O economista da vida e da morte
“Tudo pelo social!”, devem ter conclamado os membros da Real Academia Sueca de Ciências ao escolherem o ganhador do Prêmio Nobel de Economia de 1998. A honraria coube a um pesquisador de origem indiana, Amartya Sen, da Universidade de Cambridge, há décadas ocupado em propor soluções para atenuar os sofrimentos da miséria humana. Ao que parece, a decisão da Real Academia se fez sob o susto provocado pela crise mundial, que meteu em saia justa o discurso sobre a natureza suprema e transcendental do livre mercado. Pois em 1997, quando os sinais da crise ainda eram classificados como escorregões casuais facilmente corrigíveis na Ásia, o Nobel de Economia foi endereçado a dois norte-americanos especialistas nos “macetes” para a acumulação de fortunas no mercado financeiro, Robert C. Merton (Harvard) e Myron S. Scholes (Stanford), os quais aperfeiçoaram uma complexa equação diferencial criada nos anos 1970 (por Merton e seu colega Fisher Black, já falecido) para avaliar os riscos das operações especulativas nas bolsas de valores, commodities e moedas.
Agora, com a economia mundial em eloquente alerta vermelho, o Nobel foi para um especialista na fome, um homem que juntou ferramentas da Filosofia para “restaurar a dimensão ética na discussão dos problemas econômicos vitais”, conforme a nota formal do anúncio da Real Academia.
A edição de janeiro de 1999 da Scientific American (www.sciam.com) diz que Amartya é mais conhecido como “o acadêmico da pobreza” e, como tal, nunca fez muito sucesso nas rodas de salão. Há décadas ele vem estudando as agruras do povo indiano e propondo soluções sempre solenemente desprezadas.
No final de outubro de 1998, quando a Real Academia anunciou o nome do laureado, uma revista semanal da Índia pôs na capa o rosto de Amartya com a seguinte manchete: “O profeta que ignoramos”. Ele é autor de uma tese segundo a qual fartura não enche barriga. Parece até dizer o óbvio: de que adianta ter comida de sobra se os mais pobres não têm como se apossar sequer das migalhas?
Amartya tem uma vasta produção intelectual sobre a chamada economia do bem-estar, com estudos a respeito dos meios mais justos possíveis de as sociedades alocarem recursos e os distribuírem entre seus cidadãos, sobre formas de se mensurar a distribuição da renda e sobre as condições que determinam a fome como fenômeno social.
Segundo ele, erram os governos que adotam políticas baseadas em apenas duas variáveis: a produção total de alimentos e sua disponibilidade (soma-se a quantidade de alimentos e divide-se o valor pelo número total de pessoas). Esse indicador foi criado no início do século XIX por Thomas Robert Malthus e é, de acordo com Amartya, tão inútil quanto ilógico, pois pode conduzir à conclusão de que há comida suficiente para todo mundo. Assim sendo, os governos que baseiam sua política no índice de Malthus dormem tranqüilos enquanto o barco afunda. Mesmo com um alto índice de alimento por pessoa, um país pode estar vivendo uma dramática crise de fome.
Bangladesh é o caso exemplar estudado por Amartya. Sem se valer de nenhuma equação diferencial de alta complexidade, ele foi buscar lá as provas para uma tese de título macabro – “A Economia da Vida e da Morte” –, publicada na edição de maio de 1993 da Scientific American. No artigo, ele discute a gênese da fome e ataca o que classifica como uma visão essencialmente “econométrica” do problema.
A fome é endêmica em Bangladesh, com picos de maior ou menor gravidade. O mais terrível deles aconteceu em 1974, justamente quando o índice de alimentos por pessoa foi o mais alto no período entre 1971 e 1976. Amartya afirma que a fome é melhor compreendida pelo exame dos canais por meio dos quais o alimento é adquirido e distribuído, assim como pelo estudo do poder de barganha entre diversos setores da sociedade. O drama se enfatiza quando uma parcela substancial da população perde os meios de obtenção de alimentos.
