Bombas sobre a Europa: o assalto à razão no ataque do império
Tal como em 1918, tal como em 1945, será fácil, dentro de alguns anos, explicar aos jovens porque, de repente, em março de 1999, a Força Aérea norte-americana começou a despejar bombas no coração da Europa.
Hoje é muito difícil clarificar as coisas porque os pretextos invocados pelo agressor – que é singular embora mascarado de plural – são falsos mas foram trabalhados para serem consumidos como verdades através de uma gigantesca engrenagem midiática controlada pelos responsáveis do crime. Assim, no jogo da desinformação, a mentira é imposta como verdade e vice-versa.
O novelo de absurdos principia no motivo invocado para justificar as bombas que explodem na Iugoslávia. Washington e os seus aliados da Otan acusam o governo de Milosevic de se recusar a assinar o Acordo de Paz de Rambouillet. A argumentação, mais do que farisaica, é pouco inteligente. Não há acordo sem consenso. O que Belgrado recusou foi um Diktat, de contornos hitlerianos, cuja aceitação implicava a ocupação militar de parte do seu território por forças da Otan.
Nestes dias de angústia, o criminoso bombardeamento da Iugoslávia insere-se numa crise de civilização, a mais complexa e grave desde a desintegração do Império Romano do Ocidente. Na era em que a informação é difundida à velocidade da luz, quando o espaço e o tempo únicos mudam a vida – a incomunicação aumenta, a desinformação galopa.
Poucos percebem que o Diktat da Otan é uma peça a mais numa estratégia que visa à perpetuação do domínio político, militar e econômico dos EUA sobre o planeta Terra. Chegou agora a vez da Europa.
Nesta agressão três aspectos merecem atenção especial
O primeiro deles é inseparável da cascata de mentiras sobre o Kosovo. O noticiário das agências e os analistas políticos repetem diariamente que a maioria da população do Kosovo é de origem albanesa. Omitem, porém, que o Kosovo, para qualquer iugoslavo, é o próprio berço da nação. Ali se formou o primeiro reino feudal sérvio quando, durante o caos posterior ao desmoronamento de Roma, tribos de eslavos do sul começaram a invadir a Ilíria, chegando ao mar Adriático. O Kosovo foi mais tarde o bastião da resistência do povo sérvio à invasão dos turcos otomanos. Só muito recentemente, após a Primeira Guerra Mundial, os descendentes de imigrantes chegados da Albânia principiaram a tornar-se maioria, em consequência de uma elevadíssima natalidade.
No Kosovo há 18 nacionalidades, três idiomas diferentes e três religiões entre dois milhões de habitantes, apertados numa área equivalente ao Distrito de Beja.
Tal como ocorreu na Nova Caledônia onde hoje os colonos franceses superam em número os autóctones canacas, no Kosovo uma nacionalidade foi em poucas décadas transformada em minoria no território que é seu há mais de mil anos.
Porventura se no Minho se instalasse uma comunidade de imigrantes espanhóis, majoritária, aceitariam os portugueses de Viana e Braga a futura união à Espanha?
A outra faceta pouco comentada da crise é a relativa à premeditação da mesma pelos EUA.
Fala-se muito do direito à auto-determinação dos kosovares, mas na realidade estamos perante um processo de extra-determinação, meticulosamente concebido e preparado com grande antecedência.
O dossiê do Kosovo esteve congelado, de reserva, durante o prolongado processo da guerra na Bósnia-Herzegovina. Quando os bombardeamentos da OTAN criaram ali as condições para a aplicação dos chamados Acordos de Dayton – outro Diktat brutalmente imposto – Washington começou a armar os kosovares. Simultaneamente uma campanha de âmbito mundial apresentou a política iugoslava no Kosovo como de inadmissível violação dos mais elementares direitos humanos.
A escalada nas exigências foi rápida. Há poucos meses, em outubro, o mediador norte-americano, Richard Holbrooke, ainda era modesto nas exigências: pedia apenas a presença na Região de 2000 observadores, sem armas, da Organização para a Segurança e a Cooperação na Europa (OSCE). Em fevereiro mudou o discurso: Clinton intimidou Belgrado a aceitar a ocupação do Kosovo por tempo indeterminado pela Otan que ali manteria 30 mil homens.
