliza o Estado.
Naturalmente, havia no socialismo talentos genuínos naturais que podiam escrever grandes obras literárias e criar grandes obras artísticas, mas a própria doutrina do realismo socialista era absurda. Acho que não devemos atrelar-nos a nenhuma escola literária ou artística. O princípio é a liberdade, a liberdade do criador e se esse criador for comunista, se tiver consciência revolucionária, isto se refletirá em sua obra e esta terá validade e sua mensagem será escutada se tiver categoria artística, mas o princípio será a liberdade e ninguém pode determinar a maneira de pintar ou escrever.
Acho que para que os partidos comunistas cumpram seu dever, devem assumir a tarefa, não só de estudar politicamente ou analisar os textos de Marx, mas de ter nos seus organismos pessoas que entendam de literatura, de arte, como de economia, ciência, e respeitar suas opiniões.
Além disso, devemos realizar uma revolução na linguagem. Temos de acabar com a linguagem simplista. Temos de usar a linguagem da vida. Não usar a linguagem erudita, só para eruditos, porque o povo não a entende. Falar na linguagem do povo, dirigindo-nos também ao coração e aos sentimentos, não apenas ao intelecto, e entender o mundo contemporâneo.
É necessário recuperar os valores criados pelo povo, do ponto de vista artístico, da música, dança; conhecer a idiossincrasia, a psicologia dos povos e respeitá-los, sem impor coisas estranhas ou estabelecer tabus, o moralismo estreito, próprio do absolutismo, da autocracia, da ânsia de dirigir tudo de cima, até mesmo os sentimentos.
No Partido Comunista sempre houve dois elementos coexistentes: a amplitude e a estreiteza do incorrupto, daquele que está à margem da vida e quer que todos os comunistas sejam iguais a ele no seu modo de pensar. No fundo, no Partido Comunista pode haver um pequeno inquisidor bem intencionado que manipula os demais companheiros. É aí que se incuba o elemento da traição. Há também aqueles que estão encerrados nas suas idéias e por isso acham que estão com a razão.
Para mim, isso é falso. A vida é sair nas ruas, encontrar a vida, estabelecer alianças, gerar maiorias, porque o Partido não pode abandonar a idéia do poder e de chegar ao governo, para realizar mudanças e dirigi-las. Mas isso nunca pode ser feito por apenas um partido, nem sequer na Rússia e em nenhum país do mundo. Os comunistas sozinhos não se bastam. Precisam de uma grande aliança que abranja a todos os progressistas e ao povo que está sofrendo, mesmo que pensem de forma diferente.

JCR – Para finalizar, gostaria de indagar sobre seus projetos literários atuais, suas metas, seus prazos, e franquear-lhe a palavra para algo que queira acrescentar.

Volodia Teitelboim – Tenho muitos projetos literário, mais do que poderei realizar. É natural. Durante minha longa vida de comunista – 6S anos ou mais de comunista -, a distribuição do tempo entre minhas duas vocações paralelas congruentes, correspondentes a um único homem, com a mesma mentalidade, foi muito desigual, porque o trabalho político consumiu a maior parte do meu tempo. Foi assim por causa da minha consciência. Um comunista não pode diluir as tarefas a que se propõe e as que surgem.
Nos últimos anos, estou me dedicando mais à literatura, sem descuidar da política. O Partido compreende isto. Quando deixei a secretaria geral do Partido, disse aos meus companheiros que continuaria trabalhando, que, se eleito em Congresso permaneceria no Comitê Central, com muita honra, mas não iria ser um ativista político como fora durante 60 anos. Agora seria um ativista literário. A causa é a mesma e só se distingue pelos meios e pela linguagem. Acho que o Partido sabe disso. Não estou falando em causa própria, mas em nome de todos aqueles que realizam tarefas que não são as específicas do mecanismo do Partido em qualquer espaço, profissão, ciência, arte. O Partido e sobretudo a direção compreenderam isto muito bem.
Converti-me numa espécie de "ancião da tribo" no Chile e são intermináveis os pedidos para realizar conferências, ir a províncias, reuniões, escrever prefácios, lançar livros. Se tivesse de ceder a todos esses pedidos – e sinceramente cedi muito -, não poderia mais escrever. Agora estou numa fase em que quero me concentrar, terminar o segundo volume das memórias, além de outros livros. Porque depois de ser escritor que nenhuma editora do Chile queria publicar, pelo peso da ditadura, tenho agora muitos pedidos de editoras para publicar livros meus, e quero aproveitar a oportunidade para publicar não somente os livros antigos. Quero terminar este ciclo, digamos, autobiográfico, embora não o chame assim. O título geral da obra é Antes que eu esqueça. É uma tarefa, uma pressão sobre mim mesmo antes que eu me esqueça e antes que morra – porque depois já não se pode escrever nada.
Esta é uma época feliz da minha vida, a esta altura, porque ainda me sinto com capacidade de realização, de trabalho e estou certo de que não trabalhei em vão, mesmo que não tenha visto os frutos de minha meta. Não tenho nenhuma dúvida quanto a isso neste ambiente do Congresso, presidido por jovens.
Quero dizer-lhe mais uma coisa. Sinto quase como uma desgraça o sistema cultural, digamos, do mundo feudal que é a América Latina, onde a metade da América do Sul, o Brasil, tem uma relação cultural muito pobre com o Chile, assim como com os demais países do Continente. É um verdadeiro escândalo o desconhecimento que existe no Chile em relação à cultura brasileira. Possivelmente, no Brasil ocorra o mesmo, com exceção de Neruda, Gabrieia Mistral e de alguns outros. É preciso declarar simplesmente que a cultura não tem fronteiras. A começar por nós.
O fato de Saramago, um escritor da língua portuguesa, ter ganho merecidamente o Nobel de Literatura, é também um reconhecimento dos valores culturais da língua. Só lamento que o Brasil, com toda a sua magnitude, sua cultura, sua história, não tenha um prêmio Nobel, o que parece uma discriminação inaceitável.
O nosso Partido chileno tem uma história interessante, mas em geral os movimentos políticos são anticulturais, usam a cultura como uma espécie de flor de estufa ornamental, mas sem substância, como o problema sindical, campesino, político, eleitoral. Acho que se deva incorporar a cultura E nisso também os intelectuais têm algo a acrescentar, assim como os estudantes, ao Partido, à direção.
Acredito que no terceiro milênio, não sei se no século XXI, haverá uma América Latina confederada, única, na qual cada país terá a sua identidade, sua autonomia e juntos constituirão uma enorme associação de estados, de povos. Se for assim, contaremos muito no mundo. ~

* José Reinaldo de Carvalho é membro do Conselho Editorial de Princípios.

EDIÇÃO 52, FEV/MAR/ABR, 1999, PÁGINAS 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61