No limiar do terceiro milênio, a Humanidade toma como referência, quase sempre, o século que finda. Raramente se pensa na época em que entramos no segundo milênio. Seria, aliás, difícil recordá-la. É brumosa a memória dos tempos em que o homem registrou a entrada no ano 1000. Ia pelo meio a Idade Média num caminhar incerto marcado por grandes medos e estranhas contradições.

Na Europa Ocidental cultivava-se ainda a nostalgia de bondades míticas do Império Romano. As fronteiras do mundo conhecido – o Ecúmeno dos gregos eram acanhadas; não o representavam. Os conceitos geográficos de Estrabão e Ptolomeu prevaleciam à falta de melhor explicação. A Cristandade não o confessava, mas sabia-se que a civilização e o progresso científico ainda tinham o seu epicentro no Oriente. A esperança de vida era muito curta. Mais intolerante que o Islã e mais classista que o Budismo e o Taoísmo, a Igreja Católica fazia da passagem do homem pela vida um vale de lágrimas; a felicidade possível anunciava-se sobretudo em promessas para além da morte, num difícil céu, cuja antítese, o inferno, condicionava, pelo pavor infundido, o comportamento humano.

Em dez séculos o salto foi gigantesco. Na travessia do XIX para o XX, a Humanidade exibia um grande orgulho pelo caminho percorrido.

Comtiana, cartesiana ou marxista, a intelligentsia européia imaginava o futuro com uma confiança firme. A ideologia do progresso era o denominador comum de projetos muito díspares. Acreditava-se que a razão, a inteligência e as lutas sociais funcionavam como alavancas da humanização da vida. Generalizava-se a convicção de que a ciência estaria cada vez mais a serviço do homem.

A Primeira Guerra Mundial golpeou duramente essas esperanças ingênuas. Na realidade a própria minoria que se beneficiava das conquistas do progresso apareceu dividida por antagonismos materiais insuperáveis que desembocaram numa orgia de barbárie. A boa consciência dos poderosos, na Belle Époque, assentava numa visão deformada do mundo. A África, retalhada como terra de ninguém na Conferência de Berlim, atravessava um período sombrio da sua história. Na Ásia a herança do colonialismo era também pesadíssima. Na América, a emergência dos Estados Unidos como primeira potência econômica desfez ilusões românticas. A república que para muitos anunciava as sociedades do futuro principiou a aparecer como o bastião do capitalismo mais cruel. Na confusão latino-americana as estruturas oligárquicas herdadas da colonização facilitaram a implantação de novas dependências imperiais e mantiveram os povos sob a mais dura opressão.

A Revolução Russa de Outubro de 1917 restituiu a esperança a centenas de milhões de homens. A materialização da utopia, finalmente, parecia ao alcance da mão. Durante anos uma imensa esperança correu pelo mundo. Cercada, agredida no interior e do exterior, a Revolução encontrou no povo russo forças sempre renovadas que lhe permitiam resistir. A prática não tardou, porém, a demonstrar que a construção do socialismo era uma tarefa infinitamente mais difícil e complexa do que os pioneiros bolcheviques imaginavam. Não cabe neste desambicioso trabalho ensaiar sequer uma explicação sintética das causas do ruir do socialismo na União Soviética, inseparáveis da própria inviabilidade do modelo aplicado, de erros enormes do Partido e dos seus dirigentes, após a morte de Lênin e do XX Congresso, e também da estratégia do inimigo externo. Mas julgo imprescindível recordar que, o malogro do socialismo na URSS não apaga o significado positivo do legado que a Revolução Russa deixou à Humanidade. O mundo não voltou a ser igual ao que era. Foi o grande medo do comunismo e a força da solidariedade internacionalista que tornaram possíveis grandes conquistas sociais que humanizaram a vida dos trabalhadores em dezenas de países. O rápido avanço do processo de descolonização emerge como outra das suas conseqüências. E quando o nazifascismo surgiu na Alemanha como a ameaça do século, foi a URSS quem salvou a Humanidade, quebrando, com o custo de 25 milhões de mortos soviéticos, a coluna vertebral da mais poderosa máquina de guerra até então criada.