Washington somente não exigiu a independência imediata do Kosovo com receio das conseqüências de tal opção. Se tal acontecesse a minoria kosovar da Macedônia reivindicaria imediatamente a sua incorporação no novo país. Por outras palavras: a frágil República da Macedônia desintegrar-se-ia, aquecendo mais a caldeira balcânica. Búlgaros, gregos e turcos não permaneceriam de braços cruzados. Seria o caos na Região.
Como deputado, participei durante quatro anos nos debates sobre os problemas balcânicos que se desenrolaram nas Assembléias Parlamentares do Conselho da Europa e da União da Europa Ocidental (UEO). Foi uma experiência inesquecível. Uma febre guerreira parecia infectar a esmagadora maioria dos deputados das duas organizações. Socialistas, conservadores, liberais, democratas cristãos, as quatro maiores famílias partidárias da Europa, defendiam a escalada militar contra os sérvios da Bósnia magnificando os muçulmanos como anjos da paz vítimas da fúria homicida de inimigos implacáveis.
Recordo que na votação de projetos de resolução submetidos ao plenário éramos poucos os que nos opúnhamos. No caso específico da Bósnia muitos textos foram aprovados em sucessivas sessões com apenas três votos contra: os dos deputados do Partido Comunista da Grécia e do Akel de Chipre, e o meu, que representava o PCP.
O belicismo dessas assembléias, felizmente, não produzia conseqüências práticas. A UEO não dispunha de forças militares próprias e o Conselho da Europa é um parlamento meramente consultivo.
Do Kosovo pouco se falava então. O dossiê estava na reserva, para ser colocado na mesa como coelho extraído de uma cartola. A OTAN preparava sem pressas o seu aparecimento no cenário balcânico.
Sempre que nas minhas intervenções em Estrasburgo e Paris denunciei o perigo iminente de um envolvimento militar dos EUA nos conflitos europeus através da OTAN fui acusado de anti-americano, irresponsável e fanático.
Em fevereiro de 1992, no decurso das reuniões da Comissão Política da Assembléia Parlamentar da UEO com altas personalidades norte-americanas, tive a oportunidade, em Washington, de participar de encontros interessantes no Pentágono, no Departamento de Estado e no Congresso. Por uma feliz coincidência foi nessa época que o New York Times divulgou o conteúdo de um explosivo relatório secreto elaborado pelo Departamento de Defesa dos EUA. Segundo esse texto, a hegemonia política e econômica norte-americana para poder perpetuar-se, contrariando a tradição histórica da ascensão e queda dos grandes impérios, teria de impedir, custasse o que custasse, a emergência no planeta de qualquer poder militar em condições de questionar a supremacia dos EUA. Nesse relatório, a tendência registrada na Europa, sobretudo na França e na Alemanha, para a criação de um poder militar próprio suscetível de tornar desnecessária a presença no Continente das tropas dos EUA era apresentada como uma ameaça que o Governo norte-americano tinha o dever de neutralizar.
Fiz perguntas incômodas numa reunião no Pentágono. Foram naturalmente mal-recebidas, tal como aconteceu quando, em 1994, visitei com a Comissão Política da UEO o quartel general da Otan, em Bruxelas. Eu era, então, o único comunista nessa Comissão.
Evoco estes episódios por iluminarem facetas de políticas e situações históricas que tiveram desenvolvimentos explosivos inseparáveis da ânsia ilimitada de poder do império americano e das contradições existentes entre as suas metas estratégicas e os interesses dos povos do Velho Mundo.
A Iugoslávia foi selecionada como alvo e vítima de uma agressão militar gratuita, monstruosa, desencadeada à revelia do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Progressivamente os EUA impõem a lei da selva nas relações internacionais.
A Iugoslávia, entretanto, não passa de um instrumento nesta estratégia que rotiniza o terrorismo de Estado. No âmbito da Doutrina de Samuel Huntington, que faz dos EUA a nação predestinada, com a missão quase divina de governar o mundo, instituindo pelas armas – quando necessário – a Pax Americana, as grandes derrotadas nesse processo são a Europa dos 15 e a Rússia.
