Dez cenas da história do trabalho no Brasil
1 Comunismo primitivo: As sociedades indígenas pré-cabralinas ignoram a propriedade privada, a divisão de classes, a opressão de classe e o Estado.
Conhecem apenas a mais primitiva divisão do trabalho, entre as mulheres, que lavram e coletam alimentos e tecem algodão, e os homens, que caçam, pescam – e guerreiam. O clima ameno e a água abundante propiciam relativo bem-estar e uma população estimada em mais de 5 milhões de habitantes, em 1500, nas terras que hoje formam o Brasil. [Caboclo, gravura de Jean-Baptiste Debret]
2 Escravidão vermelha: A escravização dos "negros da terra" (indígenas), teoricamente proibida por Roma e Lisboa, começa em 1511, antes do emprego dos "negros da Guiné" (africanos), e perdura por toda a era escravista. Concentra-se em áreas pobres, como São Paulo antes do surto do café, e mescla-se com formas semi-escravistas. Alimenta-se da "preagem" (captura) de homens e mulheres, sobretudo nas missões Guarani do Paraná Paraguai. [Índios "de corda" (escravizados) em gravura de Debret]
3 Escravidão africana: O engenho de açúcar define o padrão do escravismo colonial, ou "sistema brasileiro", que predomina em três quartos da nossa história. Tem por bases o latifúndio, a grande produção, o braço escravo, a monocultura e o monopólio colonial. É uma unidade quase-industrial, com avançada divisão do trabalho (perto de 30 funções). Em contraste, o regime de trabalho é talvez o mais brutal que a humanidade conheceu: baseado na exploração do trabalhador até a morte, não permite sequer a reposição física da classe que trabalha, dependendo do tráfico negreiro para se reproduzir. [Usina de açúcar, desenho de Franz Post, séc. XVII]
4 Culturas do couro: Para além da área dos canaviais, desde o sertão nordestino até o pampa gaúcho, espalham-se as culturas do couro (principal produto comercializado), voltadas para a pecuária extensiva. Aí, o escravismo mescla-se com formas que lembram a servidão e dão origem à polêmica sobre a vigência de relações feudais ou semifeudais no Brasil. O vaqueiro, ajudado pelo "fábrica" (aprendiz), cuida do gado do latifundiário, em troca de uma cria em cada quatro. O sistema, com poucas modificações, avança pelo século XX nas regiões mais sertanejas retardatárias. [Vaqueiro do sertão potiguar nos anos 1950, "encourado" para a lida do gado tal como seus avós de três séculos antes]
5 O campesinato independente: O Império estimulará por motivos estratégicos a instalação de famílias européias no Sul, em núcleos de camponeses independentes. É a primeira forma de trabalho livre no Brasil – afora as comunidades marginalizadas de indígenas, quilombolas e posseiros existentes nas bordas do sistema latifundiário. Responde pela desigualdade social menos gritante nas áreas onde se implanta. Sua degradação na segunda metade do século XX, sob o impacto da modernização conservadora da agricultura, fornece uma das primeiras bases do movimento do sem-terra. [Família camponesa italiana instalada na serra gaúcha]
6 O colonato: A crise do sistema escravista, na segunda metade do século XIX, leva o latifúndio cafeeiro a importar braços europeus, mediante contratos de parceria. Nesse regime, semilivre, o imigrante e sua família trabalham à meia para o fazendeiro, presos pela dívida das despesas de viagem e outras. No início o colonato tem fortes traços escravistas, que geram revoltas contra "a nova escravidão", como a da fazenda Ibicaba, em 1856-57. Aos poucos, já no século XX, cede espaço a formas que se aproximam do regime assalariado. [Colonos europeus na lavoura do café, início do século XX]
7 Primórdios da indústria: A indústria brasileira nasce com grande atraso, proibida na Colônia (alvará de 1785), contida pelo sistema escravocrata até 1888 e pela política oficial "agrarista" até 1930, sabotada pela concorrência estrangeira (assassinato de Delmiro Gouveia, e demolição da fábrica de Pedra, 1929). Implanta-se por volta da virada do século XX. Uma minoria de imigrantes enriquecidos forma a maior parte da burguesia industrial dessa fase, enquanto o jovem proletariado industrial é recrutado sobretudo na massa de imigrantes sem posses. Não há direitos sociais. A mão-de-obra feminina e infantil, mais barata, é amplamente explorada. [Meninos operários da virada do século XIX para o XX, São Paulo]
8 As grandes fábricas: O modelo dito getulista, fruto da Revolução de 1930, desimpede o caminho para a industrialização, com base no tripé capital estrangeiro nacional-estatal. A economia brasileira cresce com rapidez inaudita, face aos períodos anteriores e aos demais países. Entra, embora com atraso, na segunda revolução tecnológica burguesa (fordista), com grandes unidades e um grande proletariado fabril, Porém as taxas de exploração e as disparidades de classe são escandalosas. A crise social aflora nos anos 60; temporariamente contida pela violência após 1964, explodirá com força ainda maior nos anos 80. [Linha de montagem da Volkswagen de São Bernardo em 1980, quando a fábrica tinha 46 mil trabalhadores; hoje, são 20 mil]
9 Proletarização na agricultura: Sobretudo após 1964, ocorre uma modernização conservadora na agricultura. O latifúndio mantém e até reforça seu monopólio sobre a terra, mas aburguesa-se, usando créditos, máquinas, insumos. Surge o chamado complexo agro-industrial. O trabalho assalariado se generaliza e passa a predominar em quase todo o país, sobretudo sob a forma do trabalhador temporário, o "bóia-fria". O êxodo para as cidades leva pela primeira vez à redução absoluta da população rural. Com o predomínio de relações tipicamente capitalistas no campo, o proletariado – urbano e agrícola – torna-se, em torno dos anos 70, a classe social mais numerosa do país. [Assalariados da cana na greve de Guariba, São Paulo, 1984]
10 A precarização do trabalho: A terceira revolução tecnológica burguesa (toyotista), somada às "décadas perdidas" de 1980-90, à ofensiva neoliberal no mundo e no Brasil,
provocam graves transformações no mundo do trabalho. A onda de desemprego é a mais visível, mas não a única. Generalizam-se também a precarização, a flexibilização e a terceirização. Já na esfera do capital, as marcas são a desestatização, a desnacionalização, a financeirização, a concentração acelerada.
Paradoxalmente, no mesmo momento em que o progresso científico-tecnológico abre a possibilidade de um mundo de abastança e bem estar, o capitalismo maneja estes mesmos recursos para arrancar dos trabalhadores um sem número de conquistas sociais. [Desempregados da FORD em 1999]
Bernardo Joffily é jornalista e autor da Agenda Outros 500, lançada pela editora Anita Garibaldi.
EDIÇÃO 55, NOV/DEZ/JAN, 1999-2000, PÁGINAS 40, 41, 42, 43, 44