A Segunda Guerra Mundial conduziu o mundo à beira do apocalipse.

"Nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais. Tínhamos ouvido falar de mundos inteiros desaparecidos, de impérios que se afundaram com todos os seus homens e máquinas, perdidos na indevassável profundidade dos séculos, com deuses e leis, academias e dicionários. Agora vemos que o abismo da história é suficientemente amplo para que nele caiba a totalidade do mundo. Sentimos que uma civilização tem a mesma fragilidade que a vida". São de Paul Valery estas palavras. Elas expressam a reflexão e o desencanto suscitados pela tragédia. E, contudo, a saída do pesadelo fez renascer a esperança. Por um momento breve voltou a acreditar-se que estavam criadas finalmente condições para uma paz perpétua propícia à realização de aspirações eternas da Humanidade.
Novos profetas do progresso anunciaram essa Era.

Não chegou. Os progressos da ciência e da técnica quase excederam o imaginável. O homem pisou o solo da Lua; voltará ali quando quiser. Prepara o salto para a colonização do Espaço, apto a navegar pelos caminhos do Universo. Domina conhecimentos e técnicas que lhe abrem a possibilidade de alimentar na Terra uma população bem superior aos atuais 6 bilhões e de assegurar a todos os níveis satisfatórios de saúde, educação e bem-estar.

A revolução russa de 1917 trouxe esperança a milhões de pessoas

Entretanto, neste patamar do terceiro milênio, o saber não se encontra colocado a serviço de um projeto humanista planetário. A geopolítica – como afirma Richard Falk, professor da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos – "define-se cada vez mais como meio de controlar o poder imaterial (soft power), isto é, as tecnologias da informação que prefiguram as fronteiras do ciberespaço". E, contudo, ignora-se ainda quem virá a controlar os controladores enquanto, como diz Falk, "os governos democráticos em si mesmos são cada vez menos capazes de exercer nos seus territórios as suas responsabilidades perante os respetivos povos". O fim da guerra fria afastou o grande medo da confrontação nuclear. Mas novos pavores tomaram o lugar dos antigos. O desenvolvimento da ciência, mal aproveitado, não produz os benefícios esperados. Uma crise global de civilização ameaça a própria sobrevivência da Humanidade.

O homem é cada vez mais tratado como matéria rendível. O neoliberalismo não protege a variedade da vida e da diversidade das culturas; agride-as. Estados nacionais são forçados a redefinir sua identidade. Nesse aspecto a crise crepuscular do fim do milênio traz à memória as épocas de transição que precederam o Renascimento. A escuridão e a incerteza pairam sobre o planeta. Estados-nação desaparecem como entidades culturais e estados artificiais são edificados sobre as suas ruínas. Somente na Europa formaram-se na última década mais estados que no período posterior à Primeira Guerra, com a peculiaridade de o processo de secessão ser em alguns casos resultante de interesses econômicos estranhos à vontade dos povos.

O eclipse de nações coincide com a tendência para a formação de governos supranacionais que representam um novo tipo de protagonismo histórico. É muito cedo para se ter resposta, por exemplo, aos desafios colocados pela União Européia.

O sociólogo Pierre Bourdieu, do Colégio da França, numa exegese da gigantesca campanha de perversão ideológica montada pela máquina difusora do pensamento único, lembra que
“um trabalho permanente foi feito associando intelectuais, jornalistas, homens de negócios, em revistas que pouco a pouco se impuseram como dispondo de legitimidade para imprimir força e evidência a uma visão neoliberal que, na essência, veste de racionalização econômica as premissas mais clássicas do pensamento conservador de todos os tempos e de todos os países”.

