O desempenho da economia mundial no ano de 1998 foi trágico. A crise se abateu profunda sobre o capitalismo. Sua “globalização”, com rapidez inaudita, acentuou problemas, provocou impasses e precipitou desmoronamentos.

O crescimento econômico, em 1997, no mundo, já fora pequeno – 4,1%. Caiu mais da metade em 1998, foi para 2%. Cresceu, embora pouco, mantendo-se em nível baixo, na União Européia, onde evoluiu de 2,6% para 2,9%. Retrocedeu nos Estados Unidos de 3,9% a 3,5%. Recuou muito mais na América Latina, foi de 5,5% para 2,8%, com países como o Brasil saindo de 4 e indo para 0%. Na África, foi de 4,5 para 3,8. No Oriente Médio de 4,7% para 2,8%. Na Rússia despencou de 0,9 para -6%. No Japão, de -0,7% foi para cerca de -2%. Na Tailândia, Coréia e Malásia esbarrou em -6,5%. Na Indonésia atingirá, no negativo, cerca de 16%. E na China, foi aos 8 pontos percentuais (1).

Quando, a este feito verdadeiramente notável, acrescenta-se o de estar a China contemplando 19 anos consecutivos de crescimento médio de 9% ao ano, a admiração aumenta e suscita a pergunta – afinal, poderia ser imitado, o que a China está fazendo?

O empresário brasileiro Benjamin Steinbruch (2) escreveu, há pouco, na Folha de S. Paulo um artigo intitulado “Um negócio da China”, onde tratou exatamente de “procurar saber o que eles fizeram e que poderíamos ter feito” (3). Lembrou que a China exportava, em 1980, menos que o Brasil e hoje vende US$ 183 bilhões, o triplo do Brasil; e observou que o PIB chinês saltou a marca do US$ 1 trilhão, estando prestes a ultrapassar o da Inglaterra! Na mesma linha, poder-se-ia acrescentar ter sido de US$ 40 bilhões o superávit da balança comercial chinesa em 1998 e ter as suas reservas cambiais atingido a espantosa cifra de US$ 140 bilhões, só inferiores às do Japão.

Steinbruch fez referências procedentes sobre o empenho da China para produzir e exportar, referiu-se à “prioridade máxima à geração (ou manutenção) de empregos” definida pelos chineses e realçou “o programa chinês de exportações”. Entretanto, tece loas ao que chamou de “processos de privatização de empresas estatais deficitárias”, entusiasmando-se com as “mais de 100 mil pequenas empresas estatais deficitárias que agora começam, velozmente, a ser privatizadas”. Chega a falar em “privatização de estatais estratégicas” (sic)! E sinaliza para o Brasil uma decidida política de exportação e uma resoluta privatização, lições supostamente inspiradas no exemplo chinês.

Na história do Partido Comunista da China, muito antes da tomada do poder em 1949, a busca de um caminho próprio já estava posta

As duas lições que o Brasil deveria incorporar, segundo Steinbruch, a partir da experiência chinesa, refletem uma compreensão deformada do que se faz no grande país asiático. A China, inquestionavelmente, promove um grande e bem-sucedido programa de exportações. Mas, seu principal, prolongado e bem sucedido empenho é com o desenvolvimento interno, econômico político e social, visando a levantar a sociedade e criar um enorme mercado. A privatização, como política, ou como conceito, ou como tema em pauta, ou mesmo como palavra solta em análises informais está conclusivamente afastada do vocabulário econômico chinês. Nada do que lá se faz com as estatais diz-se que é privatização, nem tem a ver com privatização, nem é chamado de privatização, nem se assemelha com o processo que tem aqui esse nome – e que transfere, a custos irrisórios, patrimônios públicos, muitas vezes estratégicos, ao domínio privado, muitas vezes estrangeiro.

