A política econômica seguida tradicionalmente no Brasil engendrou uma sociedade com graves distorções e sujeita à crises intermitentes de balança de pagamentos. Não podemos ignorar esse fato se pretendemos compreender a inflação crônica que caracterizou a economia brasileira, tanto nas fases de crescimento quanto nas de recessão.

A estratégia de estabilização adotada pelo governo a partir de 1994 ignorou esplendidamente essa realidade. Ora, a instabilidade vinha reduzindo a governabilidade do país desde os anos 1970, quando mudou a conjuntura internacional marcada pela alta do preço do petróleo e, no fim daquele decênio, pela elevação abrupta das taxas de juros no mercado internacional.

O primeiro passo da nova política implantada há cinco anos consistiu em tirar proveito do aumento conjuntural de liquidez internacional. Deu-se, assim, mais elasticidade à oferta interna de bens de consumo, mas se inverteu a posição do balanço comercial que, de positivo, passou a ser fortemente negativo. Isso favoreceu a massa de consumidores, o que produziu dividendos políticos consideráveis.
Como era de se prever, logo se manifestou um desequilíbrio na balança de pagamentos.

Diferentemente do ocorrido no passado, quando se enfrentava esse tipo de desequilíbrio manipulando o câmbio, desta vez privilegiou-se a estabilidade de preços, facilitando o endividamento externo de curto prazo e elevando de forma exorbitante as taxas de juros. Essa política de juros altos provocou a redução dos investimentos produtivos e uma hipertrofia dos investimentos improdutivos. O país começou a projetar a imagem de uma economia distorcida que se endivida no exterior para financiar o crescimento do consumo e investimentos especulativos, alienando o patrimônio nacional mediante um programa de privatizações. A recessão tornou-se inevitável.

Não seria o caso de culpar os formuladores do novo plano de estabilização, que haviam recomendado uma política compensatória fiscal, a qual engendraria uma elevação compulsória da poupança. É sabido que essa nova política foi concebida nos Estados Unidos, com a colaboração de técnicos do FMI, o que explica que se haja tido em conta as peculiaridades do processo legislativo brasileiro, o qual está longe de ter o nível de racionalidade ao gosto dos tecnocratas. Por outro lado, os dividendos políticos produzidos pela estabilização dos preços inebriaram os dirigentes do Poder Executivo, o presidente da República à frente, que expôs o país a riscos excessivos para garantir a própria reeleição.

“O primeiro passo da nova política implantada há cinco anos consistiu em tirar proveito do aumento conjuntural de liquidez internacional”

Assim, fez-se evidente que a economia brasileira se auto-condenara a ter de apelar para uma ruinosa moratória cujo impacto internacional seja necessariamente considerável. Foi o temor a essa repercussão que abriu espaço para uma ação preventiva de apoio ao Brasil comandada pelas nações mais ricas e articulada pelo FMI. Mais uma vez evidenciou-se que as instituições internacionais são incapazes de mobilizar os recursos requeridos para evitar rupturas de pagamentos de grande vulto.

Os parcos recursos que as instituições internacionais intermedeiam são aplicados a taxas de juros que pouco alívio trazem aos devedores. Não obstante a excepcionalidade do caso, os recursos postos à disposição do Brasil aprofundaram seu endividamento, particularmente se se tem em conta que as condicionalidades do FMI agravam seriamente a recessão. A estratégia desse órgão baseia-se em um planejamento da recessão, cujo objetivo parece ser forçar a adoção de um sistema de currency board, ou seja, de dolarização progressiva, à semelhança do ocorrido na Argentina. Isto implica que o Brasil, super-endividado, deve compartilhar com o sistema financeiro internacional o governo do país. Diante desta perspectiva, teríamos de reconhecer que o recurso à moratória seria um mal menor em comparação com a abdicação da responsabilidade de autogovernar-se a que seríamos levados pela dolarização.

O essencial é que o entendimento com os credores seja adequadamente programado nos planos externo e interno. Os aliados potenciais internacionais são os grupos industriais esmagados pelas taxas de juros exorbitantes e a classe trabalhadora, vítima do desemprego generalizado. Caberia inspirar-se – como sugestão – no capítulo 11 do Código de Bancarrota dos Estados Unidos, conforme recomendou a UNCTAD (Conferência sobre Comércio e Desenvolvimento) da ONU. No plano externo, cabe lutar por uma reestruturação do sistema financeiro internacional, no sentido de reduzir a volatilidade dos fluxos de capital em curto prazo.

