A profunda reforma do Estado, atualmente em curso no Brasil, ganha tons de uma verdadeira revisão constitucional, alterando a essência da Constituição de 1988, retirando os seus aspectos mais progressistas, os rumos apontados por ela para a construção de um Estado do bem-estar social e um país independente econômica e politicamente.

Além das mudanças estruturais no sistema econômico, abolindo monopólios nacionais, assegurando a privatização de empresas estatais, retirando da Constituição instrumentos de defesa do patrimônio público, das empresas nacionais, recursos naturais como a biodiversidade e até do território nacional o governo conseguiu alterar profundamente a administração pública e mudou características centrais da previdência social. Volta-se agora para a reforma política, buscando restringir o espaço de organização dos setores populares e da oposição, e para a reforma do Poder Judiciário, na tentativa de impedir qualquer resistência ao seu projeto por via jurídica.

Explorando ao máximo, e de forma demagógica, as dificuldades e problemas por que passa esse Poder, que tem problemas estruturais graves e inspira pouca confiança à população pela morosidade, pela impunidade dos poderosos e, agora, pelas denúncias de corrupção e desmandos que vêm sendo apuradas por uma CPI articulada e montada por um dos expoentes governistas, o cacique baiano Antônio Carlos Magalhães, o governo traz a lume uma proposta de reforma do Judiciário que, ao invés de enfrentar esses problemas, irá agravá-los sobremaneira.

Não há dúvidas de que o Judiciário necessita de reformas. Poder do Estado cujos membros não são representantes eleitos pelo povo, e sim selecionados através de concursos públicos ou indicados por chefes do Executivo, mantém a sua organização, o modo de executar as tarefas, a solenidade dos ritos, a linguagem rebuscada e até os trajes dos julgadores há mais de um século.

Por outro lado, ampliou-se enormemente o universo das lides jurídicas, resultado de mudanças como a urbanização crescente, mas também de crises econômicas e sociais e, desde o início da implantação do modelo neoliberal no Brasil, como resultado de ações governamentais restringindo direitos da população e da resistência jurídica a essas restrições. O número de ações no STF cresceu de 14.721, em 1989, para 52.636, em 1998. No STJ, no mesmo período, as ações distribuídas aumentaram de 6.103 para 92.107 ( mais de dez vezes). Na Justiça comum, o número de processos dobrou entre 1990 e 1998, de 3.617.064 para 7.467.189 processos ajuizados. Na justiça federal, nesse mesmo intervalo, passaram de 266.585 para 800.107.

Significativa, também, é a relação entre o número de juízes e o de habitantes. Para atender os mais de 160 milhões de brasileiros, estão previstos em lei 9.543 cargos de juiz em todo o País. Destes, apenas 7.007 estão efetivamente providos, o que estabelece uma proporção de 1 juiz para cada 23.090 habitantes (na Justiça comum), o que está bem longe do ideal. Dividindo-se o número de ações pelo de juízes, chegamos à cifra de 1.066 processos distribuídos para cada juiz, somente em 1998, o que dá uma média de 3 processos por dia para serem autuados, realizadas as audiências, feitas as diligências e por fim analisados, para cada juiz, mesmo que este trabalhe nos finais de semana e feriados. Evidentemente, uma sobrecarga excessiva. E esse número se eleva, na outra ponta, para 4.785 processos/ano (ou 13 a cada dia) para cada ministro do STF (1). Como esperar uma justiça de boa qualidade nessas circunstâncias?

Uma reforma do Judiciário que buscasse oferecer respostas para estas questões teria de ter como parâmetros norteadores: a) a democratização interna do Poder e de suas relações com a sociedade, e a transparência de suas decisões; b) a modernização da sua infra-estrutura material e de pessoal, com a destinação de mais recursos orçamentários, informatização dos dados, nomeação de número de juízes e serventuários em proporção adequada ao número de habitantes e às demandas; c) a facilitação do acesso à Justiça pela população, em especial a ampliação da estrutura da defensoria pública; e d) o aprimoramento da responsabilização social e política dos juízes, com mecanismos de controle da sociedade sobre o Poder Judiciário. A reforma proposta pelo governo não avança nesse sentido.

