A primeira Reunião de Cúpula da América Latina, Caribe e União Européia, realizada no Rio de Janeiro, nos dias 28 e 29 de junho, com a presença de representantes de 48 países, foi um acontecimento histórico. Só o fato de 15 chefes de Estado e de Governo da União Européia se abalarem em bloco para o Rio de Janeiro, deixando para trás os destroços ainda fumegantes de uma Iugoslávia que ajudaram a destruir, revela a importância que atribuíam ao encontro.

Para eles, certamente, a criação de uma área de livre comércio entre a União Européia (UE) e o Mercosul é um grande negócio. Afinal, o mundo parece caminhar mais em direção à formação de blocos regionais de comércio relativamente protegidos uns dos outros, do que para a liberalização mundial dos fluxos comerciais. Se essa formação de blocos regionais é um passo ou o limite da chamada globalização, o futuro dirá. O fato é que a América Latina, o Mercosul e o Brasil em particular, representam importante mercado para as empresas européias que não pretendem vê-lo cativo dos Estados Unidos. Entre 1990 e 1997, as exportações européias para os países latino-americanos aumentaram, em média, 7,1% ao ano. No caso do Brasil, que recebe 32,1% das exportações da UE para a América Latina, o crescimento foi ainda mais espetacular, nossas importações da UE cresceram cerca de 340% entre 1990 e 1997, enquanto o aumento de nossas vendas para os países daquele bloco mal chegou a 30%. É evidente o interesse europeu em manter o acesso privilegiado aos nossos mercados.

É bem verdade que para o Brasil, pelo menos no que diz respeito aos interesses mais imediatos – derrubar as barreiras protecionistas erguidas pela União Européia a produtos agrícolas – os resultados não foram muito animadores. Até 2005 os europeus não querem nem ouvir falar em redução de barreiras tarifárias e eliminação de cotas de exportação impostas aos produtos brasileiros.
Nem por isso o encontro deixa de ter importância histórica para nós, latino-americanos. Pela primeira vez, nos últimos anos, os governantes da América Latina e do Caribe se reuniram sem a permissão e a presença dos Estados Unidos para discutir questões de seu interesse. Num momento em que o mundo se encontra polarizado por uma única potência mundial, os Estados Unidos, que se arvoram em juízes de tudo que ocorre no planeta, tal fato não deixa de ser positivo. É verdade que o presidente Fernando Henrique fez questão de destacar o tempo todo que o encontro não se fazia em detrimento dos interesses americanos. O fato, entretanto, de os países latino-americanos sentarem-se frente a frente com a União Européia como um bloco com identidade e interesses próprios e não mero apêndice dos Estados Unidos, deve ser saudado como um avanço.

Cimeira x Alca

Processos de integração são ordinariamente lentos e complicados. Por desinformação, ingenuidade, ou mesmo por opção, parcela considerável da mídia ressaltou apenas as dificuldades da reunião, sem se dar conta de que iniciado com muito maior antecedência, o caminho da Alca (Área de Livre Comércio das Américas) empacou no mesmo protecionismo de que se acusa, diga-se de passagem, com toda razão, os europeus, além da peculiar arrogância norte-americana, é claro.

Destaque-se ainda a presença de Cuba no encontro. Diferentemente da reunião para discutir a formação da Alca, quando foi excluída da discussão por imposição norte-americana. Cuba ocupou lugar de destaque na Cúpula do Rio. Para nós isso é importante, pois aquele país é parte da sofrida e heróica luta latino-americana para livrar-se do colonialismo europeu e do neo colonialismo norte-americano. Sentar-se em qualquer mesa de negociação enquanto América Latina, aceitando a exclusão de Cuba, como se fez no caso da Alca, é não se dar o devido respeito.

Foi, aliás, o discurso do líder cubano o ponto alto e verdadeiro da Cimeira. Fidel Castro revestiu-se da dignidade dos povos da América Latina e do Caribe ao cobrar dos europeus sua parcela de responsabilidade no caos em que vai se transformando o planeta sob a devastação neoliberal e o Apocalipse Now promovido pelo poderio militar dos Estados Unidos.

