A discussão acerca da questão urbana no Brasil ocupa lugar de destaque na Câmara dos Deputados. Nesse contexto, o Projeto de Lei 5.788/90 (Estatuto da Cidade) tem especial importância, visto que coloca no centro das reflexões a função social da propriedade, o direito de moradia e o interesse público. Ele trata em profundidade da reforma urbana, que hoje é mais explosiva que a reforma agrária, pela própria intensidade da pressão sobre a terra nas cidades, onde vive 80% da população brasileira.

Mais remotamente, assumindo a fisionomia da atualidade, a inspiração do Estatuto consiste no resgate da cidade pensada pelos gregos, enquanto estuário da civilização humana e de seu progresso, em oposição ao teatro de guerra que agora atinge o paroxismo sob a hegemonia neoliberal.

A lógica da divisão social do trabalho sob o signo da desigualdade e da acumulação do capital, e modernamente sob a gestão neoliberal, ignora que a cidade deve ser um espaço de vida e harmonia, delimitado em seu crescimento. Esta lógica traz consigo o fenômeno da acumulação que dispensa os fatores capital e trabalho, definindo a função da propriedade na perspectiva da geração e multiplicação do fácil lucro imobiliário desde a ação do Estado – que, ao beneficiar com equipamentos públicos as terras urbanas monopolizadas, agrega valor especulativo e fantástica riqueza para os grandes proprietários.

Este modelo atrofia o papel da cidade contemporânea pois, conduzido pela economia de mercado, instala a barbárie na forma ascendente do desemprego, da marginalidade, da
violência, da destruição ecológica e dos símbolos culturais, na forma do desmoronamento da construção social coletiva.

Os efeitos sistemáticos da inversão populacional entre o campo e a cidade trazem, entre as suas seqüelas, resultados que superam guerras como a do Vietnã: cidades como São Paulo e o Rio de Janeiro assassinaram, entre 1989 e 1999, mais de 60 mil pessoas. A cidade de São Paulo, sozinha e apenas no primeiro semestre deste ano, vitimou seis mil pessoas. De locus para o exército de reserva de mão-de-obra, inicialmente, as periferias constituíram, em poucas décadas, o reduto que mescla trabalhadores e marginais, sempre separados em sua condição social por uma frágil linha divisória.

Os presídios e FEBEMs constituem hoje escolas de pós-graduação em criminalidade de excluídos sociais e não suportam mais as populações carcerárias, transbordando de volta para a sociedade a nefasta obra do capitalismo: a barbárie.

No mesmo contexto de São Paulo, o Rio de Janeiro, de "cidade maravilhosa transformou-se no território exemplar da guerra civil branca: em suas favelas a ação institucional é impenetrável e o comando soberano da população é exercido por núcleos do narcotráfico.

Dívidas e desvios

Neste ambiente é posto o limite e o alcance da via legislativa na resolução de vultosos problemas. Portanto, a estrita questão da política urbana deve ter princípios norteadores e normas básicas edificados a partir da discussão com a sociedade – organizações e lideranças populares, especialistas, parlamentares etc – para que se torne vinculada ao processo social que gera transformações.

É assim que, cumprindo a determinação constitucional de que à União compete instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, impõe-se a aprovação de uma lei que trate de temas como planejamento das cidades, justa ocupação do solo urbano, gestão urbana participativa, plano diretor, regiões metropolitanas e problemas afins – uma legislação que instrumentalize os municípios para que possam cumprir da melhor forma, nas atuais circunstâncias, o papel de principais sujeitos e beneficiários da política urbana. Não é, contudo, suficiente uma legislação. Somam-se outras dificuldades aos obstáculos de natureza histórica e estrutural.

Antes da primeira gestão de Fernando Henrique, a dívida externa era de US$ 103 bilhões (dezembro de 1994); hoje, é de aproximados US$ 250 bilhões. A dívida interna, de R$ 61,4 bilhões em 1994, mesmo com as privatizações ultrapassa os R$ 500 bilhões. Neste ano, 69,17% do Orçamento da União (OGU) serão queimados em juros e amortizações. Na mudança cambial de janeiro as perdas superaram os R$ 100 bilhões. No orçamento de R$ 1 trilhão do OGU para o ano 2000, a rol agem da dívida consumirá R$ 633 bilhões e mais R$ 143 bilhões em encargos financeiros da União – basicamente relativos aos juros da dívida contratual e mobiliária e à amortização líquida dessas dívidas. Estes encargos significam quase 44% dos gastos do Estado brasileiro num orçamento real de R$ 320 bilhões.