Em síntese, voltar ao processo de endividamento externo ao sabor das vagas de liquidez do mercado financeiro internacional é aceitar o risco de uma moratória catastrófica, o que parece ser o objetivo dos que se empenham em liquidar o que resta do patrimônio público (leia-se Petrobras) e em ceder às instituições supranacionais o comando do sistema monetário brasileiro (leia-se dolarização). Se privatizarmos o atual sistema bancário controlado pelo governo (Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal), estaremos em realidade submetendo a interesses privados os instrumentos da política econômica, o que significa tornar sem função o Banco Central. De toda forma, isso ocorrerá se mergulharmos numa progressiva dolarização, na conformidade dos compromissos assumidos com os credores externos sob orientação do FMI.

“O país começou a projetar a imagem de uma economia distorcida que se endivida no exterior para financiar o crescimento do consumo e investimentos especulativos, alienando o patrimônio nacional mediante um programa de privatizações”

Que fazer?

Nosso propósito é sugerir um certo número de temas para introduzir a discussão dos problemas com que se defronta atualmente o nosso país.

O objetivo a alcançar em longo prazo é uma reforma de estruturas para retomar o processo de construção interrompido a que me referi em livro publicado no começo do decênio. A estratégia a ser seguida comporta uma ação em três frentes.

A primeira delas visa a reverter o processo de concentração patrimonial e de renda que está na raiz das distorções sociais que caracterizam o Brasil. Nosso país se singulariza por dispor de considerável potencial de solos aráveis não aproveitados, fontes de energia e mão-de-obra sub-ocupada. Esses fatores dificilmente se encontram em outras partes do planeta. Ao mesmo tempo, abriga dezenas de milhões de pessoas desnutridas e famintas. Esse é um problema de natureza política, e não propriamente econômica, como o bem demonstrou o economista hindu Amartya Sen, o mais recente Prêmio Nobel de economia.

Esse autor demonstra, com clareza, que o problema das fontes epidêmicas e da pobreza endêmica em amplas áreas do mundo atual – e o Brasil é um exemplo – não seria resolvido mediante o aumento da oferta de bens essenciais nos países concernidos. É o que ele chamou de “enfoque da habilitação”.

Para participar da distribuição da renda social é necessário estar habilitado por título de propriedade e/ou pela inserção qualificada no sistema produtivo. O processo de habilitação está bloqueado em certas sociedades, como a brasileira. Isso é evidente com respeito às populações rurais sem acesso a terra para trabalhar ou que devem pagar rendas escorchantes para ter esse acesso. O mesmo se pode dizer das populações urbanas que não estão habilitadas para ter acesso à moradia. As instituições que permitem a concentração em poucas mãos da formidável valorização das terras urbanas respondem pela miserabilidade de grandes massas da população. A pobreza em massa, característica do subdesenvolvimento, tem com freqüência origem numa situação de privação do acesso à terra e à moradia. Essa situação estrutural que não encontra solução por meio dos mecanismos dos mercados.

“Voltar ao processo de endividamento externo ao sabor das vagas de liquidez do mercado financeiro internacional é aceitar o risco de uma moratória catastrófica, o que parece ser o objetivo dos que se empenham em liquidar o que resta do patrimônio público (leia-se Petrobras) e em ceder às instituições supranacionais o comando do sistema monetário brasileiro (leia-se dolarização)”

A segunda frente a ser abordada é a do atraso nos investimentos no fator humano – que se traduz em extremas disparidades entre salários de especialistas e do operário comum. Os salários de um engenheiro de produção no Brasil, por exemplo, rivaliza com o de países desenvolvidos de média renda e é três vezes mais alto que o do México, cuja renda per capita é superior à nossa. Enquanto isso, o salário do trabalhador não especializado se nivela, no Brasil, com os mais baixos da América Latina. O índice de desenvolvimento do fator humano das Nações Unidas, que inclui referências sociais ao lado de necessidades econômicas apresenta nosso país como um caso claro de atraso no desenvolvimento social relativamente ao nível de renda per capita. Deduz-se desses dados que o Brasil acumulou historicamente considerável atraso em investimento no fator humano, ou seja, na promoção do bem-estar da massa da população. A miséria de grande parte do povo brasileiro é contrapartida do hiperconsumo, que é o traço dominante de uma pequena minoria.

A terceira frente de ação refere-se à forma de inserção no processo de globalização. Esse processo traduz a prevalência das empresas transnacionais na alocação de recursos raros, decorrência da importância crescente do fator tecnológico na orientação dos investimentos.

