Agressão dos EUA-Otan à Iugoslávia é ameaça aos povos
Desde 24 de março, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) – aliança militar de caráter agressivo comandada pelo imperialismo norte-americano e integrada, além dos EUA, por 17 países europeus e pelo Canadá – está realizando diuturnamente sistemáticos bombardeios aéreos sobre o território da Iugoslávia. A colossal força militar mobilizada, que inclui os mais modernos meios de aviação e as mais sofisticadas armas de destruição, atacou a capital iugoslava, Belgrado, além de Pristina, principal cidade da Província de Kosovo e outras cidades. Os ataques já provocaram danos irreparáveis: milhares de vidas humanas, milhares de pessoas feridas e mutiladas e a devastação da infra-estrutura básica do país. Com a ferocidade própria do antigo Império Romano e o espírito belicoso e expansionista do Reich alemão, o atual império agressor, nova espécie de fascismo, anuncia a delenda Cartago de nossa época: “a Iugoslávia tem de ser destruída”!
Importantes obras, como centrais elétricas, centrais de aquecimento, refinarias de petróleo e complexos industriais em Belgrado e outros importantes centros foram destruídos, assim como foi totalmente aniquilada a indústria petroquímica. Os bombardeios da Otan destruíram as principais rodovias, aeroportos, ferrovias e pontes do país. Também foram atingidos hospitais, escolas, creches, monumentos, sítios arqueológicos, mosteiros, igrejas e cemitérios. Mais de dez estações de rádio e televisão, mais de vinte repetidoras de TV foram atacadas, além da TV estatal sérvia que os trabalhadores conseguiram recolocar no ar em poucas horas, numa singela demonstração da capacidade de resistência do povo. No inventário dos crimes cometidos pelos agressores euro-atlânticos, é necessário contabilizar ainda a tentativa de assassinar o presidente iugoslavo Slobodan Milosevic, revelando uma vez mais um traço de covardia e terrorismo dos imperialistas norte-americanos. Em agressões anteriores a países soberanos, atentaram contra as vidas do presidente do Iraque e da Líbia e em Granada assassinaram o chefe do governo.
Os bombardeios da Otan contra a Iugoslávia, diferentemente do que propagam os comunicados oficiais do comando das operações e das chancelarias norte-americanas e européias, pressurosamente reproduzidos pelos meios de comunicação, constituem uma flagrante agressão a um país soberano, reconhecido internacionalmente, com plenas relações diplomáticas, econômicas, comerciais e culturais em todo o mundo, membro da Organização das Nações Unidas desde a sua fundação, dotado de governo próprio, parlamento, corte de justiça, constituição. Um país organizado em luta pelo progresso econômico e social, por sua unidade, pela convivência entre as diversas nacionalidades que o compõem, muito embora as limitações de seu sistema político, a gravidade dos problemas interétnicos acumulados ao longo da história, as dificuldades da atual situação internacional e os erros do seu governo. Deve-se perguntar que ato internacional, lesivo à soberania de algum país, cometeu a Iugoslávia? Que grave pertubação à ordem mundial foi provocada por algum ato do governo do presidente Milosevic? Alguma ameaça à paz? Alguma violação de princípios da Carta da Nações Unidas ou dos acordos de Helsinque patrocinados pela Organização para a Cooperação e a Segurança Européia? A resposta negativa a essas indagações dá a medida exata da ilegalidade de que o ato agressivo se reveste.
A paz mundial, o equilíbrio diplomático, a ordem institucional, todo o sistema das Nações Unidas constituído após a Segunda Grande Guerra foram violados. O século XX termina como a época da subordinação de todas as nações do Planeta ao ditame unilateral e aos interesses estratégicos do imperialismo norte-americano, o que configura com traços de dramaticidade o retrocesso civilizacional em curso desde a destruição das conquistas do socialismo em vastas regiões do Planeta. Os organismos multilaterais não foram consultados. Na prática, a guerra dos EUA e da Otan contra a Iugoslávia decreta o fim desses organismos multilaterais, assim como a inutilidade da diplomacia como meio para a solução dos problemas internacionais. A própria ordem institucional de países europeus é posta em xeque, porquanto vários países membros da Otan estipulam em suas constituições restrições ao envolvimento em ações bélicas desse tipo.
Rambouillet foi o último cenário de uma comédia surrealista, ou, por outra, uma ópera-bufa, cuja contraface é a tragédia dantesca da devastação da Iugoslávia e do êxodo em massa de albaneses-kosovares, resultado imediato e inevitável dos bombardeios iniciados em 24 de março. As chamadas negociações de Rambouillet tinham um só objetivo: mostrar a “intransigência” da parte iugoslava que se recusou a aceitar a presença das tropas da Otan em seu território para “resolver” uma questão interna – o conflito sérvio-kosovar – problema antes de tudo de natureza política, cuja solução residiria em meios políticos e diplomáticos e não militares. Na verdade, a imolação da Iugoslávia no altar da “nova ordem” foi claramente premeditado. Trata-se de uma guerra de agressão anunciada há dez anos, desde que se iniciou o processo, também premeditado e engendrado de fora, de desintegração da República Federativa Socialista da Iugoslávia, na seqüência da contra-revolução que varreu do mapa europeu o sistema socialista. Tragédia que se apresenta hoje, sob uma densa cortina de desinformação e mentiras, com hipócritas declarações de defesa dos direitos humanos e de intervenção humanitária para supostamente fazer cessar a limpeza étnica. É uma tragédia que acomete também o povo albanês-kosovar, como os albaneses da Macedônia, como a própria população da Albânia – tristemente convertida em base de operações dos EUA e da Otan nos Balcãs. Tragédia que golpeia no coração e no fundo da alma a moral de um povo heróico que lado a lado com os sérvios lutou na Segunda Grande Guerra contra as hordas nazifascistas, hoje transformado em carne de canhão de uma empreitada expansionista e belicista do maior inimigo da humanidade em nossa época – o imperialismo norte-americano.