A intenção da atual proposta de reforma governista não é facilitar a prestação jurisdicional à população, nem resolver a crise e a instabilidade do Judiciário. A intenção é compatibilizar a Justiça com os novos mecanismos de reprodução do capital, afastando os entraves à livre movimentação do capital especulativo e permitindo a implantação do modelo econômico e social neoliberal. Agilidade, presteza e segurança apenas no trato com esse capital. Retirada de qualquer regulamentação protetora do trabalho, legal ou jurisdicional. Esse é o mote da contra-reforma patrocinada e orientada pelo governo FHC, que está em curso no Congresso Nacional.

A Comissão Especial destinada a proferir parecer à Proposta de Emenda à Constituição n. 96-A, de 1996, e às PECs n. 112-A/95, 127-A/95, 215-A/95, 368-A/96 e 500-A/97, que lhe estão apensadas está apreciando o Relatório e o Substitutivo do Relator, deputado Aloysio Nunes Ferreira.
Tendo em vista o recesso do Congresso Nacional no mês de julho, essa apreciação e a votação do Substitutivo serão, talvez, concluídos em agosto.

FHC volta-se agora para a reforma política, buscando restringir o espaço de organização dos setores populares e da oposição, e para a reforma do Poder Judiciário, na tentativa de impedir qualquer resistência ao seu projeto por via jurídica

Dessa forma, o debate sobre as proposições constantes no Substitutivo do Relator prossegue, inclusive considerando os termos das PECs apresentadas e das Emendas apresentadas no prazo regimental.
Nesse texto, porém, estão sendo analisadas apenas as propostas apresentadas pelo Relator, situando-as no contexto das reformas constitucionais em curso desde 1995 e suas implicações para a prestação jurisdicional do país.

Propostas do Substitutivo do Relator

Súmula Vinculante e Avocatória
Em termos gerais, a proposta apresentada pelo Relator sugere uma significativa alteração no funcionamento do Poder Judiciário, na medida em que propõe maior concentração de poder na cúpula do Poder Judiciário:

(a) No Supremo Tribunal Federal e demais Tribunais Superiores, a possibilidade de “aprovar súmula que terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário sujeitos à sua jurisdição e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal”;
(b) no Supremo Tribunal Federal e no Superior de Justiça, a possibilidade de acolher, respectivamente, incidente de inconstitucionalidade e de interpretação de tratado ou lei federal para proferir decisão sobre a matéria suscitada, podendo, em consequência “determinar a suspensão… de processos em curso perante qualquer juízo ou tribunal”.

A Súmula com efeito vinculante consiste em atribuir às orientações jurisprudenciais em cada um dos tribunais superiores força de lei, na medida em que passam a vigorar, como normas a serem respeitadas por juízes, pela administração pública e, por conseguinte, com reflexo no direito constitucional dos cidadãos em terem acesso ao poder judiciário. Trata-se, portanto, de proposta de emenda tendente a abolir a separação de poderes, vedado no inciso IV do § 4º, do art. 60 da CF.
Essa medida ofende o princípio do juízo natural, segundo o qual o juiz tem o poder de decidir livremente as demandas submetidas a sua apreciação. Cerceia o debate de questões jurídicas controvertidas, na medida em que possibilita ao STF, ou ao STJ, a adoção de súmulas que podem vincular os demais órgãos do poder judiciário e a administração pública direta ou indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, considerando, por exemplo, o universo dos primeiros cinqüenta ou cem recursos que lhe chegarem ao conhecimento.

