Apagão na democracia
Em entrevista à TV Câmara, o deputado Aldo Rebelo recentemente referiu-se ao jurista Francisco Campos, o Chico Ciência, como um artesão de leis sinistras. Ele escreveu a Constituição fascistóide de 1937 e colaborou na redação do primeiro Ato Institucional em 1964. Por essas e outras estocadas no Estado de Direito, o jurisconsulto das ditaduras mereceu uma lambada literária do cronista Rubem Braga: “Toda vez que acende a luz do Sr. Francisco Campos há um curto-circuito na democracia”. O estilo e as fórmulas funestas de Chico Ciência estão de volta. Costuram com o fio farpado do arbítrio o conjunto de projetos de leis e de emendas patrocinado pelo governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, por intermédio do líder do PSDB no Senado, Sérgio Machado, para fazer a chamada “reforma partidária”. Se esta luz cinzenta acender, haverá um apagão nas liberdades políticas. Como todo projeto caviloso, o da “reforma partidária” justifica-se com imposturas. Algumas delas seguem relacionadas abaixo, com o devido contraponto, pela simples razão de que está em jogo a reputação de uma velha senhora, briosa e tolerante, conhecida como Liberdade. Não constitui um excesso dizer que muito apaixonado matou e morreu por ela.
Impostura número 1:
O Brasil tem partidos demais
O Brasil tem 30 partidos políticos, dos quais 17 estão representados no Congresso Nacional. A proporção é de um partido para cada grupo de 3,5 milhões de eleitores, nada exagerada num universo de 160 milhões de habitantes. Na Câmara, a média é de um partido para 30 deputados. A atual é quase idêntica à relação da Constituinte de 1946: um para 32. A campanha governamental passa a impressão de que outros países grandes ou importantes têm duas ou três organizações. Dos Estados Unidos, fala-se apenas do Democrata e do Republicano, resultado do afunilamento causado pelo voto distrital que elimina a concorrência. Mas os americanos têm mais 28 partidos, entre eles dois comunistas, três socialistas, vários ecológicos, um fascista, um anti-semita. Admite-se até a candidatura avulsa, como a do empresário Ross Perot que, em 1992, disputou a Presidência como candidato independente e abocanhou 19% dos votos. A Inglaterra tem somente o Trabalhista e o Conservador? Tem mais 30 partidos. E a Alemanha, modelo eleitoral dos nossos “reformadores”? Tem 41. A Índia, 55; a Espanha, 94. Israel, com um eleitorado equivalente ao do Ceará, inscreveu 33 partidos nas eleições de maio – um para 127 mil eleitores (ver Tabela I).
Tabela I (p. 7)
Impostura número 2:
É mais fácil fundar um partido que uma empresa
A legislação partidária é democrática ao incentivar a organização dos cidadãos para a disputa do poder, mas não é tão permissiva quanto se diz. Uma empresa pode ser fundada com dois sócios moradores da mesma cidade, ainda que sejam dois salafrários. Um partido deve ser subscrito por 101 eleitores em pelo menos oito estados e a seguir apoiado por 334 mil cidadãos em pleno gozo dos direitos políticos, para obter o registro definitivo.
Impostura número 3:
Pequenos partidos são legendas de aluguel
Há denúncias de que um e outro trocam votos por cargos, mas tal prática é acintosa nos grandes. O líder do PTB, deputado Roberto Jefferson (RJ) disse pelos jornais, como quem falava de compra e venda de bananas que o governo adquiriu cinco parlamentares petebistas por R$ 150 mil o voto (ou seria a peça?). Os maiores sustentáculos da aliança governista – PFL, PMDB e PPB, considerando que formalmente o PSDB é o partido do governo – condicionam seu apoio a cargos na burocracia estatal. Como na velha anedota política, esta turma não se vende, aluga-se. É interessante notar como a maioria dos partidos acusados de praticar negociatas, engrossam a base governista. O PSD, cujo líder Onaireves Moura foi cassado em 1993 sob a acusação de comprar mandatos, escândalo conhecido como “PSDólar”, integrou a coalizão que elegeu o presidente Fernando Henrique Cardoso.