Os EUA-Otan configuram um império agressor; uma nova espécie de fascismo dos nossos dias
Só se pode compreender o significado da ação dos EUA e da Otan na Iugoslávia à luz do exame da estratégia global do imperialismo norte-americano. O próprio “negociador” estadunidense nas conversações de Rambouillet proclamou a obsolescência da ONU, por expressar relações de força ultrapassadas, enquanto a secretária de Estado dos EUA, Madeleine Albright, deixou claro o sentido da presença norte-americana nas negociações ao manifestar a intenção de que a Otan irá gerir as questões de Estado em Kosovo exatamente como faz na Bósnia.
No conflito sérvio-kosovar e na recusa do governo iugoslavo aos termos dos “acordos” de Rambouillet, o imperialismo norte-americano encontrou o pretexto para dar um passo adiante na execução de sua estratégia de dominação mundial, colocando agora no centro e no alvo de sua ofensiva a Europa e particularmente a Rússia que, com a expansão da Otan para o Leste – ultimamente somaram-se à Otan três países que integravam o bloco soviético do ex-Pacto de Varsóvia, a Polônia, a Hungria e a República Tcheca – fica virtualmente cercada e, com a ocupação de posições do imperialismo norte-americano nos Bálcãs, fica privada do acesso ao mar Mediterrâneo. Nesse contexto, torna-se vital para os Estados Unidos a criação nos Bálcãs, principal ponto estratégico para dominar o Mediterrâneo, de um “protetorado” ou “enclave territorial”. Ou, como diz o analista militar iugoslavo, Miroslav Lazanki, um polígono militar: “Para a Otan, o território de Kosovo e Metohija representa um polígono militar ideal – por sua situação geográfica, pelo relevo do terreno e infra-estrutura (…) o primeiro passo já foi dado há quatro anos. As tropas da Aliança entraram na Bósnia em conformidade com o acordo de paz de Dayton e levam lá uma boa vida. Não pagam pela eletricidade e pela utilização de estradas. Os seus aviões podem voar livremente em altitudes inferiores a 3 km, o que, por motivos ecológicos, é rigorosamente proibido em todos os países da Europa Ocidental e América. Por que, então, a região de Kosovo não poderia tornar-se igualmente num polígono gratuito, afastado relativamente da próspera e ecologicamente limpa Europa?” (Gazeta Mercantil, 23-04-1999).
O imperialismo norte-americano atua hoje no cenário internacional com base em noções estratégicas que versam sobre a formação de um mundo sob a hegemonia norte-americana. As ações políticas e militares dos EUA têm em vista assumir sem disfarces nem rodeios o papel de única superpotência internacional, num ambiente em que são nítidos os sinais de crise sistêmica do capitalismo mundial, quando apesar das aparências e da propaganda sobre a prosperidade norte-americana, evidenciam-se cada vez mais os desequilíbrios estruturais da economia estadunidense e em que as diversas potências imperialistas – EUA, Alemanha e Japão –, embora unidas na defesa do sistema, preparam-se para uma disputa que pode percorrer toda uma era, pela hegemonia do mundo. A guerra contra a Iugoslávia insere-se também no quadro da disputa inter-imperialista com a Europa. Apesar das aparências, o “Velho Continente” e os EUA não defendem nesse conflito os mesmos interesses.
No ano passado, a Casa Branca publicou um documento intitulado A estratégia de Segurança Nacional para o Novo Século que define a Otan como “garantidora da segurança européia” atribui aos Estados Unidos a responsabilidade de manter 100 mil soldados no continente europeu, como “contribuição” a essa segurança e proclama a “sustentação de nosso legado transatlântico vital e de preservação da liderança dos Estados Unidos na Aliança Atlântica”. Mais claro não poderia ser. A “segurança” da Europa a cargo da Otan e a Otan comandada pelos Estados Unidos. É este o verdadeiro escopo de doutrinas como a do “direito de intervenção” ou, como quer o boneco de ventríloquo de Clinton, o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, a “Doutrina da Comunidade Internacional”, em oposição ao “arcaico” conceito de soberania nacional. Cinco semanas depois do início dos bombardeios, a Otan comemorou o 50º aniversário de sua fundação. Os 19 países membros da Aliança aprovaram ao término de uma reunião de cúpula realizada na ocasião um documento que define o novo conceito estratégico da Aliança Atlântica. A pedra de toque da adaptação do caráter da Otan aos tempos atuais, tirando a máscara em torno do caráter defensivo e assumindo explicitamente o caráter ofensivo, é a definição do conceito de ingerência humanitária e o direito que a Otan se atribui de cuidar de problemas de segurança de maior amplitude, como “atos de terrorismo, sabotagem e crime organizado e os problemas no abastecimento de recursos vitais”. Finalmente, surge a polícia do mundo…
Os bombardeios da Otan contra a Iugoslávia são uma flagrante agressão a um país soberano, membro da ONU desde a sua fundação, dotado de governo próprio, parlamento, corte de justiça e Constituição
A tentativa de destruição da Iugoslávia pelas potências euro-atlânticas envolve ainda interesses econômicos – o controle das minas de Trepca, localizadas em Kosovo, onde existem as mais ricas jazidas de chumbo, cádmio, zinco, ouro e prata da Europa, além de grandes reservas de lignita (linhita). Segundo o jornal comunista independente italiano Il Manifesto, a agressão à Iugoslávia envolve ainda “a disputa em torno do chamado “corredor 8”, planificado há muito tempo, que em perspectiva deveria conduzir matéria-prima Um pouco de história
Iugoslávia significa “país dos eslavos do sul”. Atualmente, depois das “independências” da Eslovênia, Croácia, Macedônia e Bósnia, a partir de 1991, é menos da metade do que foi desde a Segunda Guerra Mundial. Em 1945, a Iugoslávia foi organizada como República Federativa Socialista, formada por seis Repúblicas: Sérvia, Croácia, Eslovênia, Bósnia-Herzegovina, Montenegro e Macedônia. Dentro do território da Sérvia foram criadas duas Províncias Autônomas – a de Voivodina, habitada por sérvios, húngaros e outras etnias, e a de Kosovo, com uma população de quase 2 milhões de habitantes formada por uma ampla maioria de albaneses (cerca de 80%), sérvios (13%), montenegros (1,5%) e outras minorias étnicas. Assim, a Iugoslávia é um cadinho de nacionalidades e etnias. Da população sérvia, por exemplo, de 8 milhões de habitantes, cerca de 6 milhões viviam, antes da desintegração da Iugoslávia, na Sérvia, e os restantes 2 milhões na Croácia, na Bósnia etc.
