Segundo Manoel de Barros, "Sabedoria se tira das coisas que não existem". Esse poeta, em seus 62 anos de publicação – seu primeiro livro, Poemas concebidos sem pecado, é de 1937 – vem tirando sabedoria das palavras e dando existência a elas, numa reinvenção poética da linguagem que não víamos desde Guimarães Rosa.

Embora amado pelo público, como comprovam as sucessivas edições de seus livros, a poesia de Manoel de Barros ainda é timidamente estudada nos meios universitários e pelos críticos renomados do país. Tal marginalidade talvez se deva ao fato de que só em 1982, quando publicou Arranjos para assobio, pela Civilização Brasileira, sua poesia alcançou notoriedade através das referências de Millôr Fernandes, Antônio Houassis, Geraldo Carneiro, entre outros. Mas o poeta sul-matogrossense tem o seu lugar reservado na tradição da literatura brasileira. Sua obra, por mais que se individualize com as diferenças que guarda da poesia produzida no país atualmente, tem sua genealogia na boa lírica e mesmo na prosa brasileiras.

Manoel de Barros, em várias entrevistas, fala sobre o "diálogo livresco" que empreende com Oswald de Andrade, Raul Bopp, Murilo Mendes, Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Mais que evidências e laços de admiração do leitor Barros, esses autores fazem parte de um projeto estético que articula a historicidade circunstancial e literária na construção de uma poética comprometida com o tempo presente, com o homem presente, como escreveu Carlos Drummond de Andrade.

A estética modernista de 22, que despediu a retórica, a grandiloquência, a erudição, entre outros, da literatura, encontrará ressonâncias múltiplas na poesia de Barros. O diálogo com Oswald de Andrade será feito pelo viés da "alegria dos que não sabem e descobrem", da "contribuição milionária de todos os erros", do "ver com olhos livres, da "invenção", da "surpresa", ideais da poesia pau-brasil que, nos seus primeiros livros, são visíveis e, mais tarde, se transformam em um lastro profundo e secreto, configurando uma dicção própria, barreana. Como não nos lembrarmos do lúdico e do humor da estética de 1922 ou da "inocência construtiva", diante das anotações poéticas, com vocação epigramática, do "Caderno de Andarilho", do livro Concerto a céu aberto para solo de aves? (p. 49-50)

Nos lábios do chão formigas fazem de lado.

Muito suspeito o andar das rolinhas: o traseiro delas entoa.

Ou ainda a hesitação entre prosa e poesia, "a contribuição milionária de todos os erros", a poetização da realidade do interior do Brasil, que é visível em Poemas concebidos sem pecado?

Cabeludinho
1. Sob o canto do bate-num-quara nasceu Cabeludinho
bem diferente de Iracema
desandando pouquíssima poesia
o que desculpa a insuficiência do canto
mas explica a sua vida
que juro ser o essencial.
– Vai desremelar esse olho, menino!
– Vai cortar esse cabelo, menino!
– Eram os gritos de Nhanhá.
Gramática expositiva do chão – Poesia quase toda, p. 35

Já o poema que se apropria da linguagem da infância, as personificações mágicas da natureza, a visão mítica da realidade e as metáforas de inusitada plasticidade, além da presença forte da natureza, são convergências entre a poesia de Raul Bopp e a de Manoel de Barros. As imagens oníricas e o aproveitamento de elementos do Surrealismo na construção do poema barreano têm em Murilo Mendes o seu precursor. Além desse enraizamento na lírica brasileira, Guimarães Rosa é um caso de afinidade eletiva do poeta, de admiração quase colegial, revelada nas suas entrevistas que relatam, em sua maioria, o seu encontro com Rosa no pantanal. Os dois autores acreditam no engajamento na linguagem. Ambos dobram-na à força da invenção, mudam a regência de verbos e nomes, criam neologismos. Exemplo de Rosa: magoal, dinheiral, cocoral, beija-florar; de Barros: milagrar, luaçal, trastal, passarinhal, nadifúndio, andorinhar. Antonio Cândido escreve que Grande sertão: Veredas traz o traço fundamental de seu autor: "a absoluta confiança na liberdade de inventar" (1). Depois de Rosa, na série literária brasileira, só Manoel de Barros afiança essa liberdade de inventar no espaço poético.