Existem, porém, ponderações no sentido de que a súmula vinculante da Corte Suprema não acarretaria tais problemas, uma vez que as decisões ali situam-se no topo da cadeia recursal, esgotados todos os demais instrumentos jurídicos. Estariam sendo analisadas apenas questões constitucionais, e a súmula vinculante, restrita a este órgão, daria maior segurança à prestação jurisdicional, firmando uma interpretação uniforme da Constituição, e restringindo o número de demandas nesse nível. No que pese ser uma ponderação de peso, é preciso ressaltar que a reforma, nos termos propostos pelo deputado Aloysio Nunes, cria as súmulas vinculantes emitidas por todos os Tribunais Superiores, não só o STF, gerando uma verdadeira balbúrdia jurisdicional.

Os dados fornecidos pelo Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário, órgão do Supremo Tribunal Federal, revelam que efetivamente ocorre esta sobrecarga. No ano de 1998, mantendo a tendência dos anos anteriores, 93% dos processos recebidos e distribuídos aos ministros do Tribunal eram constituídos de Recursos Extraordinários (41%) e de Agravos de Instrumento (52,1%).
De 1990 a 1999 estes dois recursos representaram 91,5% da demanda do Supremo Tribunal Federal.
No Superior Tribunal de Justiça, a situação não é diferente. Em 1998, de 95.424 processos distribuídos, os Recursos Especiais (41.574) e os Agravos de Instrumento (43.330) totalizaram 88,97% dos processos no Tribunal.

Considerando estes dados, poderíamos chegar à conclusão idêntica a dos defensores do efeito vinculante das Súmulas, considerando que os temas em discussão judicial são poucos, que pela repetição sobrecarregam os tribunais.

Ocorre que esta solução, ataca apenas a consequência do problema. Não aborda as causas deste transtorno, que antes de ser prejudicial à administração da justiça, é gravemente lesivo aos direitos e interesses dos cidadãos.

Ainda de acordo com dados do Supremo Tribunal Federal, “os maiores ‘clientes’ do Supremo Tribunal Federal” (publicado na edição de 04-12-1996 do Informativo STF), no ano de 1996 são a União Federal, com 6.067 processos, o INSS, com 3.990 processos, o estado de São Paulo, o Banco do Brasil, o estado do Rio Grande do Sul, o município de São Paulo, o estado do Paraná, o estado do Rio de Janeiro, o estado de Santa Catarina e o estado de Minas Gerais.

Nos últimos seis anos, os recursos de Agravo de Instrumento e Recursos Extraordinários envolvendo os “maiores clientes do STF”, relacionados acima, totalizaram 126.220 processos, sendo que os processos de interesse da União e do INSS, representam, em relação a este total de processos, respectivamente 28,44% e 21,94%, ou seja 50,38% dos processos no Supremo Tribunal.
Com base nestes dados, pode-se afirmar, sem sombra de dúvida, que o problema do Poder Judiciário é o Poder Executivo federal, estaduais e municipais.

Reconhecendo em parte a gravidade do volume de demandas existentes nas cortes Superiores, mas considerando inaceitável a imposição da súmula vinculante na extensão proposta, a OAB coloca como alternativa a adoção das Súmulas Impeditivas de Recursos, solução menos traumática e provavelmente com a mesma eficácia em restringir o volume de demandas nas instâncias superiores, mas preservando a inteira independência de julgamentos dos juízes da primeira instância, princípio considerado pela doutrina como a espinha dorsal de um Poder Judiciário independente.

A determinação de suspensão da tramitação de processos em curso na primeira instância ou em grau de recurso para a decisão de incidente de inconstitucionalidade ou para interpretação de tratado ou lei federal, consiste por sua vez em efetiva medida avocatória caracterizando ato arbitrário atentatório contra o devido processo legal, implicando a supressão de instância, somente adotado pela ditadura militar em 1977 (2).

Essas duas propostas devem ser analisadas no contexto das mudanças constitucionais implementadas na lógica do projeto neoliberal, na medida em que não se sugere qualquer medida que aponte a perspectiva de assegurar a estabilidade jurídico-normativa do país.