O conflito sérvio-kosovar é antigo, resultado da evolução histórica e de diversas intervenções imperialistas na região balcânica, que já fez parte de vários impérios: o Império Romano, o Império Bizantino, o Império Otomano e o Império Austro-húngaro. A região foi palco das Guerras Balcânicas, em finais do século passado e princípios deste, que estiveram na raiz da Primeira Guerra Mundial.
Mais de cinco séculos antes, os sérvios, um dos povos eslavos que ocuparam a região nos séculos VII e VIII de nossa era, e os albaneses, cuja etnogênese remonta aos reinados dos Ilírios e Dardânios, na Antiguidade, na esfera do Império Romano, já habitavam a região de Kosovo. No período entre os séculos XI e XIV formam-se os Estados feudais sérvios, e no século XV, sob Skanderbeu, cria-se o Estado feudal albanês. Os sérvios se justificam como “donos” de Kosovo porque ali, em 1389, ocorreu uma batalha em que o Império Otomano ocupa e anexa o reino sérvio. Os albaneses, também sob ocupação otomana desde o século XV, vão se tornando ao longo dos séculos a etnia majoritária em Kosovo. A ocupação otomana dura cinco séculos em toda a Península balcânica. Em 1878, com a conquista da independência a Sérvia consolida seu poder em Kosovo. Mais tarde, em 1912, numa sucessão de ações heróicas, os patriotas albaneses proclamam sua independência na cidade de Vlora, na costa do Adriático. A Conferência de Londres, sob a égide das grandes potências, define as fronteiras da Albânia, deixando de fora do país metade dos albaneses. Kosovo permaneceu ligado à Sérvia.
Ao final da Primeira Guerra Mundial é formado o reino dos sérvios, croatas e eslovenos que, em 1929, passa a se chamar Iugoslávia. O novo país reúne sérvios, croatas, eslovenos, montenegros, macedônios, bósnios, minorias húngaras e outras. Fruto da desagregação dos dois impérios (o império otomano e o império austro-húngaro) o novo país é caracterizado pela heterogeneidade, que se exprime na existência de três grandes religiões (católica ortodoxa, católica romana e muçulmana) e dois alfabetos (latino e cirílico).
Em 1939, a Albânia é ocupada pela Itália fascista e, em 1941, a Alemanha nazista invade a Iugoslávia. Em 1943, também a Albânia é ocupada pelos nazistas. Num e noutro país organiza-se a resistência guerrilheira. Sob a direção dos respectivos partidos comunistas, na Albânia, liderado por Enver Hohxa, e na Iugoslávia, por Josip Broz Tito, surgem os exércitos de libertação nacional que enfrentam as hordas nazifascistas. A Albânia e a Iugoslávia foram os únicos países que se libertaram do nazifascismo com as próprias forças, sem a ajuda do exército vermelho soviético.
Durante a Guerra de Libertação Nacional, guerrilheiros comunistas albaneses e iugoslavos combateram lado a lado no território de Kosovo, momento ímpar na história dos dois países, quando assomou uma perspectiva de solução do velho conflito. Supunha-se que com a libertação nacional e o triunfo da revolução popular em ambos os países, como no restante da Iugoslávia, criar-se-iam as condições para a justa solução do problema nacional. Tito e Dimitrov chegaram a propor a criação de uma Federação Socialista Balcânica, mas a eclosão do primeiro cisma no movimento comunista, colocando a URSS e a Iugoslávia em campos opostos, aborta a ideia. Os albaneses tinham a expectativa de que Kosovo se tornaria independente da Sérvia. Em 1944, por iniciativa do Comitê Regional do Partido Comunista Iugoslavo em Kosovo realizou-se a Conferência do Conselho de Libertação Nacional de Kosovo e da planície Dukagjini. A Conferência aprovou a resolução de promover a unidade entre sérvios e albaneses na luta contra o inimigo nazista e expressou a aspiração de assegurar, depois da libertação da Albânia e da Iugoslávia, a solução do problema nacional, através da aplicação do princípio da auto-determinação.
Tal não ocorreu, mas sob a direção de Tito, Kosovo foi conquistando paulatinamente direitos legais a partir de 1968, culminando com a outorga, pela Constituição de 1974, do status de Província Autônoma de Kosovo. Em 1970 fora criada a Universidade de Pristina (com cursos ministrados em idioma albanês); em 1978, fundada a Academia de Ciência de Kosovo. Segundo a Constituição iugoslava a Província Autônoma de Kosovo era um ente constitutivo da Federação Iugoslava e parte integrante da República Socialista da Sérvia. O órgão supremo do poder na Província era a Assembleia, constituída por uma Câmara de Atividades Comuns, com 90 delegados; a Câmara das Comunas, com 50 delegados, e a Câmara de Assuntos Políticos e Sociais, com 50 delegados, sendo a direção dos trabalhos da Assembleia exercida por uma presidência eleita, formada por um presidente e 9 membros. A atividade de órgão executivo correspondia ao Conselho Executivo. A Província tinha ainda sua corte de Justiça, elegia um membro para a presidência da República Socialista Federativa da Iugoslávia, e uma delegação para a Câmara das Repúblicas e Províncias na Assembleia da República Socialista Federativa da Iugoslávia.