Impostura número 4:
É preciso reduzir o número de organizações para instituir a fidelidade partidária
A fidelidade já está prevista no artigo 15 da Lei dos Partidos Políticos, de n. 9.096, de 19 de setembro de 1995. O estatuto de cada agremiação deve regulamentar a “fidelidade e disciplina partidárias”, podendo, até mesmo fixar penalidades aos infratores. O debate sobre a fidelidade está enviesado, no entanto, para o vaivém dos indivíduos (os políticos) e não para o torvelinho das organizações (os partidos). A verdadeira fidelidade é a do partido ao programa e ao protocolo da campanha. Na verdade, os caciques das organizações oligárquicas querem submeter um e outro parlamentar ou militante aos acordos arranjados pelas cúpulas, muitas vezes desonrando a história e o programa da organização. Ademais, um estudo dos pesquisadores Angelina Figueiredo Fernando Limongi, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), divulgado pelo Estadão em 16 de maio, mostrou que a fidelidade ao caciquismo é altíssima na Câmara: 90% dos deputados obedecem à orientação do líder, em geral sem consulta ao programa do partido.
Impostura número 5:
A democracia precisa se defender dos grupelhos, daí ser necessária a “cláusula de desempenho”
O projeto do governo propõe que cada partido, para ter representação nos parlamentos, deve conquistar um (elevado) quorum eleitoral: pelo menos 5% do total nacional de sufrágios para a Câmara dos Deputados – distribuídos em, pelo menos, um terço dos Estados, com um mínimo de 2% do total de cada um deles. Eis um esforço para tornar o sistema eleitoral brasileiro pior do que é. A primeira questão: por que exatos 5%? Uma taxa menor, de 1%, digamos, não cortaria a banha sem penetrar na carne? Cinco por cento correspondem a 3,3 milhões dos votos válidos para a Câmara em 1998. Dos 30 partidos que disputaram aquelas eleições, apenas os cinco maiores – PSDB, PFL, PMDB, PT e PPB – passariam tranquilamente por esta barreira. O PDT, que obteve 5,67% dos votos, e o PTB, com 5,66%, raspariam na cerca, e um mau desempenho setorial aqui ou ali os tiraria do cenário político. O PDT, que obteve 3,7 milhões de votos, seria banido da estrutura partidária se não tivesse um político bom de urna como Miro Teixeira.
Os demais, entre eles PL, PSB, PV, PPS, PCB, PCdoB, teriam seus candidatos simplesmente cassados. Ao pé da letra da lei, não poderiam ter nem sequer um vereador. O Partido Comunista do Brasil, que elegeu sete deputados federais, ficaria sem nenhum, e perderia os estaduais e os vereadores que elegeu.
Impostura número 6:
É preciso prestigiar os grandes partidos para fortificar a democracia
E para respeitar as minorias nem se fala. Os cidadãos têm o direito de se associar e se organizar em partidos políticos para disputar o poder. Se um grupo legitimamente articulado eleger um só representante, ele deve ser no parlamento aceito como expressão da vontade popular. Tradicionalmente, os momentos de democracia eleitoral no Brasil asseguram a sobrevivência das minorias e a atuação dos pequenos partidos. Na contramão desta pluralidade, o projeto do governo aumenta a concentração do poder partidário, que, aliás, já ocorre por conta da desigualdade na competição. Os cinco maiores partidos abocanham 83% do Fundo Partidário e 82% do horário eleitoral gratuito. Há uma relação empírica entre esses fatores e os votos. Os cinco grandes conquistaram 62% da Câmara na eleição de 1990, 70% em 1994 e 74,5% em 1998 ver Tabela II). Agora querem disputar sozinhos as eleições. É como se o Carrefour e o Pão de Açúcar propusessem o fechamento dos armazéns da periferia, argumentando que recebem mais compradores que os pequenos concorrentes.