O governo federal poderá continuar articulando a alteração da Constituição, poderá alterar a legislação ordinária, poderá firmar tratados internacionais, tudo com violação aos direitos dos cidadãos, com agressão à autonomia das unidades da federação, com atentado à separação dos poderes, com violação, enfim, às regras constitucionais estabelecidas pelo constituinte originário, porque as demandas judiciais decorrentes dos conflitos de interesse gerados com estas alterações serão resolvidas pela vinculação dos efeitos de súmulas. Casos que ganhem maior repercussão ou impacto, como o que está em curso com o desconto dos aposentados e pensionistas, poderiam ser resolvidas pelo incidente de inconstitucionalidade, ou por incidentes de interpretação de tratados e de lei federal.

São medidas autoritárias e de cúpula, que em nada resolvem um dos mais graves problemas causados ao Estado Democrático e de Direito pela implantação do projeto neoliberal: a instabilidade jurídica do país.

Extinção da Justiça Especializada do Trabalho

O Substitutivo do Relator sugere a extinção dos Tribunais e Juízes do
Trabalho, como órgãos do Poder Judiciário.
Em consequência, propõe que seja acrescentado ao art. 7º um § 2º dispondo que “a lei criará órgãos de conciliação, mediação e arbitragem, sem caráter jurisdicional e sem ônus para os cofres públicos, com representação de trabalhadores e empregadores, que terão competência para conhecer de conflitos individuais do trabalho, no prazo legal, como condição para a propositura da ação judicial cabível”. Além de transferir a representação classista para esta instância prévia, a condição imposta para a propositura da ação trabalhista é inconstitucional, por ferir a garantia constitucional de prestação jurisdicional prevista no inciso XXXV do art. 5º da CF (3). Dessa forma, a proposta de emenda constitucional esbarra no óbice do inciso IV do § 4º do art. 60 da Constituição.
A apreciação judicial das demandas trabalhistas é, no entanto, transferida para a Justiça Federal, que teria varas exclusivas e portanto especializadas.

Sob o aspecto administrativo, o deslocamento da competência para processar e julgar as reclamações trabalhistas para a Justiça Federal só se justifica com a adoção das súmulas vinculantes e das avocatórias, na medida em que as matérias seriam em sua grande maioria sumuladas.
Além disso, extinguindo-se os Tribunais Regionais do Trabalho e o Tribunal Superior do Trabalho, os recursos seriam também encaminhados respectivamente para os Tribunais Regionais Federais e para o Superior Tribunal de Justiça, já que os recursos previstos na legislação processual do trabalho continuam a existir.

Enfim, essa transferência tende a nada resolver do problema relativo à melhoria da prestação jurisdicional. Provavelmente poderá agravar os problemas atualmente existentes.
Mas o que nos parece ser mais grave consiste na supressão do poder normativo da Justiça do Trabalho, previsto no atual § 2º do art. 114 da CF (4). Os conflitos coletivos decorrentes da relação trabalhista, de acordo com o que vier a ser estabelecido em lei, poderiam ser propostos, mas sem que o poder judiciário pudesse estabelecer normas e condições, quando uma das partes no conflito se recusasse à negociação ou à arbitragem.

Outro aspecto mal enfocado em todo o debate da Reforma do Poder Judiciário e adotado no Substitutivo do Relator consiste na extinção dos juízes classistas. Se por um lado é forçoso reconhecer que a realidade atual do tratamento normativo e a prática verificada em muitas Juntas de Conciliação e Julgamento em relação aos juízes classistas, chegando mesmo a constituírem Associação de Juízes Classistas ( AJUCLA), envolvendo representantes de classes distintas e antagônicas, revelam efetivos desgastes na figura dos juízes leigos, por outro não se deve desconsiderar que os Juízes Classistas representam experiência de participação popular na administração da justiça e que ao contrário de ser extinta deve ser aprimorada, corrigidos seus erros e distorções. Justiça Militar

O substitutivo sugere a redução da composição do Superior Tribunal Militar de 15 para 7 ministros. Embora essa providência acarrete certa diminuição de gastos, em especial no suporte dos gabinetes dos ministros do tribunal, por outro lado, considerando que a nova feição da justiça militar transformaria o STM em tribunal de 2ª instância, é razoável supor que as reduções nos gastos nos gabinetes venham a ser absorvidas em outras esferas administrativas do tribunal.