Idéias velhas são apresentadas pela máquina de propaganda neoliberal não apenas como expressão de um pensamento inovador, mas, o que agrava é consequências, como verdades inquestionáveis.
O pensamento único, que emerge como ideologia da ideologia dominante, criou para se impor a mais poderosa e atípica máquina de propaganda jamais instalada. Dispondo do controle quase absoluto da mídia, utiliza a tática de desqualificar pela agressão os eventuais críticos. Os papéis são invertidos. O projeto ecumênico neoliberal com suas teses autoritárias, desafiadoras da racionalidade, é apresentado com progressista, renovador, democrático; aqueles que o contestam e apontam o que nele há de dissolvente como fonte da desigualdade e promotor do caos são estigmatizados como seres arcaicos conservadores. Insinua-se que o Estado é vocacionalmente inimigo do homem moderno e que o mercado isento de qualquer controle responde a aspirações espontâneas do homem. Ao primeiro associada a idéia de tirania, ao segundo, os conceitos de democracia e liberdade.
O mundo nunca foi tão desigual quanto no final do século XX.

Nessa guerra ideológica em desenvolvimento, as universidades e os intelectuais estão cumprindo um papel globalmente negativo. A maioria da intelligentsia, embora sejam muitas e brilhantes as exceções, contraria hoje atitude de crítica vigilante que ao longo dos últimos séculos adotou. Assume sobretudo uma postura passiva, de capitulação. Muitos dos que não aderem baixam os braços e, argumentando que não há alternativa, admitem que a única estratégia possível no limiar do terceiro milênio é a da globalização neoliberal reformada. Reconhecem seus efeitos negativos na promoção da desigualdade, mas acabam por se render aos argumentos dos teólogos do mercado.

Neste panorama de crises encadeadas, cada vez mais devastadoras – México, Ásia Oriental, Rússia, Brasil – a pressão exercida pelo mundo do capital sobre o mundo do pensamento é permanente e muito forte. Poucos acontecimentos a expressaram tão nitidamente quanto uma chocante vitória obtida pelos inimigos da Cultura durante a Cimeira da Terra, no Rio de Janeiro. Enquanto ali se defendia a biodiversidade e o planeta, um grupo de celebridades emitia em Heidelberg, catedral da inteligência, um manifesto assustador. Nesse documento, 264 cientistas famosos, entre os quais 52 haviam sido premiados com o Nobel, denunciavam a Ecologia como "emergência de uma ideologia irracional que se opõe ao progresso científico”.

Significativamente, dezenas de gigantescas transnacionais rejubilaram com o brado obscurantista lançado por homens eminentes que assumiam uma posição incompatível com o saber. A aliança do capital e da ciência contra valores culturais é uma aberração.

A religião do dinheiro defende as desigualdades e pretende apresentá-las como alicerce do progresso. Os 225 multimilionários que encabeçam a lista dos homens mais ricos do mundo possuem fortunas que, somadas, ultrapassam um trilhão de dólares, tanto quanto o rendimento anual de 47%, quase a metade, da parcela mais pobre da Humanidade. Por si só o volume de vendas anual da General Motors é superior ao PIB de um país rico como a Dinamarca; o da Exxon, a rainha das Sete Irmãs do petróleo, excede o da Áustria. As cem maiores transnacionais apresentam um faturamento superior à soma das exportações dos 120 países mais pobres. Nos próprios países do G-7 a pobreza e o desemprego alastram. Na União Européia o total de trabalhadores desempregados atinge a casa dos 18 milhões.

Nos Estados Unidos o número de analfabetos funcionais ultrapassa 50 milhões e a esperança de vida de 32 milhões de pessoas é inferior a 60 anos. Na Alemanha o governo anuncia a existência de 4 milhões de analfabetos.

A revolução tecno-eletrônica cujos efeitos na evolução das sociedades contemporâneas não foram ainda minimamente estudados poderia ter sido colocada a serviço da Humanidade. Está, porém, ocorrendo o contrário.