E mais ainda: as constantes da lírica moderna presentes em Arthur Rimbaud, Charles Baudelaire, Stéphane Mallarmé e Paul Valéry, aparecem em Manoel de Barros. O desregramento de todos os sentidos de Rimbaud e a eleição para a cena do poema que Baudelaire faz dos seres desprezados pela sociedade constituem a estética de Manoel de Barros.

Outro diálogo de sua obra são as artes plásticas. Arcimboldo, KIee, Picasso, Miró, Magrite e Modigliani são alguns pintores que a sua poesia nos lembra. Em seus mais de 80 anos, o poeta é um fruidor das artes, um observador atento dos movimentos estéticos desse século. As palpitações e as inquietações artísticas de nossa época transparecem em seus livros.

A poesia barreana tem na invenção a sua maior riqueza e na numerosidade dos vínculos, seja a filiação à palavra de outros poetas e escritores, seja, na perspectiva semiótica, a referência a outros discursos no espaço do poema, uma das características que a alinha com as artes deste século.

A estética do fragmentário

Em uma entrevista Manoel de Barros diz:
"Sobre elementos que influenciaram a minha formação, afora essa inaptidão para o diálogo, talvez um sentimento dentro de mim do fragmentário, laços rompidos, o esborôo da crença ainda na adolescência, saudade de Deus e de casa, ancestralidade bugra, nostalgia da selva, sei lá. Necessidade de reunir esses pedaços decerto fez de mim um poeta. A incapacidade de agir também me mutila. Sou pela metade, sempre, ou menos da metade. A outra metade tenho que desforrar nas palavras. Ficar montando, em versos, pedacinhos de mim, ressentidos, caídos por aí, para que tudo afinal não se disperse. Um esforço para ficar inteiro que é essa atividade poética. Minha poesia é hoje e foi sempre uma catação de eus perdidos e ofendidos" (2).

O poeta nos apresenta um painel do homem moderno: o isolamento e a solidão que se traduzem numa certa impotência para o diálogo; a descrença em uma transcendência devido à ruína dos sistemas religiosos; o desencantamento do mundo; a nostalgia da origem; o homem do século XX abandonado e a arte sendo a única possibilidade de amparar a precariedade humana e circunscrever o real e seu mistério. Para o poeta, diante da transitoriedade da vida e da dispersão do ser, a poesia seria, então, a possibilidade de transcender a perda de si mesmo e reunir os fragmentos, cerzindo de novo os laços no que o verso tem de permanência. A poesia se enraíza na condição histórico-existencial do homem.

O tema da fragmentação, da divisão do ser, faz parte do temário poético universal. Embora possamos percebê-lo já no Renascimento, nos movimentos Maneirista e Barroco, foi o Romantismo que cuidou de o propalar. A sua agudização, porém, se dá no Modernismo, em um contexto histórico áspero, em que a diluição de valores, a transitoriedade das coisas, o advento da sociedade da técnica contribuem ainda mais para o sentimento do fragmentário.

Em Manoel de Barros, a dor do sujeito, que é domínio do tema, reflete-se no processo de construção do poema. Sua poesia é fragmentária, se compõe de "materiais e passarinhos de uma demolição", como ele mesmo escreve. O seu universo poético é construído mais em rupturas, enunciado através de disjunções, recombinações, elipses, cortes, montagens na linguagem. O poema 3.2 de "Os deslimites da palavra", segunda parte de O livro das ignorãças, toca de forma cruelmente bela no sentimento do fragmentário. É Apuleio, uma das máscaras de Barros e referência explícita ao autor de O asno de ouro, romance de aventuras e de costumes da Antigüidade, que toma o eu lírico e vive a experiência de uma nova cosmologia, renomeando poeticamente o mundo, quando flutuava sobre as águas da enchente de 22 do Pantanal:

3.6
Nuvens me cruzam de arribação.
Tenho uma dor de concha extraviada.
Uma dor de pedaços que não voltam.
Eu sou muitas pessoas destroçadas.
……………………………………………………
……………………………………………………
Diviso ao longe um ombro de barranco.
E encolhidos na areia uns jaburus.
Chego mais perto e estremeço de espírito.
Enxergo a aldeia dos Guanás.
Imbico numa lata enferrujada.
Um sabiá me aleluia.
Livro das ignorãças, p. 73

As imagens da concha extraviada, dos pedaços, da dispersão do eu "nas muitas pessoas destroçadas", além do intervalo pontilhado, que é uma breve ruptura da palavra para abrigar o silêncio, representam a subjetividade fragmentada. O final do poema assinala o retorno à natureza, consagrando o homem através da religação do natural ao religioso.
Outra recorrência do fragmentário é o texto da memória que, por sua própria natureza, já é cheio de falhas e de imprecisões. Os poemas da lembrança do livro Concerto a céu aberto para solos de ave encenam a problemática do ser e da sua temporalidade, a consciência do perdido que a poesia tenta recuperar. Nesse sentido, o texto se faz mais fragmentário. São sinais, vestígios de linguagem que se configuram nos pontilhados, nos poemas sem títulos, apenas enumerados, como se não tivessem unidade e, sim, fizessem parte de um outro poema que ficou perdido:

XXV (lembrança)
Perto do rio tenho 7 anos.
(Penso que o rio me aprimorava)
Acho vestígios de uma voz de pássaro nas águas.
Viajo de trem para o internato.
Vou conversando passarinhos pela janela do trem.
Um bedel raspou a cabeça de meu irmão no Internato.
Havia um muro cheio de ofendículos.
Liberdade havia de ser pular aquele muro.
Do outro lado havia um guaviral onde os moços
e as moças se encontravam e se filhavam.
A gente manuseava os pichitos.
Na igreja os padres reuniam os alunos e
tentavam falar a sério.
Mas eu sempre achei muita graça quando as
pessoas estão falando sério.
Acho que isso é um defeito alimentar.
Concerto a céu aberto, p. 28

As lembranças são traços da memória da infância do poeta, articuladas com as imagens de cunho onírico, em que o jogo entre o vivido e o lembrado estabelece uma relação mágica entre espaço e tempo no primeiro verso. O texto da memória, na instância poética, se verga dócil e se compõe com a estética do fragmentário de Barros. O poeta tem nas lembranças a reunião dos pedaços e uma referência da identidade do ser. A memória, então, de consciência das ruínas do presente, passa a participar do movimento incessante de elaboração e reelaboração do homem na história.

O puro traste em flor
Luiz Costa Lima, em um estudo sobre Sousândrade, escreve que "A arte realiza-se por objetivar. O que vale dizer, o problema primeiro do artista é o de, sendo sensível, no entanto não se encerrar na sua sensibilidade, e o de intuindo o 'desconcerto do mundo', no entanto não evitar o mundo" (3). Manoel de Barros não evita o mundo, o expõe em suas contradições, na mesma linha do Modernismo que descobriu o país em suas misérias e riquezas, em seu atraso e progresso, trazendo para o espaço do poema a realidade social.

Manoel de Barros, em seu processo de composição, articula a linguagem da poesia e a linguagem do mundo na criação de uma poética), de um modo de olhar a realidade e escolher o que deve ser elevado pela poesia. Barros examina a palavra, entrelaçando a voz do poema, reduto das peculiaridades de sua natureza e da tradição literária, e a voz social que expõe as impertinências do mundo. Os bens do poeta são as coisas do chão, as insignificâncias, o inútil, o que não tem valor de uso, principalmente os seres inviáveis na nossa sociedade, exacerbada em seu consumismo e na valorização do ter sobre o ser:

Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para poesia

O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para poesia

Terreno de 10×20, sujo de mato – os que
nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia

Um chevrolé gosmento
Coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca
são bons para poesia

As coisas que não levam a nada
tem grande importância
Cada coisa ordinária é um elemento de estima

Cada coisa sem préstimo
tem seu lugar
na poesia ou na geral

O que se encontra em ninho de joão-ferreira:
caco de vidro, garampos,
retratos de formatura,
servem demais para poesia

As coisas que não pretendem, como
por exemplo: pedras que cheiram
água, homens
que atravessam períodos de árvore,
se prestam para poesia
(…)
Gramática expositiva do chão, p. 179-80

No poema acima, a invenção e a crítica sobre a experiência poética implicam uma reflexão sobre a realidade através de uma reorganização do olhar e de uma desorganização semântica que singularizam a realidade representada. O conceito de utilidade é revisto, agora sob uma perspectiva do conhecimento poético.