Tem sido destacada como significativa alteração a idéia de qualificar os crimes militares atualmente previstos no art. 124 e no § 4º do art. 125 da CF como propriamente militares e impropriamente militares. Ocorre que esta qualificação não resolve os atuais problemas relacionados ao estabelecimento da competência da Justiça Militar, justificando mesmo sua existência.

Os atuais dispositivos constitucionais estabelecem, como a proposta do Relator, que os crimes militares serão “definidos em lei”. Portanto, cabe ao Legislador ordinário estabelecer o que é crime propriamente militar, sem necessitar de que esta inócua qualificação seja constitucionalizada.
Quanto à justiça militar estadual, a sugestão de término da 2ª instância, embora seja um avanço, não resolve o principal problema relacionado à definição legal do que é crime militar.

Conselho Nacional de Justiça

O Relator sugere a criação de um Conselho Nacional de Justiça, como mais um órgão do Poder Judiciário, constituído por nove membros, para mandato de dois anos: o presidente do Supremo Tribunal Federal, que presidiria o CNJ; dois ministros do Superior Tribunal de Justiça, sendo que um deles seria o Corregedor do Conselho; um desembargador indicado pelos Tribunais de Justiça; e três juristas indicados pelo Supremo Tribunal Federal, após aprovados pelo Senado Federal.

Em síntese, esse Conselho teria a finalidade de exercer o controle administrativo do Poder Judiciário, zelando por sua autonomia, pelo respeito aos princípios da administração pública (art. 37 CF), apreciando reclamações contra membros do Poder Judiciário ou mesmo avocando processos disciplinares, rever processos disciplinares e elaborar relatórios anuais sobre a situação do Poder.
O problema fundamental do formato desse Conselho consiste na sua composição. Seus membros são originários da cúpula do Poder Judiciário (STF e STJ) ou são indicados pelo Supremo Tribunal (3 juristas). Isto significa, como no caso das Súmulas Vinculantes e da avocatória, concentração de poder nos órgãos superiores do Poder Judiciário.

Dessa forma, esse Conselho Nacional de Justiça consiste em mais um órgão interno de controle administrativo das atividades do Poder Judiciário. Na realidade, o que se pretende e vem sendo reivindicado por operadores do direito e setores sociais organizados é o estabelecimento de um mecanismo que exerça um controle externo do Poder Judiciário, como decorrência mesmo do imperativo constitucional inscrito no parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal (5).
Além disso, não tem cabimento conceber um órgão que exerça a fiscalização e o controle das atividades do Poder Judiciário, sem a participação do Ministério Público, da Advocacia Pública, dos Advogados e da Defensoria Pública, por serem funções essenciais à Justiça e que por isso devem participar de qualquer esforço destinado a promover a transparência desse Poder da República.

A intenção é compatibilizar a justiça com os novos mecanismos de reprodução do capital, afastando os entraves à livre movimentação do capital especulativo e permitindo a implantação do modelo econômico e social neoliberal

A idéia do Congresso Nacional indicar nomes de cidadãos para compor esse Conselho, ao contrário de significar qualquer ato tendente a violar o princípio da separação dos poderes, consiste em mecanismo institucional de legitimação da participação de representantes da sociedade, porque escolhidos por representantes eleitos diretamente pelo povo.

O modelo do Conselho Nacional de Justiça concebido pelo Relator, somado à instituição da Súmula vinculante e da avocatória, conformam uma feição do Poder Judiciário com forte concentração de poder nos órgãos superiores do Judiciário.

Princípios da Magistratura e Garantias dos Juízes

O Substitutivo do Relator sugere ainda algumas alterações nos critérios constitucionais para a promoção de juízes, para remoção e perda de cargo, para obtenção de vitaliciedade, sobre subsídios, que analisados em seu conjunto, embora algumas sejam apresentadas e justificadas como medidas moralizadoras, representam um recrudescimento do tratamento draconiano dispensados aos juízes na 1ª instância, exatamente por onde começam as demandas judiciais, e que por isso devem estar em contato com os anseios populares, como decorrência mesmo da determinação constitucional inscrita no inciso VII do art. 93 da CF (6).