No ocidente, e nesses tempos do arrogante “pensamento único” neoliberal, felizmente, agora, desmascarando-se, as análises e mesmo os noticiários sobre a China são tão profundamente adulterados que sua realidade permanece incompreensível e enigmática. A Folha de S. Paulo, por exemplo, noticiou o informe prestado por Jiang Zemin, presidente do Partido Comunista da China, na abertura do XV Congresso do Partido, em setembro do ano passado, em Pequim, com a seguinte manchete: ”PC faz ofensiva contra estatais e corrupção”. A matéria, transcrita de jornal estrangeiro, deu a conhecer que Jiang anunciou sua “decisão de que privatização será o principal método usado para resolver o problema das estatais” (4). E entretanto, no alentado informe apresentado por Jiang Zemin, a palavra privatização não é citada uma única vez, nem de passagem. O informe é recheado de informações importantes, assuntos polêmicos e conceitos novos, de largo interesse ideológico e acadêmico, nenhum dos quais referidos na reportagem. A hipótese de “venda” de estatais é admitida uma vez no texto, no capítulo V, como a sétima e última opção para as pequenas empresas de propriedade do Estado. Quem apenas leu a notícia da Folha de S. Paulo sobre o informe de Jiang Zemin ao XV Congresso do PCCh no que respeita à política sobre as estatais, ficou com a informação inversa da verdadeira.

Esse desconhecimento produzido sobre a China é muitas vezes acompanhado de teses fantasiosas sobre aquele país. Seu desenvolvimento, por exemplo, é apresentado como um feito do capital estrangeiro e das leis do mercado, não se sabendo por que esses personagens, tão amplamente presentes em todo o mundo, não repetiram sua proeza em outros países, como México, Coréia, Tailândia, Indonésia, Rússia, Japão, Brasil, ou algum outro lugar qualquer, onde contam com governos servis.

Ao sistema ou modelo que os chineses consideram ajustado à etapa primária que o socialismo vive na China eles chamam de “economia socialista de mercado”

A motivação da estupenda ignorância criada nos meios ocidentais sobre a realidade da China relaciona-se com o esforço ideológico inflexível dos centros capitalistas irradiadores de informações e idéias de forjar o entendimento de que o socialismo acabou. Por isso falam da China omitindo completamente a questão central em torno da qual a China se move – seu sistema econômico socialista – optando por elidir informações cruciais e forjar outras. A revista Pequim Informa frequentemente repete, com paciência, o lema “conheça a China pelo que ela diz de si própria”. Com procedência.

O socialismo, como tudo que é humano, ou evolui ou perece

O discurso que os ideólogos do capitalismo sustentam hoje para robustecer a tese de que o socialismo ou acabou ou está em vias de desaparecer, parte da idéia de que o socialismo restringe-se a um modelo único, concreto, historicamente determinado – o modelo soviético – que efetivamente se exauriu. Como o socialismo na China não reproduz hoje esse modelo, os ideólogos do capital dizem, então, que ele não é socialista. Gostariam que a China tivesse insistido no modelo tornado obsoleto pelo tempo, porque assim, seguramente, teria se acabado, e não existiria essa história, incômoda para eles, do país que mais se desenvolve no mundo, há duas décadas, ser um país comunista…

O modelo soviético de socialismo, conformado na experiência da ex-URSS, expressava-se, grosso modo, do ponto de vista econômico, na estatização de todos os meios de produção, grandes, médios e pequenos e em planejamento e execução grandemente centralizados. As condições gerais do mundo permitiram e de certa forma obrigaram a uma autarquização da economia soviética. A estrutura agrária foi submetida a uma socialização voluntariosa e apressada, onde os camponeses, aliados do socialismo, não foram assim tratados, o que levou até a levantes camponeses.

Esse modelo, nas condições da URSS, e de décadas atrás, a despeito de problemas, conseguiu liberar as forças produtivas e promover estupendos avanços. Mas, ao não evoluir, consolidou uma base burocrática gigantesca, estratificou-se teoricamente, emperrou a máquina produtiva do país, esgotou-se e caiu.