Os albaneses kosovares não se contentavam com direitos legais formais, aos quais consideravam uma “autonomia relativa”. Lutavam contra discriminações e pelo status de República, nos marcos da Federação Iugoslava. Em 1969 uma onda de protestos estudantis é reprimida com violência. Em abril-maio de 1981, num episódio que se tornou conhecido como “primavera sangrenta”, o governo central iugoslavo jogou tanques contra a população kosovar. Na época, a mídia não deu uma só linha e nem mostrou sequer uma imagem sobre o episódio. O quadro político mundial era outro. Em 1989, o governo de Milosevic comete o erro tático e estratégico de retirar de Kosovo o status de Província Autônoma. Atirou gasolina no fogo e abriu flanco para que o patriotismo albanês fosse utilizado pelo separatismo armado do ELK. (JRC)
energética das regiões ex-soviéticas até o mar Adriático, passando pela Bulgária, Macedônia e Albânia”.
O jornal italiano prossegue afirmando que “em torno do controle dessas riquezas e da infra-estrutura de seu transporte e escoamento está em curso uma guerra suja contra a Rússia – envolvendo uma região que vai do Cáucaso à Ásia ex-soviética até o Curdistão – com a Turquia sendo chamada a desempenhar o papel de instrumento regional dos interesses estratégicos norte-americanos”. O andamento do projeto, que deveria ser financiado pelo capital privado é, porém, condicionado à construção de um quadro político e jurídico “estável”. O jornal conclui: “Esta guerra é, também uma advertência à Rússia, mas, sobretudo – enquanto estratégia permanente dos Estados Unidos – o problema envolve profundamente a Europa, ou melhor, a submissão de toda Europa Unida aos interesses norte-americanos”. A Europa vinha de um processo de unificação parcial, chegando a criar uma moeda única – o EURO. O episódio belicista representa um passo adiante no posicionamento estratégico estadunidense na região dos Bálcãs, de imediato, com repercussão permanente sobre a tutela da estabilidade européia. A flexão tática no caráter da Otan, que surgiu com objetivos defensivos, para um instrumento armado ofensivo já expressa sua fisionomia aos moldes propugnados pelos imperialistas ianques.
Acrescente-se a tudo isso os interesses da poderosa indústria armamentista norte-americana. O desenvolvimento da indústria bélica tem tido destaque no desempenho geopolítico dos Estados Unidos, portanto, na deflagração de conflitos similares. É um tipo de campo de operação cada vez mais necessário para o teste regular de tecnologia militar, como é o caso das atuais armas subatômicas.
A guerra à Iugoslávia, com todo o seu cortejo de horrores, traz insegurança a todos os demais povos balcânicos e europeus e ameaça a paz mundial
Estes são em seu conjunto os verdadeiros motivos e objetivos da agressão dos EUA-Otan à Iugoslávia. De acordo com os despachos das agências noticiosas e a análise dos comentaristas internacionais dos grandes meios de comunicação, trata-se de uma “guerra humanitária”, para salvar o povo albanês-kosovar da “limpeza étnica” promovida pelo governo central da Iugoslávia, argumento utilizado também durante a guerra da Bósnia. A deformação da realidade em tais argumentos torna-se patente quando não se observa nos textos dos despachos noticiosos e dos comentários dos analistas qualquer referência ao fato de que o êxodo em massa de albaneses guarda relação direta com o início dos bombardeios. Pristina, a capital kosovar, e outras cidades e povoados foram destruídas e esvaziadas não pelo exército sérvio, mas pelos bombardeios da Otan. Não se trata aqui se isentar o exército sérvio de responsabilidade por excessos e até crimes contra a população kosovar no afã de combater a guerrilha separatista do ELK, mas de ver as coisas como elas são. A visão no mínimo parcial dos fatos fica ainda mais patente quando não se observa nos mesmos noticiários e análises qualquer referência ao êxodo de 85 mil sérvios, habitantes de Kosovo e de outras cidades iugoslavas, também condenados à situação de prófugos. Isso para não falar no êxodo forçado de 400 mil sérvios após a “independência” da Croácia, sobre o que a imprensa ocidental não publicou uma só linha. O Boletim Ponto de Vista da Oficina de Informações, órgão noticioso e analítico brasileiro divulgado pela Internet em 14 de abril põe a nu a falsidade e a hipocrisia dos pretextos “humanitários” dos gendarmes do Planeta: “Quando os Estados Unidos já se preparavam para a guerra contra a Iugoslávia, o subsecretário de Estado para os direitos humanos, Harold Koh, convocou os líderes de diversos grupos humanitários para uma reunião. Abriu o encontro – que incluía organizações prestigiadas como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch – pedindo desculpas pela impossibilidade da administração Clinton apoiar o julgamento de Pinochet. Mas havia também, segundo Koh, boas notícias: Madeleine Allbright, secretária de Estado, havia convencido o Departamento de Defesa e o próprio presidente a bombardear os sérvios (…) Boa parte dos presentes a essa conversa reagiu com animação”. O mesmo Ponto de Vista concluiu dizendo: “É como se o governo norte-americano tivesse conseguido uma espécie de milagre: um salvo-conduto de grupos ativistas de direitos humanos para fazer uma guerra em nome de elevados interesses humanitários”.
A guerra à Iugoslávia, com todo o seu cortejo de monstruosidades que martirizam indistintamente os povos sérvio e albanês, traz insegurança a todos os demais povos balcânicos e europeus e ameaça a paz mundial. É um desses episódios na história contemporânea que só podem causar repugnância e provocar a revolta de toda a humanidade.
As ações agressivas comandadas nos Bálcãs pelo imperialismo norte-americano e pelas potências européias aliadas, justificadas agora por uma nova doutrina estratégica norte-americana e um novo conceito de segurança da Otan, sob hegemonia norte-americana, constituem um grave sinal de que a humanidade está vivendo, na passagem do século e do milênio uma nova situação política, em que se configura a fundação de uma nova ordem mundial, na essência uma ordem imperialista e, quanto aos meios de atuação para fazer prevalecer os interesses da superpotência dominante, uma ordem mundial fascista. Atentemos bem para a definição conceitual das motivações para a intervenção armada imperialista: “defesa de causas humanitárias” e “cuidados
Entrevista com Dias Gomes
“Não existe uma posição neutra em relação à vida”
Por Suênio Campos de Lucena
O dramaturgo, roteirista e escritor Alfredo de Freitas Dias Gomes nasceu em 19 de outubro de 1922 em Salvador, Bahia, e faleceu aos 76 anos, em 18 de maio de 1999, vítima de acidente de carro na cidade de São Paulo.