A partir desse novo olhar, vemos surgir em seus poemas as personagens que vivem no limiar do natural e do humano, à margem da produção e do mercado. Bernardo, Polina, Mário-pega-sapo. Gideão, Andaleço, Catre-Velho, Apuleio são máscaras de um mesmo eu lírico que quer interferir na realidade. estabelecendo uma ética poética, um pensar sobre as coisas a partir do chão, do pequeno, do inútil. Para o poeta. a única poesia possível está na insignificância e nos seres desprezados e o poema é o lugar de comunhão entre a poesia e esses seres. "Só empós de virar traste que o homem é poesia" (Gramática expositiva do chão – “Poesia quase toda”, p. 186), acredita Manoel de Barros na voz de uma das suas personagens. No caminho aberto por Baudelaire, quando levou para o poema o trapeiro, a prostituta, o homem da multidão, o flâneur, seres marginais, o poeta elege para os seus poemas as figuras que não têm uma função social, que correm por fora do sistema. São as personagens do seu universo criado que respondem ao seu desejo de ocultar-se, de falar disfarçado sobre o que acredita, multiplicar, dar forma ao seu eu fragmentado, dramatizar a sua sensibilidade poética e, também, criar o seu herói, num mundo desprovido de heroicidade.

Bernardo é o herói que Barros escolhe para falar em seu nome. Das inúmeras personagens é a mais amada, pelo menos é a que aparece mais nos seus livros. Oriundo do universo biográfico do poeta, de dono de fazenda no pantanal, Bernardo é um bugre pantaneiro que ganhou um capítulo da prosa poética do autor, Livro de pré-coisas. Ele é "O personagem". Citemos alguns fragmentos:

1. No presente
Quando de primeiro o homem era só, Bernardo era.
Veio de longe com a sua pré-história.
(…)

De dentro de seus cabelos, onde guarda seu fumo,
seus cacos de vidro, seus espelhinhos, nascem
pregos primaveris!
Não sabe se as vestes apodrecem no corpo senão
quando elas apodrecem.
É muito apoderado pelo chão esse Bernardo.
(…)

Com bichos de escama conversa. Ouve de longe a
botação de um ovo de jacaroa.
(…)

Passarinhos do mato, bem-te-vi, joão-ferreira,
sentam no ombro desse bandarra para catar
imundícia orvalho, insetos.
(…)

No pátio, cachorro acua ele. (Pessoas com ar de
quelônio, cachorro descompreende.) Galinhas
bicoram seu casco.
Mal desenxerga.
(Nem mosca nem pedrada desviam ele de ser obscuro.)
Bernardo está pronto a poema. Passa um rio gorjeado por perto. Com as mãos aplaina as águas. Deus abrange ele.
Gramática expositiva do chão, p. 243-244

Situado na origem dos tempos, portanto, mítico, Bernardo se confunde com o chão, se confunde com os bichos. Perdido no tempo e indefinido o lugar de onde veio, integra-se à natureza e pelo que descreve o poeta é "o puro traste em flor", é quase um chão ou uma árvore, pois nele toma lugar passarinhos. É a extremização do humano, sem suas referenciais culturais. Bernardo é um ser sem os sinais da sociedade de consumo, destituído de qualquer valor social, vive na fronteira entre o vegetal e o animal. E, por fim, é aquele que o poeta elege, dele nascem as imagens poéticas: "pregos primaveris" e "rio gorjeado" que concentra pássaro, canto do pássaro e ruído de rio. O rio canta e se canta, já não é mais rio, mas também não é mais pássaro. A imagem aprofunda seu grau de metaforicidade até se perderem as lembranças do real. E como prescreveu "João", outra personagem: traste, Bernardo "está pronto a poema".