Os números do endividamento vão crescendo com a desvalorização do real em relação ao dólar. Uma bomba de sucção, instalada entre Brasília e Wall Street, enxuga o bolso do povo para alimentar a bolha financeira dos EUA. (De onde viriam, então, os R$ 40 bilhões para habitação e infraestrutura urbana, anunciados para o período 1999-2002?). E o Palácio do Planalto avança sobre outros recursos: aplicou R$ 12,4 bilhões (de um total de R$ 13,5 bilhões do FGTS destinados às ações de saneamento, habitação popular e infra-estrutura urbana) em títulos da dívida pública federal. Somem dos orçamentos locais os recursos previstos na Constituição de 1988. O Pacto Federativo, em xeque, expõe as fraturas das dívidas estaduais e governadores submetidos e humilhados pelo Executivo federal.

A estrutura urbana é submetida aos termos de um plano econômico que agravou a miséria, concentrou renda e comprometeu os recursos do desenvolvimento

Tais formidáveis recursos seriam suficientes para solucionar os dilemas urbanos e sociais do país, arcando com todas as despesas e financiamento praticados em todas as atividades públicas. Nesta sangria estão valores que superam de longe o orçamento de cidades como São Paulo (a terceira maior do mundo, com um orçamento de R$ 10 bilhões em 99 e uma redução para R$ 7,6 bilhões em 2000), Rio de Janeiro (R$ 4,9 bilhões em 99 e R$ 4,6 bilhões em 2000), Belo Horizonte (com um orçamento de R$ 1,48 bilhão em 99 e R$ 1,67 bilhão em 2000); Salvador (orçamento de R$ 1,30 bilhão em 99 e R$ 1,20 bilhão em 2000); ou Fortaleza (orçamento de R$ 837 milhões em 1999).

Temos, portanto, grande responsabilidade ao debater a reforma urbana e o Estatuto da Cidade, atentos ao drama geral vivido pelo Brasil. Concentrando com as malhas do endividamento. Isto impede os investimentos sociais e na melhoria da qualidade de vida nas cidades. São 15 regiões de perfil metropolitano (mais de 200 municípios) e cerca de 400 cidades de médio e grande porte, todas em dificuldades insolúveis nos marcos deste perverso modelo.

Pois, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), um organismo oficial da Presidência da República, dos 55 mais importantes países o Brasil é o mais injusto: 10% dos brasileiros mais ricos ficam com 48,21% da renda nacional e os 40% mais pobres com apenas 7,10%. Mais contundente ainda é a concentração de 17% da renda nacional e de 53% do estoque líquido da riqueza privada do País (R$ 2 trilhões e 22 bilhões) no acervo patrimonial de 1% da população. No outro extremo, estão mais de dez milhões os desempregados, sem renda para sobreviver e muito menos para adquirir moradias prometidas por um governo sem recursos. Esses vão se agregando ao contingente de 44 milhões de brasileiros excluídos, os que vegetam na faixa de renda inferior a meio salário-mínimo.

A maior parte da população mundial mora hoje nos grandes centros urbanos, os quais concentram inúmeros e complexos problemas diretamente relacionados à qualidade de vida. Nas cidades é gerada a parte significativa da riqueza no Brasil pelo menos 90% – e no mundo. Temos, nessas circunstâncias, a missão de lutar para viabilizar qualidade de vida para esses milhões de trabalhadores que alavancam a economia.

Por outro ângulo, os problemas urbanos e suas respectivas soluções guardam forte vínculo com os dilemas do campo, constituindo-se aí um elo indissociável. No centro da questão da reforma urbana está o tema da propriedade, do mesmo modo que no cerne da questão agrária está o latifúndio. A concentração da terra urbana, a especulação imobiliária, o desenho caótico das cidades, os interesses contidos nessa expansão, têm como vertente a questão da propriedade.