Essas e outras alterações relacionadas às garantias dos juízes e aos princípios norteadores da magistratura formam o seguinte conjunto:

1. Acrescenta os critérios de competência e produtividade para efeito de promoção de entrância;
2. veda a promoção quando o juiz retiver injustificadamente o processo;
3. reduz o quorum de deliberação para remoção, disponibilidade e aposentadoria de magistrado, por interesse público, de três quintos para maioria absoluta;
4. aumenta o prazo para obtenção da vitaliciedade de dois para três anos e acrescenta competência do Conselho Nacional de Justiça para deliberar sobre perda de cargo de Juiz;
5. prevê a suspensão dos subsídios quando o Juiz descumprir os prazos processuais;
6. proíbe que os Juízes: revelem ou permitam que cheguem ao conhecimento de terceiros fatos ou informações de que tenham ciência em razão do cargo e que violem o sigilo legal, a intimidade e a honra das pessoas; recebam, a qualquer título ou pretexto, auxílios ou contribuições de entidades públicas, inclusive para fins de moradia ou subsistência, ressalvadas as exceções previstas em lei; exerçam a advocacia na mesma unidade federativa em que atuavam, antes de decorridos dois anos da aposentadoria;
7. acrescenta § 2º ao art. 93, prevendo a perda de cargo por decisão de três quintos do CNJ, quando ocorrer infração às vedações relacionadas no item anterior, quando houver negligência contumaz e quando for constatado procedimento incompatível com o decoro do cargo.

Outras alterações quanto à administração da justiça

A proposta de reforma em curso no congresso aborda, embora menos enfaticamente, alguns aspectos da administração de justiça. Destaque-se, entre estes:

1. Acrescenta, no final do inciso X do art. 93 da CF, a referência “em sessão pública”. Com isso, a publicidade que se espera venha a ser estabelecida para a adoção de todas as decisões administrativas dos tribunais, por recursos de interpretação pode ficar restrita às decisões disciplinares. Melhor seria que o acréscimo fosse consignado após o término do primeiro núcleo normativo do dispositivo constitucional;
2. a atividade jurisdicional seria permanente, não se interrompendo em razão de férias;
3. o número de juízes deveria ser estabelecido proporcionalmente às demandas judiciais;
4. as entidades representativas dos membros do Ministério Público passariam a elaborar uma lista sêxtupla para indicação de nomes para assumirem vagas nos Tribunais e a OAB passaria a indicar os nomes dos advogados em lista tríplice;
5. exclui o procurador geral da República, procuradores gerais de Justiça e os presidentes dos Conselhos Seccionais da OAB da indicação para vagas nos tribunais, até três anos após deixarem os cargos que ocupam;
6. estabelece a competência para que os tribunais superiores proponham o aumento do número de seus membros;
7. vincula as custas e os emolumentos para custeio de serviços afetos às atividades especiais da Justiça;
8. limita o prazo de validade de liminares a 180 dias;
9. a função de juízes leigos nos juizados especiais seria a título honorífico e sem remuneração;
10. haveria juizados especiais na Justiça Federal;
11. os créditos de natureza alimentícia, até o limite fixado em lei, seriam pagos em 30 dias da determinação judicial e os excessos seriam pagos por precatório que teriam preferência;
12. a não inclusão dos precatórios no orçamento ensejaria a determinação, pelo presidente do Tribunal de Justiça, do sequestro das verbas públicas necessárias à satisfação do débito sob pena de o presidente do Tribunal incorrer em crime de responsabilidade;
13. os precatórios poderiam ser cedidos a terceiros e liquidados nas formas previstas em lei ou em títulos ou certificados da dívida pública equivalentes à moeda, permitida sua utilização: em privatização de empresas controladas pelo Poder Público e na alienação de sua participação acionária; e no pagamento de qualquer dívida com a entidade de direito público emitente, independentemente do limite global para a respectiva dívida imobiliária. Competências do Supremo Tribunal Federal