Essa perda pode resultar do desemprego, da queda generalizada do poder aquisitivo dos salários ou de uma variação (para pior) das taxas que expressam as relações de troca entre bens e serviços vendidos pelos mais pobres para a compra de alimentos. Mapear e sistematizar as informações sobre esses fatores e outros processos econômicos que influenciam a capacidade de um grupo social obter alimentos são as condições básicas que deveriam nortear as políticas públicas com o objetivo de evitar ou aliviar a fome.
Em seu estudo sobre a calamidade em Bangladesh, Amartya demostra claramente a necessidade de se abordar o problema de modo mais amplo, não simplesmente “econométrico”. Em 1974, apesar da disponibilidade de alimentos, a fome naquele país foi agravada pelas enchentes entre junho e agosto que afetaram diretamente a produção de arroz e outras atividades agrícolas no Norte. Esse agravante, por seu lado, aumentou o desemprego entre os trabalhadores rurais, grupo composto basicamente por gente que acorda de manhã preocupada com o que será possível comer até o final do dia.
Destituídos dos seus meios de sobrevivência, em pouco tempo esses trabalhadores não tinham mais com o que comprar comida. A situação ficou ainda pior por causa da formação de estoques especulativos que empurraram os preços para cima. E os mais pobres ficaram num beco sem saída. Para o governo, no entanto, tudo parecia estar sob controle, pois o desastre era ofuscado pela crença de que havia disponibilidade de alimentos.
Amartya lembra que, deixando-se levar pelos ventos do livre mercado, a comida nunca é distribuída igualmente entre todas as pessoas ou grupos. Os estoques são oferecidos ou retirados do mercado em resposta a incentivos monetários ou expectativas de especulação com a variação dos preços. Sem propor nenhuma revolução, o Nobel de Economia de 1998 crê na existência de várias maneiras de um país se prevenir contra a fome.
Amartya mostra que a solução para a fome é política, e não técnica, como se diz, e que ela é agravada pela “mão invisível do mercado”
Na África e na Ásia, o crescimento da produção obviamente ajudaria muito, não apenas por contribuir para a redução dos preços, mas sobretudo porque daria emprego a grande parte das populações. Isso, porém, não seria suficiente. Poderia até piorar a situação, pois o aumento da produção está sujeito às travessuras do clima, o que é um prato cheio para os especuladores nas mãos dos quais poderia parar o resultado do esforço dos trabalhadores agrícolas. No final das contas, isso aumentaria ainda mais a vulnerabilidade dos mais pobres às secas e/ou enchentes!
Na África ao sul do Saara, em particular, é urgente a necessidade de diversificação da produção, “casada” com uma gradual expansão da indústria manufatureira. Mesmo assim, em muitos países da África e da Ásia milhões de pessoas continuariam à mercê da devastação das enchentes, secas e outras catástrofes naturais. Nessas situações, a fome poderia ser evitada por meio do incremento do poder de compra dos grupos sociais mais vulneráveis à essas desventuras. Programas para empregar essas pessoas, ainda que temporariamente, rapidamente lhes dariam alguma renda.
Com trabalho, mesmo que precário, a multidão mais pobre teria algum cacife para disputar com os mais afortunados (ou menos pobres!) uma fatia do bolo alimentar do país. A criação de postos de trabalho, é claro, resultaria numa pressão para o aumento dos preços, pois cresceria a demanda total por alimentos. Amartya, entretanto, acredita que isso poderia ser benéfico se pensarmos na fome como tragédia em escala social, pois os grupos menos pobres tenderiam a reduzir o consumo, colocando a balança um pouco mais perto do ponto de equilíbrio distributivo. E isso poderia ser decisivo para fazer a diferença entre um período de vacas magras e um Armagedon famélico.
Álvaro Caropreso é jornalista.
EDIÇÃO 54, AGO/SET/OUT, 1999, PÁGINAS 38, 39, 40