A formação e as lutas

O debate sobre a questão urbana ainda é recente e recebe pouco tratamento oficial. Ganha consistência com a experiência acumulada pelo incremento das lutas populares e movimentos sociais urbanos por moradia e equipamentos de consumo coletivo, estruturados desde a periferia das cidades. É aí que, em nossa formação econômica e social, se localiza o exército de reserva de mão-de-obra à disposição da indústria em desenvolvimento e, numa expansão contínua, os contingentes humanos egressos do campo brasileiro que avolumam os aglomerados urbanos, expulsos pela persistente concentração da propriedade territorial.

O crescimento das cidades, impulsionado pela expansão da indústria que requer força de trabalho, está assim associado à estrutura de uso e posse da terra no Brasil. Mas a chamada globalização da economia (estimula e) se beneficia decisivamente desta divisão social do trabalho que inverteu a tendência populacional do campo para as cidades. O processo de urbanização intensificado sustenta em novo patamar a acumulação do capital que necessita da cidade brasileira como um grande depósito de força de trabalho e do arrocho salarial para maximizar seus objetivos de expansão ilimitada dos mega-empreendimentos multinacionais. (Tais empresas, a exemplo do Carrefour ou da Amway, vão se expandindo hoje no Brasil, ocupando espaços urbanos, com suas instalações de negócios, ou rurais, com modernas fazendas agropecuárias, beneficiadas pelas matérias primas e por uma força de trabalho quase gratuita, o que lhes proporciona um lucro formidável no mercado brasileiro, na produção e comercialização.)

Nesse ambiente – de absoluta predominância da economia de mercado – estão dados os limites do planejamento urbano, demarcando a importância do Estatuto da Cidade ao exercício progressista, no âmbito municipal, de prefeitos sufragados pela tendência antineoliberal em alta no seio da população – que conquista e institucionaliza um instrumento ativo de planejamento. Aqui, levamos em conta a nova qualidade que a urbanização ofereceu aos movimentos populares, modificando a sociedade e explicando a tendência mais avançada do voto urbano – que amplia sua qualidade no ritmo da quantidade e intensidade das lutas.

Isto ocorre mais nitidamente no panorama desenhado no governo JK e pós-1964, período a partir do qual o processo de acumulação do capital submetido à internacionalização determina uma acentuada proletarização da sociedade (maximizada nos anos 1990 com a intervenção neoliberal), aproximando pela via do assalariamento as classes médias das massas espoliadas de trabalhadores.

Desse modo, o Estatuto da Cidade, ao tempo que é produto histórico das lutas populares, serve aos seus propósitos de pugnar para que as cidades brasileiras se transformem em espaços de convivência e de vida, saudáveis e voltadas para o bem estar material e espiritual de suas populações.
É indispensável ter bem claro, contudo, que esses objetivos estão submetidos à ruptura da sociedade brasileira com a subordinação ao capital financeiro internacional, quando vão se colocar tarefas como a da plena recuperação das cidades, a regulação de suas taxas de crescimento, a redução das migrações, entre outras metas qualificadas da planificação socialista. E que isto é contraditório com todo o modo de produção vigente, exigindo uma formação econômica e social que redimensione o papel da propriedade e o lugar histórico do trabalho, redefinindo igualmente o direito à moradia e aos serviços públicos urbanos.

Assim, considerando a cidade enquanto espaço onde as contradições se manifestam e onde é gerada, na luta, a consciência revolucionária, é muito apropriado muni-la legalmente de um instrumento que serve às transformações de conteúdo mais amplo, estimulando as grandes lutas nacionais rumo ao encontro de sua forma adequada – a sociedade sem classes.

O lugar histórico do Estatuto

Nos anos 1930, com a mudança do eixo de poder, que reduz o papel político das oligarquias rurais e consolida a influência de uma burguesia urbano-industrial, define-se o início da demarcação e valorização das terras urbanas. Ocorre então o advento de um embrião de política – a legislação sobre loteamentos – que ao longo do tempo demonstra, em seu elitismo e volume de exigências, a disposição de inviabilizar a aquisição de terra pelas classes e camadas populares. A lei (6766) é apresentada, no entanto, como uma tentativa de ordenar o processo de urbanização quando a parcela substancial da população ainda se encontrava no campo, num perfil ainda muito distante da miséria absoluta que retrata a moderna degradação dos centros urbanos.