A fórmula funesta da “reforma partidária” fortalece e perpetua esta desproporção ao propor que o partido que não atingir a “cláusula de desempenho” não empossará seus eleitos, nem terá um segundo no horário eleitoral e tampouco receberá um centavo do Fundo Partidário. É como atirar no rio uma pessoa que não sabe nadar e dizer que ela só terá aulas de natação quando chegar à outra margem.
Impostura número 7:
O sistema eleitoral brasileiro fortalece os políticos e esquece os partidos
Temos um sistema eleitoral complexo, fruto de lutas populares que começaram no Império e desaguaram na Revolução de 1930. O Código Eleitoral de 1932, que efetivou o voto secreto e instituiu o sufrágio feminino, é basicamente o que está em vigor – com alterações feitas em 1950 e em 1965. O Código já impõe uma cláusula de barreira, chamada de quociente eleitoral. Como diz a expressão, é o resultado da divisão total de votos válidos pelo número de cadeiras a ser preenchida. No caso de São Paulo, o total de votos válidos (descontados os em branco e os nulos) para todos os candidatos a deputado federal nas eleições de 1998 foi de 15.611.211. Como São Paulo tem 70 cadeiras na Câmara, o quociente eleitoral no estado foi de 223.017 votos.
Apurado a votação de cada partido ou coligação, o TRE a divide pelo quociente eleitoral. Se, no exemplo paulista, a legenda e todos os candidatos de um partido ou coligação receberam um total de 446.034 votos, esse total foi dividido pelo quociente de 223.017. O resultado determinou o número de cadeiras conquistadas: duas.
O quociente é a prova de que, ao contrário do que se diz erradamente, o sistema eleitoral atual não põe a ênfase no candidato e sim no partido. Não importa, portanto, que todos os candidatos de um partido tenham recebido votação inferior ao quociente eleitoral. Importa que o total de votos da agremiação seja superior ao quociente. Se o total for inferior, o partido não elegerá ninguém – eis aí o corte da cláusula de barreira. Em contrapartida, um candidato que tem muitos votos ajuda a eleger os de baixo. Dos 513 deputados eleitos no ano passado, apenas 28 atingiram o quociente eleitoral. Os demais foram eleitos pelo voto dado ao conjunto dos candidatos daquele partido. No Ceará, por exemplo, dos 22 eleitos, apenas Inácio Arruda, do PCdoB, suplantou, com 124 mil votos, o quociente de 120 mil sufrágios.
Impostura número 8:
As coligações devem ser proibidas, já que os partidos devem ter desempenho eleitoral próprio
Introduzidas em 1950, as coligações são outra tradição brasileira que a reforma antidemocrática quer revogar. O governo do presidente Fernando Henrique Cardoso pretende impedir duas ou mais organizações de fazerem a coligação e se apresentarem una perante a regra eleitoral. Como vimos, o sistema eleitoral brasileiro privilegia os partidos (ou as coligações) e não os candidatos, embora o voto seja marcadamente individualizado e personalizado. No figurino do governo, no entanto, a união é inaceitável. Empresas de aviação, bancos, jornais, todos podem fazer acordos operacionais para atuar no mercado econômico, mas dois pequenos partidos seriam proibidos de juntar suas carências para competir no milionário mercado de voto.
Proibir a coligação é matar a política. É a antipolítica. Se dois partidos não podem coligar-se para disputar o voto, em nome de quê podem se unir para governar? A valer este princípio, o governo atual seria exercido unicamente pelo PSDB, a que pertence o presidente da República, e estaria impedido de fazer aliança com o PFL, o PMDB, o PPB, o PL, o PSDólar e outros. Mas aí está o pulo do gato: o governo quer proibir as coligações nas eleições proporcionais – vereadores, deputados estaduais e federais e mantê-las para os cargos majoritários – prefeito, governador, senador e presidente. A base oligárquica sabe que tem fôlego para correr em várias raias parlamentares, mas quando a meta é o Palácio do Planalto prefere marchar unida para não correr riscos. Ademais, cada grande pilastra da base governista aspira ao cargo máximo. É o “rodízio” de que fala o PFL.