Escreveu, dentre outras, as peças O Santo Inquérito, Branca Dias e O Pagador de Promessas, adaptada por ele para o cinema. O filme, dirigido por Anselmo Duarte, venceu a Palma de Ouro no Festival de Cannes, em 1962. Mas foi a televisão, entretanto que o notabilizou como criador de personagens antológicos, como Odorico Paraguaçu, de O Bem Amado (1973); a viúva Porcina e Sinhozinho Malta, de Roque Santeiro (1985), censurada em 1975, telenovelas da Rede Globo de Televisão. Nesta emissora, escreveu ainda as telenovelas Verão Vermelho (1970), Assim na Terra como no Céu (1971), Bandeira 2 (1972), O Espigão (1974), Saramandaia (1976) e as minisséries Decadência (1994), O Fim do Mundo (1996) e adaptou Dona Flor e seus Dois Maridos (1998), romance de Jorge Amado.
Em 1998, lançou o livro de memórias Apenas um subversivo. Eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1991, foi casado com a novelista Janete Clair (1925-83), autora, dentre outros, de: Irmãos Coragem, Pai Herói, Pecado Capital e Selva de Pedra. Mais tarde casou-se com a atriz Maria Bernadete.
Esta entrevista – publicada por Princípios em sua homenagem – é inédita e foi realizada pelo jornalista e professor de Comunicação da Universidade Estadual da Bahia, Suênio Campos de Lucena, em 2 de fevereiro de 1999 no flat onde o escritor mantinha seu escritório, no bairro carioca do Leblon.
Concorda que boa parte de sua literatura é feita de anti-heróis?
Dias Gomes: Há heróis e anti-heróis. Geralmente o personagem principal é o povo, que sempre oscila entre ser herói e anti-herói.
Ao contrário da literatura contemporânea, o senhor constrói sua obra a partir de personagens-chave, emblemáticos, marcantes – Odorico Paraguaçu, Branca Dias, Zé do Burro, Roque Santeiro… É intencional?
Dias Gomes: Não. É uma característica de autor. São os personagens que surgem na minha mente… Não há um propósito de criar esses personagens emblemáticos. Eles se criam por si. A criação de um personagem é uma coisa muito complexa, não é uma equação matemática. Parte de uma idéia, de uma inspiração; o personagem vai vindo, criando corpo, expondo suas idéias… Não controlo isso porque ele não foi pensado matematicamente. Entra emoção, memória, sua visão de mundo. Ateavés do personagem você quer dizer alguma coisa, mas você não cria um personagem para isso. Ele é que diz.
A maioria dos seus personagens é engolida pelo poder, desamparada.
Dias Gomes: Esse conflito entre o indivíduo e poder, essa luta pela liberdade é uma constante, realmente você pode achar isso, principalmente na minha literatura dramática, porque é uma situação que vivo. Estou sempre em conflito com o poder, as limitações, a censura, com todo tipo de coerção e cerceamento e com a falsa noção de liberdade permanente em nosso sistema, que é a liberdade do regime capitalista. Você pode casar com quem quiser contanto que case com a Maria. Esse tema aparece várias vezes na minha dramaturgia e os personagens que simbolizam esse conflito são realmente personagens que acabam sendo emblemáticos.
Há ainda o elemento cômico ou tragicômico.
Dias Gomes: É uma visão de mundo de alguém que vê a vida como uma piada de mau gosto. Acho que a vida não passa de uma grande sacanagem de Deus [risos], se é que Ele existe. As pessoas lutam, sofrem, passam o diabo e tudo para no fim acabar do mesmo jeito? [risos] Você nasce sabendo que vai morrer, nasce e começa a morrer… Isso é uma grande sacanagem, brincadeira de mau gosto. Toda tragédia no fim é cômica ou tragicômica. Vai tratar de uma enorme tragédia e no fim você sabe que é cômico.
Alguma vez foi tachado de folclórico à Jorge Amado?
Dias Gomes:– Essa crítica nunca me atingiu. Não é que tenha alguma tendência a folclorizar, mas tenho uma compreensão da dramaturgia brasileira que leva às nossas raízes. Acho que uma dramaturgia brasileira só pode nascer da própria realidade do país, então buscando essas tradições você encontra temas, inspiração e elementos para construir uma dramaturgia autêntica. Sempre me voltei para isso. Desde as minhas primeiras peças na quase adolescência tinha a visão de que uma dramaturgia nacional só pode nascer de temas nacionais e quanto mais nacionais eles forem mais universais serão. Isso é uma maneira de pensar. Daí você ver uma presença de Brasil muito grande e pode, às vezes, encontrar uma sustentação folclórica, mas que não me interessa em si folclorizar as coisas, ao contrário, fujo disto. Quando toco nisso é de uma maneira sempre a fundamentar as coisas, nunca a extrair daí algo mais transcendente.
Vê proximidade entre o seu teatro e o de Ariano Suassuna?
Dias Gomes – Não vejo essa proximidade. Vocês pegam o Nordeste como uma coisa só. Parece que tanto faz nascer na Paraíba, em Pernambuco ou na Bahia. Em matéria de pensamento não vejo nenhuma proximidade. Talvez haja proximidade nos temas, na tipificação dos personagens, por pertencermos a uma mesma região, mas não penso parecido como ele e nem temos a mesma visão do teatro.
Já se falou que seu teatro é genuinamente popular e farsesco?