Na história do Partido Comunista da China, muito antes da tomada do poder em 1949, a busca de um caminho próprio já estava posta, desde quando orientações vindas da III Internacional e de Moscou nem sempre correspondiam às condições concretas do país e da luta e causavam prejuízos. Esse esforço pelo respeito às condições do país fica mais evidente a partir da Reunião de Zunyi, no início da Longa Marcha, quando Mao Tsetung assume a direção partidária. Na Campanha de Retificação de Yenan, já como dirigente principal do partido, Mao exorta seus membros a “descartar o método de estudar o marxismo-leninismo de forma estática e sem conexão com a vida”. A conexão com a vida levou a que o caminho vitorioso da revolução chinesa terminasse sendo o do “cerco das cidades a partir do campo”, diferente do apregoado pelo centro do movimento comunista da época, a III Internacional e Moscou.

Depois de 1949, a construção socialista na China inspirou-se, como era de se esperar, no modelo soviético. Conseguiu expressivas vitórias, mas percorreu caminho tortuoso, com altos e baixos. Finda a grande desorganização nacional que foi a “Revolução Cultural”, de 1966 a 1976, num quadro mundial eminentemente novo, e avaliando as excepcionais experiências de construção socialista havidas no mundo e no próprio país, o Partido Comunista da China deliberou, em 1978, alterar o modelo de construção socialista na China, lançando as bases teóricas de outro, que seu principal mentor Deng Xiaoping chamou de “socialismo com peculiaridades chinesas”. O Partido, que elabora esse modelo desde 1978, debruçou-se nas peculiaridades chinesas, onde o socialismo já existe, mas onde sobrevivem importantes e variados fatores, setores e regiões de grande atraso econômico e cultural, com raízes seculares. Concluiu que a China se encontra na “etapa primária do socialismo”.

Nessa etapa, mantido o poder político nas mãos de um governo democrático e popular, sob a direção do Partido Comunista, o novo modelo socialista evidentemente que prevê planejamento, mas um macroplanejamento, que no momento se expressa no IX Plano Quinquenal (de 1996 a 2000), e nas Metas e Perspectivas para o Ano 2010, ambos aprovados em março de 1996. A administração hipercentralizada deixa de o ser, acompanhando a variedade que passa a haver no nível econômico.

Admite-se a coexistência entre diferentes formas de propriedade, inclusive formas diversas de propriedade privada, e até de capital estrangeiro, sob a predominância da propriedade pública. “A propriedade pública, como componente principal da economia, é o princípio básico dos países socialistas”, como está em minucioso estudo que prevê sete tipos dessa propriedade, como a coletiva, a co-propriedade, a propriedade de fundos sociais etc (5). Contudo, a propriedade pública mais importante é a propriedade estatal que “deve controlar os aspectos fundamentais da economia nacional e ter o papel dirigente no desenvolvimento econômico”, como situou Jiang Zemin, no cap. V do seu informe ao XV Congresso do PCCh, em setembro de 1997, o tal que foi anunciado no Brasil como uma “ofensiva contra as estatais” (6).

As áreas onde as estatais devem atuar são discriminadas. O minucioso estudo citado diz: “Sob o socialismo, as atividades econômicas que concernem à soberania e à segurança do Estado, os setores com fortes graus de monopólio e com efeitos notáveis no bem estar público, as indústrias básicas, as indústrias de exploração de recursos nacionais, as indústrias de processamento, os ramos de produção em estado incipiente e as atividades que têm forte incidência na economia nacional e nas condições de vida da população, devem ser firmemente controladas pelo Estado”.

É este sistema ou modelo, que os chineses consideram ajustado à etapa primária que o socialismo vive na China e que chamam de “economia socialista de mercado”. O caminho socialista fica assegurado pelo controle que tem o Estado, dirigido pelo Partido Comunista, sobre o país, em função da predominância da propriedade pública em geral, e da estatal em particular, sobre o conjunto da economia. E o dinamismo que as leis do mercado propiciam também fica garantido, pela presença de formas privadas de propriedade, em intenso intercâmbio com o resto do mundo. Nessa “economia de mercado socialista”, a planificação e o mercado atuam como duas formas de regulação da economia, predominando a que controla a parte principal dos meios de produção e tem o controle do poder político. Ao Estado cabe regular o mercado e a este orientar as empresas.