O herói de Barros não pegará em armas, não entende de economia, provavelmente não fará a revolução da sociedade. Sua revolução é a do ser, sua utopia é reencantar o mundo. Eis o seu perfil:

Sujeito
Usava um Dicionário do Ordinário
com 11 palavras de joelhos
inclusive bestego. Posava de esterco
para 13 adjetivos familiares
inclusive bêbado.
Ia entre azul e sarjetas.
Tinha a voz do chão podre.
Tocava a fome a 12 bocas.
E achava mais importante fundar um verso
do que uma usina Atômica.
Era um sujeito ordinário.
Gramática expositiva do chão, p. 223

São essas as personagens barreanas, capazes de ensinar-nos a relacionar de um outro modo com a vida. Em sua humanidade residual, guardam uma ternura comovente. Sem uso social, Barros dá a esses seres um uso poético: servem para o poema, e é por meio deles que o poeta faz a sua crítica à sociedade e se norteia por uma ética fundada no conhecimento poético da realidade. É assim que ele vai inscrevendo nos versos os vínculos destes seres com o destino do mundo. Um mundo mais justo e mais terno que se oriente pelo saber que o índio guató Salustiano ensinou ao poeta: 3.
As árvores velhas quase todas foram preparadas
para o exílio das cigarras.
Salustiano, um índio guató, me ensinou isso.
E me ensinou mais: Que as cigarras do exílio
São os únicos seres que sabem de cor quando a
noite está coberta de abandono.
Acho que a gente deveria dar mais espaço para
esse tipo de saber.
O saber que tem força de fontes.
Retrato do artista quando coisa, p. 63

O idioleto manoelês archaico

Na poesia de Manoel de Barros percebemos o desejo de recuperar a linguagem culturalmente perdida ou senão, a partir desse sentimento das origens, criar uma linguagem que reescreva o mundo, reinventando os sistemas de conhecimento que o regem. Desde a gramática, a ciência, passando pela matemática, contrapondo-os ao saber e dizer das teorias que o poeta inventa e à criação de um dicionário poético peculiar. Encontramos em seus livros a invenção de palavras, a desconstrução dos verbos, a criação de um "dialeto rã" que empreende a síntese entre o nome e o objeto, a burla da racionalidade numérica, a preferência pela imagem em vez do nome, a provocação da instabilidade semântica, o bestiário dos seres insignificantes, com os quais o poeta se identifica, o encontro com a ancestralidade da palavra no desenho e a palavra capturada na sua face erótica e sedutora, quando a lesma, figura de recorrência de sua poesia, encarna no seu universo de criação o escrever com o corpo: "A lesma influi muito em meu desejo de gosmar sobre as/palavras.! Neste coito com letras!" (Gramática expositiva do chão, p. 293).

Explorando as virtualidade de produção de palavras da língua, o poeta cria e dá especial atenção aos neologismos: aguaçal, desmorrer, insetal, horizontal. São esses neologismos, a didática da invenção, a destruição das classes das palavras e uma outra sintaxe que compõem o idioleto manoelês archaico:

(…)
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa
Ele me rã
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os ocasos.
Livro das ignorãças, p. 77

A transformação do substantivo em verbo, sem alterar a sua forma, corrompe o nível morfo-sintático e dá à palavra a dimensão de imagem. evocando um momento anterior à sintaxe normativa da língua. A linguagem, que é signo da perda e da separação e muitas vezes do esquecimento da coisa nomeada. se inscreve num espaço de desejo que re(a)corda a palavra e o seu objeto, instaurando uma transitividade que o poeta encontra na linguagem dos pássaros:

5
Na língua dos pássaros uma expressão tinge
a seguinte.
Se 'é vermelha tinge a outra de vermelho.
Se é alva tinge a outra dos lírios da manhã.
É língua muito transitiva a dos pássaros.
Não carece de conjunções nem de abotoaduras.
Se comunica por encantamentos.
E por não ser contaminada de contradições
a linguagem dos pássaros
Só produz gorjeios.
Retrato do artista quando coisa, p. 67 A produção da linguagem poética em Barros se dá ainda no aproveitamento das matrizes lingüísticas correntes na língua, quebradas e combinadas com fragmentos que provocam uma instabilidade semântica:

Se um trem assumir a tarde, de noite chove.
Pessoa que lê água está sujeita à libélula.
A água lírica dos córregos não se vendem em farmácia.
Na beira do entardecer o canto das cigarras enferruja.
Concerto a céu aberto, p. 49, 50, 52

Se apagarmos os fragmentos que dificultam a legibilidade dos versos, teremos fragmentos da linguagem corrente, como é o caso de "Pessoa que lê… está sujeita a… ". São resíduos da fala comum que resistem no espaço do verso; o poeta os combina com outros, inesperados, nos surpreendendo com a iluminação súbita do poético.