O homem novo não apareceu. A Utopia de Thomas More não se concretizou; a cidade ideal sonhada pelo trácio Spartacus não foi criada. Esse, tal como outros grandes objetivos das revoluções modernas não se materializaram. O homem velho resiste tenazmente; tem dificuldade em acompanhar o novo paradigma tecnocientífico. Os grandes pensadores do nosso tempo não são – como Fidel Castro lembrou recentemente a economistas de todo o mundo reunidos em Havana – mais inteligentes que Aristóteles e Platão. Os escritores do final do milênio não ofuscam o gênio de Cervantes, de Shakespeare, de Camões. E, o que é dramático, o saber, privilégio de pequenas minorias, continua a ser usado contra os direitos e aspirações das grandes maiorias. Pior ainda, o direito à vida e à educação custa dinheiro.

É neste contexto de contradição entre conquistas prodigiosas da ciência e da técnica e a incapacidade do homem sapiens para, coletivamente, desenvolver as suas melhores potencialidades e neutralizar o que nele subsiste dos instintos e da irracionalidade dos primeiros primatas de que descende – é neste panorama de desafios, de esperança e medo que a revolução eletrônica marca, na transição do milênio, o caminhar hesitante da Humanidade.

Na era da comunicação instantânea estamos cada vez mais desinformados. Com os pés no século XXI, os próprios conceitos tradicionais de tempo e espaço tomaram-se inadequados para comunicar. A história passou a desenvolver-se num tempo único. Até muito recentemente acontecia em tempos espaciais demarcados, em aldeias, cidades, países. Doravante desenvolve-se num espaço universal, num tempo universal, instantâneo.

Ora a responsabilidade do homem velho injeta enormes perigos nessa universalização da história.
"Com a globalização das telecomunicações – adverte o escritor Paul Virilio – temos de estar preparados para a ocorrência de um acidente geral, um acidente nunca visto, tão surpreendente quanto o tempo mundial, esse tempo nunca visto. Um acidente geral que, em certa medida, seria o que Epicuro chamava “o acidente dos acidentes”. O crash das bolsas prefigura-o levemente. Mas quando falamos de “bolha financeira” para a economia, estamos recorrendo a uma metáfora significativa, porque sugerimos uma espécie de nuvem que evoca outras nuvens tão inquietantes quanto à de Chernobil". Nunca antes a Humanidade imitou tão perigosamente quanto hoje os aprendizes de feiticeiro. O assalto à razão desenvolve-se em duas frentes num complexo processo de interação: a imperial e a do mercado. Forças poderosas acionam mecanismos cujo funcionamento escapa cada vez mais ao seu controle.

A ruptura do equilíbrio na área do poder político e militar, resultante da implosão da URSS, teve conseqüências nefastas para o conjunto da Humanidade. A unipolaridade não facilitou o advento da anunciada Nova Ordem Mundial. Introduziu uma desordem cujos desdobramentos são por ora imprevisíveis. Ao substituir-se às Nações Unidas, o sistema de poder que dirige a sociedade norte-americana e representa os EUA desenvolve uma estratégia imperial que talvez somente tenha precedente na que o Império Romano adotava.

A desigualdade nunca foi tão grande no mundo como no final deste século XX

Um dos seus mais brilhantes porta-vozes, o professor Samuel Huntington, neoliberal clintoniano, condensou num ensaio publicado em 1993 na revista Foreign Affairs, a tese segundo a qual os Estados Unidos têm o dever de manter e perpetrar a sua atual liderança mundial. A questão é colocada numa perspectiva quase religiosa. A dominação imperial norte-americana seria uma exigência ética e dela dependeria a felicidade do homem. Isso porque os Estados Unidos "são o único país cuja identidade nacional se define por um conjunto de valores políticos e econômicos universais, isto é, a liberdade, a democracia, a igualdade, a propriedade privada e o mercado".

Na opinião de Huntington, "a promoção da democracia, os direitos humanos e os mercados são de muito maior importância para a política dos Estados Unidos do que a política de qualquer outro país".
Esta linguagem, que retoma o mito da nação predestinada, conduz à aceitação de teses mais pragmáticas implícitas nela, como a Doutrina Lake, segundo a qual os Estados Unidos têm o direito de intervir unilateralmente sempre que considerem ameaçados seus interesses em qualquer lugar do mundo, ou aquilo que os dirigentes da nação tenham por imprescindível à segurança do planeta e, portanto, à felicidade humana.