Em precioso estudo sobre a transição para o socialismo, João Amazonas examina o problema das etapas nessa transição, mostrando que “a sociedade socialista não é uma coisa pronta de uma vez por todas”. E cita Engels: a sociedade socialista “deve ser compreendida em contínua mudança e reorganização” (7). A propósito de eventuais modelos socialistas que lancem mão de formas capitalistas, Amazonas relembrou opiniões de Lênin, como estas: “Nada tem de perigoso entregar a concessionários certo número de fábricas, desde que a maior parte fique nas mãos do Estado socialista”, “O Estado proletário pode, sem mudar sua natureza, admitir o livre comércio e o desenvolvimento do capitalismo na medida e na condição de que o Estado regule o comércio e o capitalismo privado”. Amazonas sintetiza, a partir do “contexto leninista”, cinco normas básicas “acerca da utilização do capital” na construção socialista. Eis a primeira: “é vantajoso e necessário, nos países atrasados, onde o poder está nas mãos do proletariado, utilizar o capitalismo, sempre que possível, a fim de incrementar as forças produtivas e acelerar o desenvolvimento do país” (8).

A formatação nova que a China está fazendo no seu modelo socialista decorre de um justificado esforço para adaptar seu socialismo às condições do mundo de hoje e às suas próprias condições. Diferentemente do que desejavam os ideólogos do capital, a China reestruturou sua economia, mantendo seu rumo socialista, bandeira, sigla, cor, partido hegemônico e doutrina. E num quadro de dinamismo excepcional.

A reforma da economia chinesa: a modernização socialista

Os analistas chineses consideram ser o período de 1950 a 1956 o da implantação da base econômica socialista na China, ao que se seguiu o período de 1957 a 1966, de esforço de novos empreendimentos. Os anos de 1966 até 1976, foi o da desorganização da “revolução cultural” e a partir de 1978-79 começou o período que está em curso.

Grosso modo, desde o início dos anos cinqüenta até os últimos dos anos setenta, são cerca de trinta anos em que predominou o modelo econômico de inspiração soviética, de planificação altamente centralizada e de uniformização distributiva. A estatização praticamente completa dos meios de produção tirava a agilidade da economia, burocratizava-a, deixava as estatais em quase permanente estado de intervenção governamental desconsiderava a lei do valor e a eficiência econômica ficava comprometida.

Os estudos mostram que mesmo aquele modelo, nas condições de um país descapitalizado, de base produtiva muito frágil e enfrentando graves problemas sociais teve um papel positivo, pois permitiu a concentração de esforços, a planificação central e a execução decidida de projetos vitais. Nos vinte e cinco anos decorridos de 1953 a 1978, a despeito dos desacertos do “Grande Salto à Frente” e da “Revolução Cultural”, a economia chinesa cresceu a 6,1% (9).

É sabido que a reavaliação dos rumos do modelo chinês de socialismo começou no final da “Revolução Cultural”, em 1976, e teve seu momento decisivo nos fins de 1978, quando da reunião da III Sessão Plenária do XI Comitê Central do Partido Comunista da China que aprovou, por proposição de Deng Xiaoping, um plano de reforma do sistema econômico. Desencadeou-se assim o processo de busca de um novo modelo socialista para o país.

A reforma começou pelas áreas rurais onde foram substituídas as centralizadas comunas populares por um sistema que combinava uma administração centralizada com um “contrato de responsabilidade” em nível familiar, com pagamentos em função de rendimentos auferidos sob diversas formas. A aquisição monopolizada estatal dos produtos agrícolas foi gradativamente substituída pela sua circulação no mercado. A estrutura industrial da zona rural foi reajustada, imprimindo-se grande impulso às empresas de cantão e povoado. E implantou-se um conjunto de serviços socializados.

O certo é que, decorrido duas décadas, houve um grande desenvolvimento no campo chinês. A produção de cereais atingiu, em 1998, 490 milhões de toneladas de grãos, 62% a mais que em 1978 (10). Dez grandes projetos estatais de reflorestamento já plantaram 4,2 milhões de hectares de novos bosques. As empresas de cantão e povoado ganharam impulso, ajudaram na industrialização e urbanização rurais e incorporaram cerca de 60% do valor agregado da produção rural chinesa em 1997. Estima-se que, em 1997, trabalhavam nessas empresas aproximadamente 130 milhões de pessoas (11).