O desejo comum a todo poeta de criar uma linguagem está presente em Barros. O idioleto manoelês constitui a experiência poética de uma linguagem que contesta o convencional, aproveita as virtualidades da língua para desconstruir a sua codificação usual. Ainda a linguagem perde a sua condição de mediadora da realidade e se toma instância do desejo de surpreender sujeito e objeto numa mesma unidade.

A fragmentação do sujeito, o desejo de fundar uma linguagem, consequentemente recriar o mundo, e a construção de uma poética que se fundamenta na reflexão que incorpora a invenção e o comprometimento com o tempo presente, com a linguagem do mundo, com o humano demasiado humano, assinalam a experiência poética desse poeta sui generis na Literatura Brasileira, pronto a poema, pronto a ser lido e amado pelo público, que, com certeza, ganharia mais do que "a descoberta das coisas nunca vistas" ou "a alegria dos que não sabem e descobrem". Ganharia a iluminação súbita do humano que só a grande poesia sabe desvelar, desde as pequenas e ínfimas coisas, deste o laço do nosso destino com os rumos do mundo.

Para terminar, com a palavra o poeta Manoel de Barros: "O que eu descubro ao fim da minha Estética da Ordinariedade é que eu gostaria de redimir as pobres coisas do chão. Me parece que olhando pelos cacos, pelos destroços, pela escória eu estaria tentando juntar fragmentos de mim mesmo espalhados por aí. Estaria me dando a unidade perdida. E que obtendo a redenção das pobres coisas eu estaria obtendo a minha redenção" (Gramática expositiva do chão, p. 328).

* Professora doutora de Teoria da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás.

Notas
(1) CÂNDIDO, A. In: COUTINHO, E. F. (org.) (1983), p. 294.
(2) Manoel de Barros em Gramática expositiva do chão – Poesia quase toda, 1990, p. 308.
(3) LIMA, L. C. In: CAMPOS, A. & CAMPOS, H. (1982), p. 407.

Livros de Manoel de Barros: Poemas concebidos sem pecado (1937); Face imóvel (1942); Poesias (1956); Compêndio para uso dos pássaros (1960); Matéria de poesia (1970); Arranjos para assobio (1980); O guardador de águas (1989); O livro das ignorãças (1993); Livro sobre nada (1996); e Retrato do artista quando coisa (1998)

Bibliografia
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__________________. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro: Record, 1997.
__________________. O Livro sobre nada. Rio de Janeiro. Record, 1998.
__________________. O Retrato do artista quando coisa. Rio de Janeiro: Record, 1999.
BARBOSA, João Alexandre. A metáfora crítica. São Paulo: Perspectiva, 1974.
_______________________. As ilusões da modernidade. São Paulo: Perspectiva, 1986.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cultrix, 1983.
CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1975.
CAMARGO, Goiandira de F. Ortiz de. A poética do fragmentário. Uma leitura da poesia de Manoel de Barros. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras/UFRJ, 1996. Tese de Doutorado em Literatura Brasileira.
COUTINHO, Eduardo F. (org.) Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/INL, 1983.
ESTEBAN, Claude. Crítica da razão poética. Tradução de Paulo Azevedo Neves da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna. Tradução de Marise Curioni. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
LIMA, Luís C. O campo visual de uma experiência antecipadora. In: CAMPOS, Haroldo & CAMPOS, Augusto. Revisão de Sousândrade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
PAZ, Octavio. Signos em rotação. Tradução de Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Perspectiva, 1976.

EDIÇÃO 55, NOV/DEZ/JAN, 1999-2000, PÁGINAS 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75