Impostura número 9:
O voto distrital é mais democrático porque aproxima o representado do representante
Voto distrital é um retrocesso. Já foi praticado no Império e na República Velha, e só abandonado depois de intensas lutas democráticas contra as distorções eleitorais que ele provoca. Na fórmula planejada pelo governo, chamada de distrital misto, está prevista a volta dos biônicos – candidatos sem voto, sem campanha, sem raízes populares. Gente que não ganharia eleição nem para síndico do prédio de repente será brindada com um mandato de deputado. Tomemos o exemplo de São Paulo, que atualmente tem setenta deputados federais. O eleitor votaria duas vezes: uma no deputado de seu distrito, num total de 35 (metade da bancada de 70), e o outro voto seria dado a uma legenda que teria de apresentar a lista de biônicos que seriam escolhidos para compor a segunda metade da bancada (ver o item abaixo). Se hoje o eleitor pode escolher um candidato de qualquer lugar do estado, pela proposta do governo seria obrigado a votar diretamente apenas nos candidatos do distrito. A justificativa para este voto de curral é que o representante estaria mais próximo dos representados. Se isso fosse verdade, as câmaras de vereadores das cidadezinhas seriam os melhores parlamentos do mundo.
A proposta torna paroquial o Parlamento nacional. Os deputados são legisladores do país, não sacristões municipais. Afinam-se pela cartilha política, não pela cartografia do mandato. Mesmo hoje é bobagem atribuir identidade regional a uma “bancada paulista” constituída de industriais, fazendeiros, trabalhadores, sem falar dos matizes que diferenciam um comunista de um banqueiro. O voto distrital também afunila a disputa e estreita a competição pluripartidária ao reproduzir a desigualdade entre o poder oligárquico (e econômico para a campanha) entre os candidatos dos grandes e dos pequenos partidos.
Impostura número 10:
A lista fechada fortalece os partidos e melhora o nível dos parlamentares
Lista fechada é a relação de biônicos que o partido apresentaria para compor metade da bancada do estado na Câmara ou nas Assembléias Legislativas. As listas seriam aprovadas nas convenções de cúpula, fórum habitual de privilégios, corrupção e caciquismo. Recentemente, numa entrevista à Rede Record, o dirigente Paulo Maluf disse que quando chegar a hora os líderes do PPB (e citou quatro morubixabas) vão escolher o candidato a presidente da República. Se é assim com um cargo arduamente disputado nas urnas, imagine-se como não seria preparada a lista de agraciados com a sinecura de um mandato garantido.
Segundo a proposta do governo, o número de deputados biônicos de cada partido seria proporcional ao voto na eleição direta nos distritos. Grosso modo, se um partido elegesse os deputados de dez distritos teria direito a indicar dez biônicos. Tal cassação do voto direto é justificada com o embuste de que por este artifício o eleitor seria educado a votar em siglas e programas e não em pessoas. A qualidade da bancada seria garantida pelo alto saber dos integrantes das listas, todos nomes capazes de engrandecer o Parlamento. À parte a insinuação de que o povo não sabe votar, tal argumento já foi usado pelo general Ernesto Geisel ao criar os senadores biônicos no Pacote de Abril, em 1977.
O sistema atual, se não é bom, é melhor que o proposto. Funciona como uma lista aberta, como ficou demonstrado no item n. 6: ao escolher um, o eleitor vota por tabela em todos os candidatos do partido ou coligação, mas, compreensivelmente são eleitos os mais votados. Ou seja, um candidato pode ganhar o mandato com a ajuda dos demais (como é o caso de 485 dos 513 que estão na Câmara), mas para tanto precisa pôr o pé na estrada, botar a cara, ao menos na TV, expor-se à devassa das campanhas e conquistar votos. Fora disso, os espertalhões vão cair na única obra duradoura do Sr. Francisco Campos, o Código Penal.
Sérgio Buarque de Gusmão é Jornalista e diretor do Instituto Gutenberg.
Internet: www.igutenberg.org/ [email protected]
EDIÇÃO 54, AGO/SET/OUT, 1999, PÁGINAS 6, 7, 8, 9, 10