O simples fato de o índice de violência nos Estados Unidos ser hoje elevadíssimo e de sua percentagem da população encerrada em presídios (1.800.000, ou seja um em cada 150) ser ali a mais alta do mundo é elucidativo das perigosas contradições do neomessianismo norte-americano.
O professor Huntington noutro polêmico ensaio, esboçou uma concepção geocultural do mundo contemporâneo que ajuda a compreender aspectos da história de que somos simultaneamente sujeito e objeto na viragem do milênio.

"A minha hipótese – escreveu então – é a de que num mundo novo os conflitos não terão origem na ideologia ou na economia. As grandes motivações das divergências, as principais fontes de conflito serão culturais. Os Estados-nação continuarão a cumprir o papel principal nos assuntos internacionais, mas os principais conflitos políticos em escala mundial serão protagonizados por nações e grupos de diferentes civilizações. O choque das civilizações dominará a política mundial".

Essa tese que empolgou os setores racistas e xenófobos da sociedade norte-americana, desencadeou uma polêmica de âmbito mundial. Huntington estimula a intolerância ao empregar expressões como "as fronteiras sangrentas do Islão". Para milhões de conservadores norte-americanos neoliberais a evolução do mundo contemporâneo comprovaria a superioridade das nações 'brancas' do norte civilizado (o Japão seria uma exceção à regra) sobre os povos do Terceiro Mundo, a superioridade ética e cultural da Cristandade sobre o mundo muçulmano. A única civilização merecedora de respeito seria hoje aquela que deifica o mercado.

Os aplausos a George Bush quando apresentou a Guerra do Golfo como nova cruzada em defesa da civilização e prólogo de uma nova ordem mundial, e a total insensibilidade da opinião pública norte-americana perante o bloqueio a Cuba, as sanções imposta ao Iraque e a bárbara agressão à Iugoslávia, são esclarecedores da absorção pelo norte-americano médio de valores de um perigoso anti-humanismo que o sistema de poder dos Estados Unidos cultiva, com o apoio de intelectuais acadêmicos que gozam da maior respeitabilidade.

A desigualdade no acesso à informação acompanha a desigualdade econômica crescente.
Na Frente do Mercado – cuja estratégia se desenvolve com o apoio integral da Frente Imperial, mas com uma autonomia crescente – o novo paradigma técnico-científico veio abrir ao jogo do dinheiro a possibilidade de aventuras inimagináveis há poucos anos e que imprimem características caóticas ao desenvolvimento selvagem do capitalismo no final do milênio. O efeito bumerangue do estouro da bolsas na Coréia, na Tailândia e na Indonésia, o grande medo suscitado pela falência dos bancos russos e pelo afundamento da moeda brasileira demonstraram que o mercado, imprevisível como os movimentos de um monstro desconhecido, escapa a qualquer tipo de controle. A criatura começa a surpreender e ameaçar aqueles que a criaram. Assustado, Milton Friedman, o pai dos Chicago Boys, defende o fim do FMI; George Soros, o rei dos especuladores, o homem que afundou a libra esterlina, sugere a imposição de controles capazes de conter os excessos do mercado globalizado. São sintomas do grande medo que já toca os sacerdotes laicos do neoliberalismo de modelo hayeckiano.

Na crise do processo civilizatório do final do milênio, o monopólio praticamente absoluto dos meios de comunicação passou a constituir um elemento fundamental do capitalismo globalizado, ou seja do sistema de poder imposto à Humanidade. Eduardo Galeano expressa uma evidência ao lembrar que os modernos meios de comunicação da era eletrônica, colocados ao serviço da incomunicação, cumprem entre outras funções a de imporem "a adoração unânime dos valores da sociedade neoliberal".