A Assembléia Nacional Constituinte apontou no sentido da criação de uma Corte Constitucional, nos moldes das existentes nos EUA e alguns países europeus. O STF cumpriria essa função, sendo repassadas ao recém-criado Superior Tribunal de Justiça (STJ) as demais funções de topo da jurisdição federal. No entanto, os constituintes não foram inteiramente fiéis a esse modelo. O substitutivo do deputado Aloysio Nunes Ferreira também vai no mesmo sentido, repassando parte das funções desse tipo, remanescentes entre as competências do Supremo, para o STJ e a Justiça Federal. No entanto, essa transformação ainda permanece incompleta, mantendo-se o caráter híbrido do STF. As principais alterações nas competências desse órgão, propostas no substitutivo, são:

1. Prevê argüição de inconstitucionalidade contra súmula vinculante;
2. processar e julgar ações contra o Conselho Nacional de Justiça; os incidentes de inconstitucionalidade; e as infrações penais comuns contra os membros do Conselho Nacional de Justiça;
3. desloca para o Superior Tribunal de Justiça competência para processar e julgar ministro de Estado e membro do Tribunal de Contas da União;
4. restringe o conhecimento de causas e conflitos entre autarquias;
5. desloca para a Justiça Federal de 1ª instância competência para processar e julgar extradição solicitada por Estado estrangeiro, homologação de sentença estrangeira e concessão de “exequatur” às cartas rogatórias;

Não se trata de qualquer reforma, mas de alteração do perfil do Poder Judiciário, concentrando as decisões em seus órgãos superiores

6. altera a preposição do dispositivo que dispõe sobre o conhecimento de Recursos Extraordinários interpostos de decisões que contrariarem dispositivo da Constituição ou tratem da validade de lei ou ato de governo local em face da Constituição Federal e não mais desta Constituição. Esta pequena alteração, embora possa parecer meramente semântica, visa a afastar a alegação segundo a qual o Recurso Extraordinário não pode ser conhecido porque o constituinte originário, ao utilizar a preposição desta, referia-se ao texto constitucional sem emendas, enquanto que a preposição da remete no entendimento quanto ao cabimento de RE contra violação de qualquer dispositivo da constituição, considerando-se as emendas constitucionais promulgadas;

7. confere às decisões definitivas de mérito em ações diretas de inconstitucionalidade efeito vinculante, como nas ações declaratórias de constitucionalidade;

8. altera a redação do § 3º do art. 103, para prever que o STF poderá determinar, por dois terços de votos, perda de eficácia da norma impugnada, a partir do trânsito em julgado da decisão. Ou seja, o STF pode decidir que uma lei inconstitucional só perca a validade do momento em que for julgada para a frente. Assim, o que tiver sido feito no período entre a edição da lei e o seu julgamento pelo STF continua a ter validade (hoje, se o STF declara a inconstitucionalidade de uma lei, tudo o que foi feito com base nela perde o valor, pois ela é considerada nula desde a sua edição).

Competências do Superior Tribunal de Justiça

1. O STJ receberia competência para processar e julgar originariamente: nos crimes comuns, os Ministros do Tribunal de Contas da União; os mandados de segurança e os “habeas data” contra o TCU; as reclamações contra o desrespeito de súmulas vinculantes e o incidente de interpretação de tratado e lei federal.
2. A Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento da Magistratura e o Conselho Nacional da Justiça Federal seriam vinculados ao STJ.

Justiça Eleitoral

1. Sugere a redução da presença de ministros do STF no Tribunal Superior Eleitoral, de três para um, que presidiria o Tribunal.
2. Aumenta a participação de ministros do STJ, de dois para quatro.
3. Nos Tribunais Regionais Eleitorais reduziria a presença de Juízes de Direito de dois para um, um juiz Federal seria escolhido pelo TRF da região e dois advogados seriam escolhidos pelo Presidente da República, dentre os nomes constantes em lista sêxtupla. Defensoria Pública
Prevê que a Defensoria Pública teria autonomia funcional e administrativa com iniciativa orçamentária.