Ao participarem como cúmplices na guerra imposta à Iugoslávia, o Reino Unido, a Alemanha, a França, a Itália e outros estados e países membros da Otan não se aperceberam ainda de que para eles a Cruzada apresenta facetas suicidas. As bombas da OTAN que explodem de Belgrado ao Montenegro, de Pristina às fronteiras da Macedônia, da Albânia, da Romênia, da Bulgária configuram uma agressão indireta a uma desejada reumanização do projeto de uma Europa unida pela solidariedade de seus povos. A reação dos mercados financeiros, esse monstro que desgoverna, desestabiliza e arruína o mundo, carrega uma primeira advertência: o dólar sobe, o euro cai.
A agressão, concebida, planejada e organizada em Washington, configura, paralelamente, um crime contra a humanidade. A clivagem Norte-Sul, transparente na polarização dos debates sobre o Kosovo travados na Comissão dos Direitos do Homem, em Genebra, confirma que a Europa segue a reboque dos EUA. Não compreendeu que está a ser empurrada para o abismo. É trágico que países que pretendem ser os responsáveis pelos mais altos valores da civilização dita ocidental assumam nestas semanas a responsabilidade pela prática de um crime de genocídio.
No seu delírio midiático, Bill Clinton, ao multiplicar os apelos à destruição da Iugoslávia, exigindo na prática a rendição incondicional do pequeno e pobre povo agredido, insiste, num discurso de recorte quase bíblico, em apresentar Milosevic como um herdeiro político de Hitler.
Não correrá muita água pelo Danúbio até o dia em que, rompida a cortina de mentira erguida pela engrenagem de um sistema midiático perverso – no qual os jornalistas atuam como funcionários da rede-teia de aranha – o desenvolvimento da História aclare que são, afinal, os EUA, neste último ano do segundo milênio da Nossa Era, quem retoma na condução da sua estratégia de hegemonismo os métodos do Reich nazista.
O sistema de poder que em Washington transforma em política de Estado os seus projetos imperiais, o núcleo belicista que defende a tese do império perpétuo, os generais, os congressistas e os intelectuais que insistem, em nome da ajuda humanitária, em desencadear agressões armadas contra os povos – como fizeram em Granada e na Somália e agora na Iugoslávia – esses sim, comportam-se como porta vozes de um sistema de poder que nas suas relações internacionais somente encontra precedente pelo amoralismo do Reich hitleriano.
A agressão à Iugoslávia traz à memória o covarde ataque à Polônia em setembro de 1939.
O assalto à razão que identificamos no bombardeamento selvagem da Iugoslávia é irmão do assalto à razão que nos anos de 1930 começou a encaminhar a Europa para a matança da Segunda Guerra Mundial.
Neste quadro assustador, a consciência dos povos começa felizmente a despertar, embora muito lentamente. A condenação da cruzada criminosa vem dos próprios EUA onde em dezenas de cidades saem às ruas manifestações exigindo o fim da agressão. Por toda a Europa a oposição ao genocídio da Iugoslávia cresce a cada dia. Centenas de milhões de homens e mulheres começam a perceber que qualquer Estado, qualquer povo que ouse defender a sua soberania pode vir a ser o próximo alvo das bombas americanas.
Inesperadamente, Belgrado passou a ser uma trincheira da defesa de princípios e valores universais. Paradoxalmente essa tarefa homérica foi imposta aos iugoslavos pela necessidade de sobreviver.
Diríamos estar contemplando, angustiados, o prólogo de uma tragédia grega atualizada. Pelo simples ato de Resistir, o povo da Iugoslávia assume neste momento uma representação que o transcende. O gigantesco poder da máquina midiática da desinformação não pode alterar o significado da história em movimento. A luta do povo iugoslavo em defesa do seu direito à soberania plena e à independência passou a ser, como foi a do vietnamita, como é a do cubano, um combate pela humanidade, pela defesa de um projeto de vida que principiou a tomar forma há três milênios nas civilizações nascidas quase simultaneamente na China, nas margens do Indo, do Nilo e do Tigre-Eufrates.
Miguel Urbano Rodrigues é jornalista.
EDIÇÃO 53, MAI/JUN/JUL, 1999, PÁGINAS 44, 45, 46, 47