O novo paradigma, viabilizado pela revolução técnico-científica, não introduziu apenas um fato de poder antes inexistente… gerou um Poder Novo. Sem quase disso nos apercebermos, surgiu na Terra uma forma novíssima e específica de organização social. O sociólogo espanhol Manuel Castells cunhou a expressão de Sociedade Informacional para designá-la.

O que lhe confere – cabe perguntar – caráter totalmente inovador? Na sociedade neoliberal globalizada, a geração, o processamento e a transmissão da informação convertem-se em fontes fundamentais da produtividade e do próprio poder. Estamos perante um fenômeno resultante das novas condições tecnológicas surgi das no período histórico de transição que atravessamos.
É transparente que compreendemos e conhecemos muito maio mundo que o neoliberalismo tenta modelar a seu gosto.

Os que rejeitam esse projeto – é o meu caso – sentem a falta de uma análise científica e global da moderna sociedade informacional que está se formando nos países industrializados. Na esquerda não dispomos, nem isso seria possível, dada a rapidez quase alucinatória das mudanças introduzidas pelo novo paradigma, de um diagnóstico comparável para o nosso tempo de Horror Econômico – título de um livro-protesto de Viviane Forrester – ao que Marx elaborou em O Capital, partindo do estudo exaustivo do capitalismo do século XIX. Porventura compreendemos bem o capitalismo da revolução eletrônico-informática? A resposta é obviamente negativa. Que modificações, por exemplo, introduziu no próprio conceito de mais-valia a máquina digital? Acaso temos resposta satisfatória para as conseqüências em curto prazo do funcionamento de um mercado sacralizado onde somente o jogo especulativo do dinheiro no mercado de divisas representa quase 60 vezes o valor do comércio mundial? Não, e não…

Os EUA desenvolvem hoje uma estratégia imperial cujo precedente é o Império Romano

Num belo livro cuja tradução portuguesa será lançada em breve – La izquierda en el umbral del Siglo XXI, Haciendo posible lo imposible – a chilena Marta Harnecker aborda com lucidez e coragem o problema da alternativa a um modelo civilizacional que suscita crescente repúdio, mas que se impõe e avança precisamente porque os que o rejeitam não encontraram ainda nos terrenos da teoria e da prática fórmulas de o combater com eficácia, opondo-lhe no domínio do concreto, outro modelo.

Esse combate não pode desenvolver-se somente no campo da política propriamente dita. Tem de ser muito mais amplo, e despojado de dogmatismos e de localismos. O homem já foi à Lua, mas tem demonstrado ser incapaz de defender valores permanentes, universais, por ele criados ao longo dos últimos 2.500 anos. É inegável que a irracionalidade do mercado e o funcionamento do novo paradigma favorecem a emergência de uma cultura global planetária ou, para ser mais claro, de uma subcultura de raiz norte-americana de vocação unificadora que ambiciona submergir todas as culturas existentes, responsáveis pela diversidade e pela criatividade que permitiriam o avanço do processo civilizatório.

A homogeneização de costumes e gostos que destrói os particularismos locais galopa em todos os azimutes. Os seus efeitos são especialmente devastadores em amplas regiões do Terceiro Mundo. Comentando o fenômeno, Edgar Morin assinala que "a americanização é o aspecto mais imagético e ostensivo de um processo nascido na própria Europa: o do desenvolvimento capitalista que transforma em mercadoria tudo aquilo em que toca, o do desenvolvimento industrial que uniformiza tudo o que integra, o do desenvolvimento industrial tecnoburocrático que torna anônimo tudo aquilo de que toma posse, o da urbanização levada às últimas conseqüências, que desintegra as antigas comunidades e atomiza as existências na multidão solitária".

O falecido Mike Cantor, que foi secretário de Comércio dos Estados Unidos, dizia com arrogância durante as negociações que precederam a formação da Organização Mundial do Comércio que a cultura era uma mercadoria como qualquer outra e como tal deveria ser tratada. Respondia assim à exigência francesa da exclusão cultural que visava a impedir o massacrante domínio das transnacionais dos Estados Unidos no nevrálgico setor do audiovisual.