Dias Gomes: Farsesco, não; político-popular, sim. Popular na forma porque todo teatro, para mim, é popular. Não existe teatro apolítico. Mesmo quando ele pretende não ser, ele o é. Quando você se omite, toma posição contra ou a favor de alguma coisa. Não existe uma posição neutra em relação à vida. Ou se está de um lado ou do outro, então meu teatro é de posição, não há dúvida nenhuma. Mas, como já disse, todo teatro é político. Mesmo se você faz um teatro escapista está favorecendo alguma corrente. Se não escreve a favor dos opressores, mesmo que não esteja escrevendo a favor dos oprimidos, estará favorecendo os opressores. Se me deparo na rua com uma briga entre um gigante e um anão e não tomo parte estarei a favor do gigante.
O chamado teatro besteirol faz isso?
Dias Gomes: Não. O besteirol é uma besteira. É um teatro de ocasião, de uma fase muito ruim da nossa dramaturgia, do nosso tempo de decadência. Não temos hoje grandes movimentos. O que caracteriza o teatro brasileiro hoje é a falta de rumo, de perspectiva.
Acha que já acabou o tempo de classificar teatro de esquerda ou não?
Dias Gomes: Sim. Isso é uma bobagem, embora não tenha acabado a esquerda e a direita porque no dia em que acabarem teremos a justiça social. É bobagem dizer que não existe mais esquerda; o que não existe é um posicionamento nítido, a bipolaridade do mundo. Dizer que não existe é uma bobagem como dizer que o socialismo está morto. O sonho de uma sociedade igualitária, mais justa vai continuar, a despeito do fracasso de uma tentativa que justamente fracassou por ter em si a traição a esses ideais. É um sonho de liberdade do homem, que foi traído porque na base da experiência socialista estava a supressão dessa mesma liberdade, uma contradição em si. Não foi o capitalismo que derrotou o socialismo. Ele se derrotou por si porque se corrompeu, se corroeu através de uma noção falsa do que era o socialismo. Recentemente houve uma retomada das peças de Nelson Rodrigues.
Dias Gomes: É também uma característica da falta de rumo do teatro. De repente, o Nelson morre e as pessoas o descobrem. Fez muito pouco sucesso em vida e depois de morto virou gênio. Então montam o Nelson Rodrigues adoidado, uma enxurrada, até prejudicando uma visão nítida da sua obra. Isso resulta do vazio em que estamos.
Ele tinha uma frase famosa: “O teatro brasileiro precisou de 400 anos para passar de Shakespeare a Dias Gomes”.
Dias Gomes – Ele tinha uma pinimba comigo. Nem sei porque. Troquei com ele umas três ou quatro palavras. Aliás, ele brigou com todos os autores que surgiram na década de 1960 e foram bem-sucedidos.
Com o dramaturgo Oduvaldo Viana Filho também.
Dias Gomes: Isso. O Vianinha, eu, Guarnieri. Nelson Rodrigues tinha uma grande frustração por não ganhar prêmios. Ele passou a vida toda sem ganhar um prêmio; só recebeu quando estava perto da morte, no regime militar. Vivia nos gozando porque nós ganhávamos prêmios. Essa frase é de uma crônica dele. Era muito engraçado, ri muito quando li. Tivemos uma certa polêmica, fabricada um pouco pela imprensa.
Quando escrevi Campeões do Mundo, um repórter d’O Globo me entrevistou e falei da minha longa carreira, desde os anos 1940. Após a entrevista, ele disse: “Você é todo o teatro brasileiro!”. Eu disse, é, realmente sou. Ele botou essa frase no jornal com manchete como eu tendo dito. Um repórter pegou e levou pro Nelson. Ele ficou “puto da vida” e aí deu uma entrevista me esculhambando, dizendo que eu tinha começado imitando Juraci Camargo. Depois, veio o repórter a mim. Disse que era melhor imitar Juraci Camargo do que ser o Tennesse Williams [escritor e dramaturgo norte-americano] de Madureira [risos], mas era uma coisa fabricada pela imprensa. Nesse momento lançava Campeões do Mundo e o produtor gostou da polêmica, que acabava promovendo a peça. Não foi nada sério.
Preferia Flávio Rangel em vez de Anselmo Duarte para dirigir O Pagador de Promessas?
Dias Gomes: Não é bem assim. A peça obteve enorme sucesso quando foi encenada no TBC (Teatro Brasileiro de Comédia). Flávio me falou de seu anseio por fazer um filme. Disse a ele que arranjasse os meios que faríamos o filme. Tinha, então, um compromisso moral com ele. Lutou muito para conseguir dinheiro para fazer o filme, mas não conseguiu. Um dia veio a mim com o Anselmo, falando que tinha um produtor. Resisti bastante a princípio. O Anselmo me preocupava, vinha das chanchadas da Atlântida, tinha feito um filme elogiado, mas era o seu segundo filme e isso me dava muita insegurança. Exigi no contrato que o Flávio participasse da produção como diretor-artístico, mas o próprio Flávio desistiu disso.
Começou na televisão em 1969 numa novela com o sugestivo nome de Ponte dos Suspiros?
Dias Gomes: Minha primeira passagem pela TV pouca gente conhece porque trabalhei em nome de outras pessoas, desde 1953. Era diretor da Rádio Clube do Brasil, que era do Samuel Wainer, diretor da Última Hora. Naquele momento, o Carlos Lacerda fazia uma tremenda campanha contra o Samuel e o Getúlio Vargas. Foi aí que recebi um convite para ir a Moscou. Ninguém podia sair dizendo que ia para Moscou, era proibido. Passei antes na Inglaterra e quando estou em Moscou, o Lacerda, não sei como, descobriu uma foto minha depositando flores no túmulo de Lênin e publicou na primeira página da Tribuna da Imprensa a seguinte manchete “Diretor da Rádio Clube leva Flores para Stalin com o Dinheiro do Banco do Brasil” [risos]. Veja que situação: nem era para Stalin nem o dinheiro era do Banco do Brasil. Tomei emprestado de uma agiota e levei um ano pagando.