Foi a partir dos resultados positivos dessas transformações na área rural que, em 1984, a III Sessão Plenária do XII Comitê Central do Partido Comunista da China adotou medidas para a reforma do conjunto do sistema e para pôr as cidades como o seu alvo principal. O último balanço do realizado até agora na reforma chinesa foi feito no XV Congresso do Partido Comunista da China, no final de 1997, no Informe do secretário-geral do Partido Jiang Zemin.

O informe de Jiang Zemin traça, em suas grandes linhas, o perfil que está assumindo a economia socialista de mercado. Dele podem se fazer os seguintes destaques: “vive a China a etapa primária do socialismo”, onde “uma economia socialista de mercado está em construção”; “o socialismo requer posição dominante da propriedade pública e o desenvolvimento paralelo de diferentes formas de propriedade”; “a posição dominante da propriedade pública deve manifestar-se principalmente através da predominância dos ativos públicos sobre o total dos ativos da sociedade e do controle do setor de propriedade estatal sobre os aspectos fundamentais da economia nacional”; “o setor estatal tem o papel dirigente no desenvolvimento econômico”; “a propriedade pública pode e deve tomar diferentes formas”; “a propriedade coletiva é um componente importante do setor público da economia”; e o “setor não público – empresas privadas e individuais – é um componente importante da economia de mercado socialista da China”. Problema central era de como garantir que as estatais cumpram seu papel, de ser uma forma eficiente, dinâmica e dirigente da atividade econômica.

A reforma das estatais

A economia chinesa que se estruturou, durante cerca de trinta anos, na base da estatização empresarial ampla, moldou suas estatais com os traços desse sistema. A ação governamental se entrelaçava e se confundia com a da gerência das empresas, retirando destas a autonomia de gestão. A distribuição dos rendimentos regulava-se mais pelo igualitarismo que pelo princípio socialista do “a cada um segundo seu trabalho”, fazendo decair a emulação socialista. E os planos, que regulavam rigidamente as empresas, menosprezavam as leis do mercado e a lei do valor, tonando a eficiência econômica das estatais, sua competitividade e produtividade bastante reduzidas. Muitas eram deficitárias. “Em fins de setembro de 1997, 46,7% das empresas industriais registraram prejuízos” (12).
A reforma nessas empresas, empreendida a partir de 1984, perseguiu o objetivo de viabilizá-las, já que, deficitárias, não poderiam continuar como base da economia do país. Essencialmente o que se pretendia era revitalizar o setor estatal mantendo-o estatal, apto a afirmar-se em mercado competitivo. Havia que por de pé as estatais em crise.

A reforma nas grandes estatais mereceu cuidado especial

Foi e está sendo um processo complexo e diversificado o das alterações no sistema empresarial estatal chinês. Porque ele não se deu à margem da competição internacional, mas no processo de “abertura” da economia chinesa ao contato com o mercado externo, posto que, nas condições atuais, já não há qualquer espaço para uma autarquização econômica. E o processo de “reforma e abertura” “colocou numerosas empresas de propriedade estatal em grandes dificuldades” (13). As dificuldades puderam ser superadas porque a “abertura” não escapou do controle do Estado nacional, que não descurou da defesa de sua economia, como se percebe pela tarifa aduaneira média para importação que, só em 1º de abril de 1996, foi reduzida de 36% a 23% para 5.000 tipos de mercadorias (14). A reforma das estatais foi, finalmente, mais difícil porque não existiam modelos a serem seguidos, mas a consciência aguda de que formas inéditas e eficazes de organização produtiva e administrativa teriam que ser encontradas.

O método eleito para a execução da reforma, em sua etapa inicial, foi o da experimentação, fazendo-se desde o início a distinção entre a reforma necessária a uma grande estatal e a que comportavam as pequenas e médias. “O Estado selecionou 1000 empresas-chave” para serem submetidas a transformações estruturais (15).