Conclusão

As alterações propostas pelo Relator em relação à estrutura do Poder Judiciário, não visam atender aos interesses populares. O que esta proposta de reforma do judiciário pretende é adequar este poder da República para enfrentar, de maneira confiável, as reações à implementação do projeto neoliberal no país, tendo em vista a desregulamentação das relações do trabalho, a internacionalização da economia e o constrangimento a direitos e garantias constitucionais.

Neste sentido, não se trata da implementação de qualquer reforma, mas de alteração do perfil do Poder Judiciário, concentrando o poder de decisão nos órgãos superiores do Poder Judiciário, em especial pela adoção da Súmula com efeito vinculante, pelos Incidentes de Inconstitucionalidade e de Interpretação de tratado e lei federal, com poderes avocatórios e pelo modelo de Conselho Nacional de Justiça.

As demais alterações – algumas poucas de cunho moralizador e reclamadas por muitos setores –, não contribuem para enfrentar um dos principais problemas do poder judiciário, consistente na ausência de transparência quanto ao seu funcionamento, que poderia vir a ser minorado com a estruturação de um Conselho Nacional de Justiça que assegurasse a participação de pessoas indicadas pelo Poder Legislativo e contasse com a participação das instituições essenciais à Justiça (Cap. IV, Título IV da CF).

No mais, a dita crise do Poder Judiciário somente poderá ser superada no momento em que:
1. Seja assegurada efetiva estabilidade jurídico-normativa no país, eliminando-se a possibilidade do Poder Executivo alterar a legislação ordinária ao seu bel prazer por intermédio de Medidas Provisórias.
2. Se invista recursos públicos no aumento do número de Juízes, com condições adequadas de trabalho, para que a proporção entre o número de Juízes e a população seja adequada, assegurando-se dessa forma efetiva e rápida prestação jurisdicional.

Um Poder Judiciário forte e satisfatório aos interesses do povo passa pela existência de Juízes na 1ª instância com garantias efetivas para o exercício independente de suas funções judicantes, um segundo grau de jurisdição amplo, que assegure a apreciação rápida e segura de recursos interpostos contra as decisões de 1ª instância e dois tribunais superiores: o Superior Tribunal de Justiça, para harmonização da jurisprudência relativa às normas federais; e o Supremo Tribunal Federal, órgão incumbido da guarda da Constituição e por isto composto por juízes com reconhecido conhecimento jurídico e mandato.

Paulo Machado Guimarâes e Lúcio Flávio de Castro Dias são advogados e assessores jurídicos da Liderança do PCdoB na Câmara dos Deputados.

Notas
(1) Banco Nacional de Dados do Poder Judiciário (BNDPJ), editado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), edição de 1999.
(2) Alínea “o” do inciso I do art. 119 da CF de 1967-69, com redação dada pela EC número 7, de 13 de abril de 1977 (Pacote de Abril): “Art. 119. Compete ao Supremo Tribunal Federal: I – processar e julgar originariamente: (…) o) as causas processadas perante quaisquer juízos ou tribunais, cuja avocação deferir, a pedido do Procurador-Geral da República, quando decorrer imediato perigo de grave lesão à ordem, à saúde, à segurança ou às finanças públicas, para que se suspendam os efeitos de decisão proferida e para que o conhecimento integral da lide lhe seja devolvido”.
(3) “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
(4) “Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangendo os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos municípios, do Distrito Federal, dos estados e da União e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas.
§ 1º – Frustrada a negociação coletiva, as partes poderão eleger árbitros.
§ 2º – Recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem, é facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo, podendo a Justiça do Trabalho estabelecer normas e condições, respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho”.
(5) “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
(6) “O juiz titular residirá na respectiva comarca”.

EDIÇÃO 54, AGO/SET/OUT, 1999, PÁGINAS 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28