Quando voltei, fui sumariamente demitido. Sofri uma espécie de macartismo no Brasil – entrei para uma lista negra, ninguém me dava emprego. Ir a Moscou naquele tempo era mais fantástico do que ir à lua. Fiquei marcado, não conseguia emprego em rádio ou jornal. Nesse momento estava começando a TV Tupi e não tinha autores contratados, fornecia-se cachê. Comecei então a escrever os programas. Havia peças de uma hora, shows, policiais e comecei a escrever pedindo para as pessoas negociarem com a Tupi, veja só. Depois elas me davam o cachê. Isso parece um filme de Woody Allen em que ele é testa-de-ferro de três autores que estão na lista negra. Comigo era o contrário. Tinha três autores que eram os testas-de-ferro dos meus programas. Escrevia muito porque os cachês eram muito miseráveis, tinha de fazer vários programas para conseguir um salário para sobreviver. Os três autores eram minha esposa Janete, Moisés Veltman e Paulo de Oliveira. Vivi assim quase um ano. Essa foi minha primeira passagem pela TV e ninguém sabe.
Todo mundo pensa que entrei para a TV em 1969. Nesse ano, devido à ditadura, principalmente após o AI-5 de 1968, quase todas as minhas peças foram proibidas. Proibiram O Berço do Herói, A Revolução dos Beatos, Amor em Campo Minado. O Pagador de Promessas passou cinco anos sem ser exibido. Vi então que tinha de arranjar outro meio de vida. Foi aí que a Globo me chamou para fazer novela. Era um desafio enfrentar um gênero subestimado, cercado de preconceitos, mas por outro lado seria uma incoerência política minha não aceitar. Já que era autor de uma geração que tinha proposto teatro político e popular, no sentido da platéia, algo que nunca conseguimos alcançar, a TV me oferecia essa platéia. Era uma incoerência virar as costas. Foi um desafio estimulante achar a linguagem.
Mas não há um abismo entre escrever para teatro e televisão?
Dias Gomes: São duas coisas completamente diferentes. Digo apenas que havia aquela platéia oferecida pela TV, que era o que ambicionávamos para o teatro. Não digo que a telenovela supriu essa falta; ela ocupou um espaço que deveria ter sido do teatro ou do cinema, que do mesmo modo não chegou lá, se elitizou, se hermetizou. Quanto à Ponte dos Suspiros, a produção já estava encaminhada e o elenco encontrado. Era um folhetim italiano do século XIX. Sugeriram-me colocar um pseudônimo – não fui eu que, por preconceito, o fiz. O Boni me disse que não tinha nada a ver com o meu teatro e me sugeriu usar um pseudônimo. Meu primeiro contrato com a Globo dizia que quando eu assinasse teria um aumento. Assinei então como Stela Calderón, nome sugerido pelo Walter Clark. Anos depois soube que ela existia, era uma escritora argentina [risos].
A época áurea da TV está ligada a sucessos seus como Saramandaia, O Espigão, Sinal de Alerta, Bandeira 2 e Roque Santeiro. O que houve de lá para cá?
Dias Gomes: Já nos anos 1970 eu previa essa crise. Quando propus à Globo que fundasse uma casa de criação eu fundamentava minha proposta na previsão de uma crise de criatividade muito grande e que a Globo precisava se preparar para isso, buscar novos formatos, novas temáticas. Era uma proposta generosa, talvez inteligente demais para ser aceita. Teve apenas dois anos de vida. Essa crise já começa nos anos 1980. É universal e em todos os gêneros. Qual foi o grande dramaturgo, o pintor que surgiu? Vá ao Museu de Arte Moderna de Nova Iorque e veja obras que são um horror. Uma arte de empulhação, de charlatões que surgem a torto e a direito se aproveitando desse grande vazio. A telenovela não podia escapar disso, é um problema de fim de época, de fim de século.
Roque Santeiro, além de um estrondoso sucesso, rendeu também um desentendimento seu com o escritor Aguinaldo Silva.
Dias Gomes: Ciumeira dele, mais nada. Era colaborador, foi chamado, depois a Globo o afastou e ele não gostou, ficou magoado. Nada mais que isso.
Chegou a colaborar com os textos de Janete Clair?
Dias Gomes: Fomos casados durante 33 anos. É evidente que trocávamos muitas idéias, apesar dos nosso estilos serem completamente diferentes. Opinamos sobre nossos trabalhos durante toda a vida juntos.
A minissérie Decadência foi responsável por um polêmico embate travado entre a TV Record e a Globo?
Dias Gomes: Segundo o Bispo Edir Macedo sim [risos]. A Igreja Universal tentou me processar, mas não conseguiu. Na época, recebi uma carta precatória que, segundo o arrazoado da igreja dizia que a minissérie foi responsável por enormes danos causados a ele e procura demonstrar que procurei retratar na figura do D. Mariel o bispo Edir Macedo. Parece que o bispo tem obsessão em querer ser o D. Mariel. Já cansei de dizer que ele não é, mas ele repete, sou eu, sou eu, sou eu. Ele devia se achar parecido com o Edson Celulari. Insistia dizer que é, mas já disse que não. Como já disse, a criação de um personagem é algo muito complexo. Nenhum personagem de ficção é alguém. É sempre o pedacinho de muita gente. São memórias vivenciadas, leituras, um pouco de pesquisa, adicionando a isso um pouco de si. De toda essa colcha de retalhos nasce o personagem. Sempre alguém vai se identificar com um personagem da sua categoria. Se crio um médico, qualquer médico vai achar um ponto de identificação com ele poque todo médico tem clientes, consultório… A ação desse personagem vai ter de passar por essas coisas, mas isso não quer dizer que seja ele.
Uma versão diz que você teria recebido uma encomenda de Roberto Marinho para alimentar o duelo da Globo com a Record [risos].