A reforma nas grandes estatais mereceu cuidado especial. Os exemplos de sucesso, como o de Baogang, foram se multiplicando e, difundindo-se, serviam como paradigmas inspiradores das experimentações próximas (16).

Baogang é a maior estatal que opera com ferro e aço na China e situa-se em Shangai. Sua primeira fase começou a operar em 1985, quando o processo de reforma já se iniciava. Sua segunda fase foi inaugurada em 1991 e, nas duas fases, trabalhavam 40.000 pessoas. A reforma encampou a idéia das corporações ou dos conglomerados, encaminhando para separar do corpo principal da siderúrgica. A partir de 1990, os departamentos que pudessem manter ligações próprias com o mercado. A oficina de lingotes deu lugar à Fundição de Baogang. Outra oficina se converteu em Fábrica de Processamento de Maquinaria. O setor de transporte formou a Companhia de Transporte de Baogang. E todas essas empresas passaram a funcionar com a concepção de “gestão empresarial moderna”, buscando aumentar a produtividade do trabalho, incorporar tecnologia avançada e ganhar competitividade. Em 1995, pelo critério dos rendimentos, Baogang encabeçou a lista das “500 primeiras estatais chinesas”. A terceira fase já está em construção e o planejamento prevê que Baogang deve se converter, em 2010, em uma transnacional estatal, que atua na indústria, no comércio e em finanças, e que seja “uma das 500 principais empresas do mundo”! (17).

Em 1995 o Estado fez uma mudança na abordagem da reforma nas estatais. O eixo principal deixaria de ser a revitalização das estatais individualmente consideradas e passaria a ser a economia estatal como conjunto. Em junho de 1996, a Comissão Estatal da Reforma da Estrutura Econômica divulgou documento sobre “A aceleração da reforma nas pequenas empresas estatais” onde procurava traduzir, com o resultado de experimentos, a diretriz de “reformas flexíveis e diversificadas” para as pequenas estatais.

A reforma nas pequenas estatais orientou-se para transformar a propriedade estatal das pequenas empresas em diversas outras formas de propriedade, como a “propriedade por ações, a propriedade cooperativa por ações, a propriedade individual” (18) e outras. Incluía também, a reorganização da estatal, fusão com outras, arrendamento, declaração de falência e dissolução da empresa. De todas essas alternativas, “talvez a fórmula mais importante seja a propriedade cooperativa por ações”, onde os trabalhadores de uma firma compram seus ativos em ações. Pessoa que não pertença à empresa não pode participar dessa compra. Se sai da empresa, não pode levar suas ações, que devem ser transferidas a trabalhadores da empresa. A redistribuição é feita de acordo com o princípio “a cada um de acordo com seu trabalho”, admitindo-se rendimentos que não sejam apenas salariais. Também as reformas bem-sucedidas das pequenas e médias estatais são sistematizadas e exemplarmente difundidas, como as de Sichuan.

Em Sichuan, no oeste da China, seguindo essa política, 3.700 pequenas estatais deixaram de ser propriedade exclusivamente estatal, entre 1993 e 1997. Surgiram “diversas formas de propriedade”, ocorrendo uma alteração nos direitos de propriedade destas empresas que tinham no máximo 500 trabalhadores, cada. A propriedade cooperativa por ações predominou. Como o processo teve certo pioneirismo, “uns cem mil trabalhadores se converteram na primeira geração de acionistas das empresas anteriormente de propriedade estatal. Informa-se que esse sistema tem contribuído muito para o aumento da produtividade das pequenas e médias empresas, e para a responsabilidade de todos perante seus ativos. Tem as características “das empresas cooperativas e das empresas por ações”, sendo considerado “um sistema empresarial com características chinesas” e “uma nova forma de propriedade pública” (19).

A IX Assembléia Nacional Popular, em março de 1998, ouviu do então primeiro-ministro Li Peng minucioso “Informe sobre o trabalho do governo”. Toda uma parte tratou da “reforma das estatais”, considerada “o centro de gravidade da atual reforma da estrutura econômica”. São expostas seis “idéias diretrizes” que devem nortear “novos avanços na reforma das estatais”. A primeira é a “mudança efetiva do mecanismo de gestão dessas empresas”; a segunda é a da “concentração nas grandes empresas e da flexibilidade quanto às pequenas”; a terceira é a das “múltiplas formas de propriedade pública”; a quarta é a da “modernização na administração das empresas”; a quinta admite a “absorção, regula a “quebra”, e o traslado de pessoal excedente a outros postos de trabalho” e a sexta trata da “implantação de uma moderna seguridade social”.