Mesmo Friedman, Soros e outros expoentes do neoliberalismo expressam sintomas de medo perante os excessos do mercado globalizado

Quando a sociedade é colocada a serviço da economia e não ocorre o contrário, o funcionamento do mercado deificado aparece como muito mais importante do que a felicidade dos homens.
É minha convicção que no limiar do novo milênio, a Humanidade está a ser empurrada para uma catástrofe de proporções planetárias… Encontra-se muito próxima da beira do precipício.
A globalização neoliberal não promove somente o desemprego, a pobreza, a desigualdade social. Despoja também o mundo da sua cobertura vegetal. A ruptura de equilíbrios ecológicos milenares multiplica secas e inundações; a camada de ozônio, agredida, adelgaça perigosamente; as chuvas ácidas matam os bosques; as pestes voltam a ser endêmicas em regiões do Terceiro Mundo como ocorria na Europa e na Ásia durante a Idade Média.

É falso que seja bom à Humanidade o que é bom para as grandes empresas.
Eduardo Galeano em uma Conferência Internacional sobre Ecologia e Espiritualidade afirmou que a saúde do mundo está transformada numa coisa asquerosa.

"Este sistema de vida – afirmou – que se oferece como paraíso, fundado na exploração do próximo e na aniquilação da natureza, é aquilo que nos está atacando o corpo e envenenando a alma e nos está deixando sem mundo (…) A civilização que confunde os relógios com o tempo, o crescimento com o desenvolvimento, e o grande com a grandeza, também confunde a natureza com a paisagem, enquanto o mundo, labirinto sem centro, se dedica a romper o seu próprio céu".

Identifico-me com a posição de Galeano. Mas, tal como ele, não sou pessimista. Vamos entrar mal no século XXI. Mas depende de nós, do homem – responsável por incontáveis e monstruosos crimes, mas também por prodigiosas conquistas –, encontrar a saída para a atual crise de civilização.
A tarefa será homérica. Temos de partir do que somos, do que fizemos, sem a idéia abstrusa de enterrar o passado, desconhecendo que o presente nasceu dele.

A globalização neoliberal, como projeto de futuro, está condenada. A agonia poderá ser lenta, mas a irracionalidade do modelo inviabiliza-o.
Acreditar que transformações revolucionárias e humanistas pode mudar a vida no próximo século não significa, porém, que haja no momento condições mínimas para as levar adiante.
A dificuldade começa numa pergunta elementar. Hoje a esquerda não se encontra sequer em condições de formular com clareza uma alternativa credível. Que revolução queremos, com que revolução sonhamos?

Não vejo outra alternativa para globalização neoliberal, capitalista, que não seja uma globalização socialista, globalização da solidariedade entre o povos. Não tem data previsível n calendário do novo milênio, nem contornos definidos. Mas, por não ter perdido a confiança no homem, acredito que acontecerá.

Ao longo dos últimos dois milênio segmentos da Humanidade progressistas confrontaram-se muitas vezes angustiados com desafios que pareciam insuperáveis, expressos em perguntas não muito diferentes das que hoje formulamos. E, contudo, foram encontradas sempre saídas. A história nas grandes, viragens positivas que mudaram a vida, cumpriu-se muitas vezes contra a lógica aparente.
A tarefa de tornar possível o impossível como nos lembra Marta Harneker, está ao alcance da Humanidade. Exigirá desta esforços comparáveis ao combate do povos que viabilizou as grande revoluções modernas. Tudo é, porém nevoento no futuro próximo. Não estamos preparados para esboçar o perfil das rupturas que assinalarão desmoronamento do neoliberalismo. A criação de uma sociedade humanizada em nível planetário depende antes de mais uma revalorização da teoria que possa fecundar uma práxis nova capaz de mobilizar a consciência e as energias dos povos. Esse será o grande desafio do século XXI.

Miguel Urbano Rodrigues é escritor e jornalista.

EDIÇÃO 55, NOV/DEZ/JAN, 1999-2000, PÁGINAS 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28