Dias Gomes: Isso é ridículo. Primeiro que o doutor Roberto não faria nenhuma encomenda ao Dias Gomes. Se ele tivesse de encomendar alguma coisa a alguém seria alguém mais próximo, que espelhasse melhor suas idéias, com todo respeito. Essa história de a Globo ter duelado com a Record foi um negócio de Davi e Golias, porque o que a Record incomoda? Se a Globo tem suas preocupações deve ser com a TV do Silvio Santos, com a Bandeirantes, emissoras que têm alguma audiência, embora muito menos que a Globo. A Record não tem nenhuma. Ninguém vê. Veja o Ibope, só tem tracinhos. Por que a Globo iria se preocupar com a Record? Isso desmoraliza o argumento e quanto a eu ter recebido uma encomenda da igreja católica… Escrevi tantas peças contra a igreja, seria totalmente absurdo. Sou o autor de O Pagador de Promessas, o Santo Inquérito, peças que questionam a igreja católica. Seria o último autor do mundo que eles teriam pensado, não?
Gilberto Braga afirma que a vida do roteirista é isolada, cansativa.
Dias Gomes: Já foi pior. Nos tempos heróicos da TV, quando entrei, era terrível. A Globo só tinha dois autores contratados – eu e a Janete. Terminava uma novela na sexta, começava outra na segunda. Não tinha autores para nos substituir. Janete fez cinco novelas emendando uma na outra, sem descansar. Uma dessas novelas tinha 320 capítulos, que era Irmãos Coragem. Fiz três seguidas (Ponte dos Suspiros, Verão Vermelho e Assim na Terra como no Céu) e só a partir de 1972 é que a Globo contratou autores para alternar conosco. Daí em diante passou a vigorar um regime mais humano. Durante muito tempo os autores escreveram sozinhos, sem colaboradores, o que é terrível. Você tinha de fazer tudo. Ficava enjaulado, enclausurado em casa, escrevendo durante nove meses, sem poder ir ao teatro, ao cinema e detestando a visita dos amigos mais queridos. Estava sempre olhando pro relógio – o melhor caminho para o infarto. Por isso deixei de fazer novela, algo desgastante e que não me satisfazia totalmente pelo sistema de trabalho. Não é um trabalho que eu possa burilar. Passam dois, três anos eles me pegam, me imprensam e me convencem a fazer mais uma e eu digo novamente que é a última. Podendo fugir, fujo. Não tenho nada contra telenovela. Só acho que os outros devem fazer, eu não.
O que faz quando não está escrevendo?
Dias Gomes: Sempre estou. Esse não estar escrevendo são algumas horas do dia. Tenho o hábito de escrever, uma necessidade de escrever diariamente. Se não tiver um trabalho objetivo para escrever, invento algo, uma carta. Vou ao teatro. Vejo filmes, leio bastante e também faço um pouco de exercícios.
Qual o seu personagem preferido?
Dias Gomes: Não tenho. Seria uma injustiça com os outros personagens escolher um. Vários me deram muitas alegrias, outros nem tanto. É como filho. Você não pode escolher um. Os outros é que tem de gostar.
para com problemas de segurança mais amplos”, como “atos de terrorismo, sabotagem e crime organizado, e os problemas no abastecimento de recursos vitais”. Sob designações tão amplas, o imperialismo se arroga o direito de intervir, bombardear, invadir, ocupar qualquer país que, segundo seus critérios, comprometa as “causas humanitárias”, promova atos de “terrorismo”, “crime organizado” ou interponha qualquer obstáculo ao livre abastecimento do imperialismo norte-americano ao que considere recursos vitais para a preservação de seus interesses, seja econômicos ou militares. Nesse contexto, por exemplo, pode-se considerar diretamente ameaçada a China, com as problemáticas de Taiwan e do Tibete, ultimamente infladas pela propaganda a serviço dos interesses norte-americanos. Em perspectiva, ameaça-se o Oriente Médio, onde eventualmente podem ser criados obstáculos ao abastecimento dos EUA em recursos vitais, a Índia e toda a região em torno, onde proliferam conflitos nacionais e interétnicos e assim, sucessivamente, em qualquer parte do mundo onde a segurança e os “interesses vitais” do imperialismo norte-americano possam ser “ameaçados”.
Mesmo o nosso país, onde as forças políticas e a sociedade se comportam com uma ignorante e boçal indiferença em face do que ocorre em plagas mais distantes, e cujo governo, escravo do neoliberalismo, comporta-se como força caudatária do governo norte-americano, poderá ser enquadrado em algum daqueles critérios dos EUA e da Otan. Afinal, vez por outra, artificializam-se aqui querelas em torno de demarcação de reservas indígenas, ao que se faz um desproporcional eco nos meios de comunicação norte-americanos e europeus; afinal, o nosso território abriga a mais rica biodiversidade e bacia mineral do mundo, a Amazônia, que certamente contém muitos dos chamados “recursos vitais”.
Nesse contexto, a guerra à Iugoslávia não é um acontecimento qualquer, mas o prelúdio dos horrores que podem supliciar a humanidade se os povos não se anteciparem para deter a mão dos imperialistas e pôr cobro à sua aventura dominadora e belicista.
Solução política
Conflitos nacionais como o sérvio-kosovar não serão resolvidos nos marcos do capitalismo, muito menos em decorrência de intervenções imperialistas. O uso da força por parte dos EUA-Otan contra os sérvios se voltará também contra os albaneses. Sob o tacão norte-americano ou euro-atlântico, Kosovo jamais será independente e a Albânia nunca recobrará a sua liberdade e independência. A solução de fundo do problema nacional – e no mundo há muitos – só ocorrerá nos marcos de um ordenamento político, econômico, social distinto da atual. Numa sociedade socialista, sem os graves erros cometidos no passado, sem artificialismos nem imposições, será possível encontrar um encaminhamento correto para a questão das nacionalidades.
Enquanto isso, é imperioso encontrar saídas nos marcos da situação atual. Primeiramente, é necessário pôr fim aos bombardeios e cessar a intervenção imperialista. Em seguida, fazer valer a opinião de que a soberania nacional e a integridade territorial da Iugoslávia precisam ser asseguradas e reconhecidas internacionalmente. Paralelamente a isso, garantir o retorno dos refugiados albaneses aos seus lares em Kosovo e encontrar uma solução justa para o exercício dos seus direitos, através de um novo estatuto de autonomia.
EDIÇÃO 53, MAI/JUN/JUL, 1999, PÁGINAS 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43