A reforma nas pequenas estatais orientou-se para transformar a propriedade estatal das pequenas empresas em diversas outras formas de propriedade

A reforma das estatais chinesas foi tema de destaque na primeira coletiva à imprensa concedida por Zhu Rongji após sua eleição para primeiro-ministro na IX Assembléia Popular Nacional, em março de 1998 (20). Ele enfatizou os seguintes pontos: “alguns meios de comunicação estrangeiros exageram as dificuldades das estatais chinesas”; “existem na China 79 mil (21) empresas de propriedade estatal, e algumas são muito pequenas, com apenas algumas dezenas de trabalhadores”; “porém existem 500 empresas extraordinariamente grandes, cujos lucros e impostos entregues ao Estado representam 85% do total nacional”; “somente 10% dessas 500 empresas, umas 50, têm prejuízos atualmente”; “em três anos tiraremos das dificuldades a maior parte delas”.

O problema dos excedentes, o desemprego

Subjacente a todo esse processo de busca de eficiência e produtividade nas empresas estatais chinesas, e de reforma da própria economia chinesa como conjunto, um problema inexoravelmente se apresenta, o dos excedentes, que gera o desemprego.

O problema já existia no modelo do socialismo chinês anterior a 1978, não se apresentando de forma tão evidente porque a marca deficitária das empresas garantia o trabalho, de pouco uso intensivo e pouca agregação tecnológica, camuflando, de certa forma, o desemprego, em uma situação insustentável em longo prazo. A marcha da reforma nas estatais e no conjunto da economia acentuou o problema e explicitou-o, acreditando-se que o desemprego chegou a 4% em fins de setembro de 1997, maior índice dos últimos anos, tendo havido naquele momento cerca de 10 milhões de trabalhadores urbanos desempregados (22). Hoje o desemprego estaria em 3,5%.

No exame das causas desse desemprego não aparece nenhuma eminentemente desconhecida, salientando os analistas chineses, entre outras, o desaparecimento do “desemprego encoberto”, a reestruturação das estatais, na base da agregação da tecnologia avançada, a acelerada industrialização no campo liberando mão-de-obra para as cidades, tudo isso que, a um só tempo, explica o aparecimento dos excedentes e o desenvolvimento econômico que o país conhece, mostrando que, diferentemente de outros locais, na China o desemprego atual não é recessivo.

Dir-se-ia que as causas desse desemprego são os pressupostos de sua superação. Mas o que, na questão do desemprego, deve distinguir um país socialista de outros que não o são é o seu empenho em programar a diminuição ou o fim do desemprego com planos específicos, articulados com o avanço do desenvolvimento em geral, mas como parte essencial desse processo. O governo central da China considera hoje o problema do desemprego como “grave porém estável” e o Ministério do Trabalho e Seguridade Social, em 1998, programou resolvê-lo no fundamental em cinco anos (23). Diversas províncias organizam seus “projetos de reemprego” cuja primeira experiência foi a de Liaoning, em 1994, uma província que tem 926 estatais de tamanho grande ou médio. O “projeto de reemprego”, de Liaoning conseguiu colocações, até 1997, para 1,226 milhões de trabalhadores; de 2.300 milhões desempregados. Em 1998 o mesmo “projeto” estabeleceu a meta de arranjar ocupação para 2,426 milhões até o ano 2000, em Liaoning (24).

Os “projetos de reemprego” organizam seus “centros de reemprego”, atividade que em Shangai é apontada como modelo, sendo também ela a cidade de maior número de trabalhadores despedidos de estatais. Os “centros” firmam contrato de três anos com o desempregado, durante os quais cobrem suas necessidades básicas, inclusive saúde, entretenimento e treinamento, ao tempo em que vão à busca de ocupação para o desempregado.

