O episódio que resultou na demissão sumária do ex-ministro "do Desenvolvimento" seria meramente cômico, apenas mais um dentre os muitos desencontros grotescos do governo neoliberal do PSDB, não confirmasse ele um desígnio trágico para o país, o da "servidão voluntária", descrito no clássico Discurso, obra póstuma de La Boetie (1530-65), o paradigma de Montaigne.

Comecemos, entretanto, com uma concepção apenas um pouco mais recente. Se alguma coisa restou inabalada da obra revolucionária de David Ricardo foi o "teorema dos custos comparativos":
"Portugal pode produzir a unidade de vinho em 80 horas e a de tecido em 90, enquanto a Inglaterra produziria a primeira em 120 e a segunda em 100. Se cada país fabricar uma unidade de cada produto, o dispêndio global de horas seria de 390 horas. Se entretanto a Inglaterra se especializasse em tecidos e Portugal em vinho, para a mesma produção seriam consumidas 360 horas, com um ganho de 30 horas".

Economistas absorveram a tal ponto esse postulado que para eles sua atuação já é inconsciente.
Além do mais não se restringe à produção de bens, ou à prestação de serviços, mas se estende o referido dogma até a geração de conhecimento. Basta no enunciado acima substituirmos Portugal por Brasil, Inglaterra por Estados Unidos, tecido por ciência e tecnologia. vinho por suco de laranja. É claro que o triunfo do livre comércio, do qual o Brasil se tornou um paladino, a globalização e o neoliberalismo social e político são alavancas que reforçam a especialização.

"Ora", dirás, "aí estão apenas teorias. Essas forças são certamente neutralizadas por outras, racionais e emocionais. O patriotismo ainda existe, a defesa de um futuro mais generoso para todos, a cidadania, a solidariedade, a identidade nacional".

De fato, há resistências, mas as evidências são que o teorema de Ricardo se torna inexorável com a globalização associada ao servilismo consentido, cujos limites de tolerância foram descritos por La Boetie. Se não, vejamos. Os indícios aqui apresentados são de duas naturezas. Em primeiro lugar, demonstraremos com dados concretos que há um êxodo de cientistas oriundos de países periféricos para os Estados Unidos, como evidência da especialização em ciência e tecnologia daquele país. E em seguida demonstraremos que a administração FHC planeja para o próximo milênio liquidar a pesquisa no Brasil.

Já em 1984 um estudo realizado pelo Departamento de Comércio Norte-americano concluiu que o ganho, entre 1950 e 1975, para os Estados Unidos fora de US$ 8,6 bilhões, por ano, em média, devido à emigração de cientistas e engenheiros. Em 1993, 37% dos professores de engenharia e 27% dos de matemática e ciências de computação nos Estados Unidos eram estrangeiros. Em ciências exatas, nas grandes universidades americanas, os percentuais ainda eram maiores. Recentes estatísticas da Fundação Nacional para a
Ciência (NSF) dos estados Unidos mostram que 63% dos estudantes estrangeiros de pós-graduação pretendem permanecer nos Estados Unidos. Como demonstrou David North, em seu "Soothing the Establishment The Impact of Foreign-Born Scientists and Engineers on America", as universidades norte-americanas discriminam estrangeiros e com isso selecionam os melhores cérebros. Apesar disso o número de doutoramentos em engenharia, computação e matemática dobrou entre 1985 e 1995 nos Estados Unidos, e esse aumento foi devido exclusivamente a estrangeiros.

Além do mais, é um fato bem conhecido da antropologia que o imigrante é um indivíduo mais fortemente motivado. E em ciência essa é uma condição altamente acentuada. Não há grande cientista provinciano. O cientista, mais que qualquer outro profissional criador, procurará condições ideais de trabalho. Se o país que mais valoriza a pesquisa é os Estados Unidos, se é lá que encontrará condições ideais para realizar seu trabalho e seu sonho de glória, as forças que o reterão no Brasil, materiais ou emocionais, terão de ser formidáveis.

O Brasil lançou recentemente um plano para o "desenvolvimento" nacional chamado "Avança Brasil". Nesse plano, é reservada uma verba para o desenvolvimento do conhecimento e da informação equivalente a 0,25% do PIB. O Planejador Maravilha explica que, além do Orçamento federal, haverá as contribuições dos estados e da iniciativa privada. Nossos cálculos particulares mostram que estados estão contribuindo no máximo com alguma coisa próxima a 0,05% do PIB, uma vez que o ensino de cursos de pós-graduação deve ser incluído no item referente à educação. Se o ensino de pós-graduação fosse incluído no item pesquisas, não mudaria muito, entretanto. A contribuição dos estados, nesse caso, não ultrapassaria 0,1% do PIB.

O Ministério da Ciência e Tecnologia vem atribuindo à indústria multinacional no Brasil uma participação expressiva em pesquisa. Devem ser pesquisas secretas, pois ninguém conseguiu até hoje o menor vestígio de sua existência. O registro de patentes e o levantamento de trabalhos publicados mostram que nada, absolutamente nada, aliás como era de esperar, foi realizado no Brasil.

Um ex-ministro da Ciência e Tecnologia chegou ao cúmulo de reconhecer publicamente que não apenas estava o seu ministério incluindo como pesquisa, no percentual do PIB, a compra por subsidiária de multinacionais de projetos (blue prints) de fabricação de veículos e de outros artefatos e processos para produção de substâncias de suas matrizes no exterior, mas indo muito além, doando recursos para tais aquisições. Ou seja, subsidiando a engenharia no exterior. Infelizmente, as poucas empresas nacionais que restam ou são muito pequenas ou não possuem a cultura adequada. Em resumo, a empresa privada, multinacional ou nacional, e também o que restará da empresa estatal em nada contribuirão para a pesquisa científica e tecnológica nacional, e apenas de maneira marginal para o desenvolvimento de produtos e processos.

Esse 0,3% ou 0,4% que o programa "Avança Brasil" destaca para toda a ciência e tecnologia e informação (inclusive Internet 2), incluindo os setores privado, estaduais e federal, deve ser contrastado com os 3% que, em média, os países desenvolvidos já dedicam à pesquisa.
Em resumo, demonstramos que as forças derivadas da inclinação crescente para a especialização já estão em atividade, sugando o talento que existe no Terceiro Mundo. Demonstramos, por outro lado, também que o Brasil, conscientemente ou não, já se conformou com essa ideologia do "desenvolvimento dependente", que pouco difere da "servidão voluntária", embora a retórica, com freqüência, seja outra. E, por incrível que pareça, foi o então ministro do Desenvolvimento, notório burocrata, que diagnosticou: "É covardia". Embora não soubesse identificar onde realmente brotava com tanta exuberância esse vício.

Rógerio Cezar de Cerqueira Leite é físico e professor emérito da Universidade de Campinas (UNICAMP). Este texto foi originalmente publicado na Folha de S. Paulo, 13/09/1999.

EDIÇÃO 55, NOV/DEZ/JAN, 1999-2000, PÁGINAS 61, 62