Constitui equívoco imaginar que o processo de globalização responde pela instabilidade dos mercados monetário e financeiro em escala internacional. Essa instabilidade decorre da desregulamentação dos sistemas de controle desses fluxos a partir do desmantelamento das instituições de Bretton-Woods e da adoção do dólar como padrão monetário dominante.

Para abordar a problemática com que se defronta atualmente o Brasil faz-se necessário partir de uma perspectiva histórica. Somente assim será possível distinguir questões estruturais, crônicas, das conjunturais, decorrentes da política que vem sendo seguida pelo governo atual. Conforme já observamos, o nosso é um país com notória tendência à concentração da riqueza e da renda, particularmente no que concerne a investimentos no fator humano. Disso resulta uma sociedade que tolera extremas desigualdades sociais e cujos grupos de altas rendas apresentam forte inclinação ao consumismo. Nesse quadro estrutural, voltado para o consumo, a poupança é praticamente inexistente, o que explica a notória insuficiência de recursos destinados à inversão e à propensão ao endividamento externo. Esse contraste entre o desejo de acesso à modernidade e a carência de poupança própria está na raiz da tendência ao desequilíbrio inflacionário.

Não devemos ignorar que nosso país está sob a forte influência cultural dos Estados Unidos, cujo dinamismo se baseia no hiperconsumo e se traduz numa propensão crônica ao endividamento interno e externo. Ora, os Estados Unidos emitem uma moeda de circulação universal, o que lhes permite endividar-se em condições privilegiadas. Nosso caso é exatamente o inverso, pois nossa história está marcado por experiências de inadimplência.

A globalização é vista atualmente como um imperativo histórico que condiciona a evolução de todas as economias. Mas não devemos perder de vista a diferença a que já nos referimos entre globalização em nível dos sistemas produtivos e a globalização virtual dos fluxos financeiros e monetários. A primeira, dos sistemas produtivos, é processo antigo, decorrente da evolução tecnológica, enquanto a segunda, dos fluxos financeiros, ocorre principalmente em torno dos centros de poder que se estruturam no mundo desenvolvido, tendo como pólo os Estados Unidos, a Eurolândia e o Japão. A pressão que se manifesta visa a simplificar os sistemas monetários a partir desses três pólos de dominação, o que é racional do ponto de vista das economias desenvolvidas que fundam seu dinamismo essencialmente nas forças do mercado. No que concerne aos países subdesenvolvidos, nos quais o desenvolvimento depende do enfrentamento de problemas estruturais, o espaço para a ação política é bem maior e exige mais presença de governo. Portanto, necessita-se de uma política monetária ativa sem a qual estaríamos condenados à estagnação. A luta contra o subdesenvolvimento é um processo de construção de estruturas; portanto, implica a existência de uma vontade política orientada por um projeto.

Se o Estado nacional é o instrumento privilegiado para enfrentar problemas estruturais, cabe indagar como compatibilizá-lo com o processo de globalização. Pouca dúvida pode haver de que a globalização dos fluxos monetários e financeiros deve ser objeto de rigorosos constrangimentos, o que exige a preservação e o aperfeiçoamento das instituições estatais. Não se trata de restringir arbitrariamente a ação das empresas transnacionais, e sim orientá-las no sentido de dar prioridade ao mercado nacional e à criação de empregos. Favorecer as tecnologias de ponta pode ser racional se o objetivo estratégico é abrir espaços no mercado externo. Mas, se o objetivo principal é alcançar o bem-estar social não tem fundamento investir em técnicas intensivas de capital e poupadoras de mão-de-obra, como se vem fazendo atualmente no Brasil.

Nosso propósito, portanto, deve ser alcançar três objetivos que, se nos limitarmos a seguir a lógica econômica convencional, podem ser contraditórios, mas que são conciliáveis no plano político se privilegiarmos maximizar o bem-estar do conjunto da população. Esses três objetivos são: a) enfrentar o problema da fome e da subalimentação da população de baixa renda; b) concentrar investimentos no aperfeiçoamento do fator humano de forma a ampliar a oferta de quadros técnicos; e c) conciliar o processo de globalização com a criação de emprego, privilegiando o mercado interno na orientação dos investimentos.

Celso Furtado é economista, ex-ministro do Planejamento no governo João Goulart (1962-63) e da Cultura no governo José Sarney (1986-88). Este texto é resultado de palestra proferida no auditório do jornal Folha de S. Paulo, em 10-05-1999. Agradecemos ao autor por sua autorização para publicação em Princípios.

EDIÇÃO 54, AGO/SET/OUT, 1999, PÁGINAS 29, 30, 31, 32, 33