A luta que a China trava contra o desemprego, apoiando-se no seu desenvolvimento e em planos específicos, é parte integrante e fundamental da luta pela elevação do nível de vida de seu povo e contra a pobreza, motivação básica do socialismo. Nessa luta, vitórias significativas tem ocorrido, tanto mais expressivas quanto reconhecidas universalmente.

Em 1997, o Programa da ONU para o Desenvolvimento publicou um minucioso Relatório sobre o Desenvolvimento Humano, onde faz um “balanço da pobreza até o final do século XX”. Há longo e elogioso apanhado do que se faz na China contra a pobreza. Uma passagem afirma: “A China e outros 14 países ou estados cujas populações somam mais de 1,6 bilhão de pessoas reduziram à metade a proporção da população vivendo abaixo da linha nacional de privação de rendimentos nos últimos 20 anos”.

Em estudo de grande repercussão internacional, Joseph Stiglitz, economista chefe do Banco Mundial, relatou curiosa simulação feita pelo Banco sobre aspectos do desenvolvimento do mundo. Disse: “Se as 30 províncias da China fossem consideradas como economias nacionais (na verdade muitas delas têm mais habitantes do que grande parte dos países de baixa renda) elas teriam ocupado os primeiros 20 lugares no ranking das economias que mais cresceram entre 1978 e 1995 (25).

* Membro do Comitê Central do Partido Comunista do Brasil e deputado federal pela Bahia.

Notas
(1) Estimativas do Fundo Monetário Internacional, citadas em “A economia mundial na encruzilhada”, Pequim Informa, janeiro de 1999, número 1.
(2) O brasileiro que comprou a Cia. Vale do Rio Doce, a Cia. Siderúrgica Nacional entre outras estatais privatizadas no Brasil.
(3) Folha de S. Paulo, 22-12-1998.
(4) Folha de S. Paulo, 13-09-1997.
(5) “Diversas formas de propriedade pública”, Pequim Informa, n. 1, janeiro de 1997.
(6) Cf. Nota 4.
(7) João Amazonas, Os desafios do socialismo no século XXI, Anita Garibaldi, 1999, cap. I.
(8) Idem, cap. II.
(9) Cf. Qin Shi, China, Nova Estrela, Pequim, 1997, p. 89.
(10) O Brasil, no mesmo período, com uma área agriculturável bem superior à da China, produziu 79 milhões de toneladas de grãos.
(11) “Desenvolvimento da agricultura e economia rural”, Pequim Informa, n. 5, fevereiro de 1999.
(12) “A economia chinesa segue melhorando”, Pequim Informa, n. 4, janeiro de 1997.
(13) “Wenzhou diversifica sua economia”, Pequim Informa, n. 37, setembro de 1997.
(14) Pequim Informa, n. 20, maio de 1997.
(15) Pequim Informa, n. 28, julho de 1997.
(16) Surge assim a “modalidade Wenzhou”, onde, a partir de 1984, saiu de déficit crônico a grande estatal “Consórcio Dongfang”. Pequim Informa, n. 37, setembro de 1997.
(17) “Reforma nas estatais de Shangai”, Pequim Informa, n. 28, julho de 1997.
(18) Cf. “Sistema cooperativo por ações propriedade empresarial com características chinesas”, em Pequim Informa, n. 37, setembro de 1997.
(19) Idem.
(20) Pequim Informa, n. 14, abril de 1998.
(21) O número de estatais na China varia de acordo com os critérios. Rongji refere-se a estatais digamos federais. Admite-se que incluindo estatais de províncias esse número vai de 300 a 400 mil.
(22) Pequim Informa, n. 4, janeiro de 1998.
(23) “Reemprego: compromisso solene em 1998”, Pequim Informa, n. 20, maio de 1998.
(24) “Reemprego de trabalhadores”, Pequim Informa, n. 28, julho de 1998.
(25) “O pós-Consenso de Washington”, em Folha de S. Paulo, 12 de julho de 1998.

EDIÇÃO 53, MAI/JUN/JUL, 1999, PÁGINAS 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55