Em que pese a permanência, na Europa, de barreiras e sobretaxas aos produtos brasileiros que só em 1998 impediram o Brasil de exportar cerca de US$ 5 bilhões, o encontro foi positivo. Contribuiu para afirmar a vocação brasileira para um relacionamento multilateral em termos políticos, culturais e econômicos.

Afinal, os laços culturais e econômicos do Brasil com a Europa são muito mais sólidos e profundos do que com os EUA. No comércio internacional, a União Européia é o nosso principal parceiro: em 1998 os europeus absorveram 29% de nossas exportações, enquanto apenas 18% destinaram-se aos EUA. A presença de grandes colônias de imigrantes italianos, alemães, portugueses, espanhóis estreita nossos laços culturais, na língua, na culinária, na organização familiar. Enfim, pelos laços que nos unem à Europa, o Brasil tem possibilidade de estabelecer uma ampla rede de colaboração que pode ir muito além de simples relações de comércio, e a Cimeira foi um primeiro passo.

Europa x Estados Unidos

Seria grosseiro erro de avaliação supor o primado absoluto da esfera comercial na tentativa de integração entre a América Latina e a Europa. A aproximação entre povos e países não pode ser medida apenas pela taxa de proteção que cada um impõe a sua produção agrícola ou aos critérios que estabelece para suas compras governamentais.

É necessário perceber e considerar outros aspectos das relações entre civilizações tão distintas quanto a européia e a latino-americana. Não é segredo para ninguém o abismo existencial que separa a Europa (Inglaterra fora, talvez) dos Estados Unidos e o esforço europeu em encontrar alternativas ao poderio político, econômico, tecnológico e militar de seu antagonista.

O europeu comum não suporta a arrogância nouveau-riche dos estadunidenses. É importante observar que se a Europa promoveu a primeira experiência neoliberal com Margareth Thatcher e associou-se aos americanos na destruição da Iugoslávia, foi também do solo europeu que brotaram grandes manifestações contra o horror econômico do neoliberalismo e o horror dos bombardeios da Otan.

Em artigo que escreveu para o jornal Gazeta Mercantil, o embaixador da França no Brasil, senhor Philippe Lecourtier, falava entre outras coisas do “espaço da América Latina na Europa em nossas televisões em nossas salas de cinema ou em nossas lojas de discos”, registrando a necessidade da cooperação na distribuição e na divulgação do setor audiovisual.
Recentemente a França dispensou o visto no passaporte para a entrada de brasileiros no país por um prazo de até 90 dias, e já faz algum tempo que a Itália permite uma segunda cidadania a brasileiros que comprovem ascendência italiana.

As afinidades étnicas, lingüísticas, religiosas, e até mesmo a paixão comum pelo futebol, tão desprezado nos Estados Unidos, oferecem uma base subjetiva que não pode ser subestimada, desde que haja vontade política e persistência na remoção dos entraves que dificultam a aproximação entre estes dois mundos.

Até porque não há entre a América Latina e a Europa o ânimo competitivo das relações marcadas pela tentativa de superação entre esta e os Estados Unidos. Enquanto o gigante norte-americano surge como uma cópia do mundo europeu, a América Latina aparece como uma invenção européia de fisionomia e alma indígena e africana.

Quando as últimas linhas desta breve opinião estavam sendo redigidas, a imprensa informava que o governo argentino aceitara uma espécie de “tribunal” para decidir sobre as tarifas protecionistas unilaterais com que os argentinos ameaçavam seus parceiros de Mercosul, principalmente o Brasil. Onde alguns viram o começo do fim da experiência do bloco latino-americano, é provável que estejamos enfrentando somente mais um grande obstáculo a ser superado com sabedoria, determinação e flexibilidade.

* Jornalista e deputado federal pelo PCdoB, e líder do Partido na Câmara Federal.
Internet: www.aldorebelo.org.br / e-mails: [email protected] e [email protected]

EDIÇÃO 54, AGO/SET/OUT, 1999, PÁGINAS 34, 35, 36