No período JK, com a instalação da indústria automobilística, a estrutura viária realiza a nítida opção pela rodovia, originando-se as grandes ligações entre os centros urbanos regionais e a adesão das classes de renda superior ao automóvel, fermentando as cidades brasileiras. A construção de Brasília, no final dos anos 1950 e início dos anos 1960, acena com o planejamento das cidades em benefício da população e representa o crepúsculo do Rio de Janeiro no concerto urbano brasileiro, retirando-lhe a condição de centro político. Este processo que obscurece a antiga capital federal fora deflagrado antes por São Paulo e Belo Horizonte, que despontavam como centros industriais.

Até os anos 1970, as terras urbanas multiplicam seu valor e o fenômeno da especulação imobiliária ganha corpo, transformando-as em reservas de valor. As grandes cidades brasileiras litorâneas, no estilo do Rio de Janeiro, recebem avenidas à beira-mar, a verticalização das edificações generaliza-se e os subúrbios proliferam, concentrando as massas trabalhadoras que lutam por serviços públicos. O processo da divisão do trabalho fixa a supremacia urbana sobre o campo, com a industrialização, e o êxodo rural, impulsionado pelo latifúndio, intensifica a inchação das cidades, dando os primeiros passos rumo à eclosão do surto das favelas, mocambos e precárias habitações em larga escala.

O Estatuto da Cidade disciplina instrumentos para uma reforma urbana

A primeira tentativa de sistematização e intervenção na política urbana remonta ao período do governo João Goulart, quando pela primeira vez, em 1963, o governo federal, estimulado pelas pressões de massa e envolvido com reformas de base, promoveu o Seminário Nacional de Habitação e Reforma Urbana. O golpe militar frustra os objetivos da movimentação, mas surgiu dali o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo, instituído em 1964 juntamente com outro organismo oficial, o Banco Nacional de Habitação (BNH). Este, foi estruturado no bojo de uma formulação de política habitacional que ocorre nos marcos da ditadura.

Nos anos 1970, esta instituição converteu-se no instrumento financeiro essencial na estratégia desenvolvimentista do regime militar, que buscava em sua origem "apascentar as massas órfãs e magoadas" do regime deposto, como afirmava uma carta de Sandra Cavalcanti ao general Castelo Branco, encaminhando a proposta de criação do BNH. No documento, foi sugerida a necessidade de uma ação vigorosa para devolver a essas massas "uma certa alegria": "Penso que a solução dos problemas de moradia, pelo menos nos grandes centros, atuará de forma amenizadora e balsâmica sobre suas feridas cívicas" (1).

Durante a década de 1970 surgem ainda os pólos de desenvolvimento e as regiões metropolitanas (RMFs), delineando a fisionomia urbana atual do país. Em 1973 foram criadas as RMFs de São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, Curitiba, Belém e Fortaleza e, em 1974, a do Rio de Janeiro. Neste ano, é inserido um capítulo sobre a questão urbana no II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) e a criação (também efêmera) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU).

Foi instituído o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e o Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE), que serviram, assim como o próprio BNH, à edificação de habitações voltadas para as classes de alta renda. Os programas habitacionais destinados às populações de baixa renda fracassam, um a um, diante da ilusória concepção que pretendeu inseri-las no mercado de consumo.

O êxodo rural, o crescimento acelerado das cidades e a ideologia da poupança e da casa própria, impulsionam a demanda por habitação, serviços públicos e equipamentos coletivos de consumo, incrementando a construção civil subsidiada. O BNH é, nessas condições, o agente principal do processo de urbanização, coonestando a natureza autoritária de um período de acentuado predomínio do governo central e esvaziamento progressivo da autonomia dos estados e municípios. O planejamento centralizado corresponde a um desenvolvimento que mantém a concentração da expansão industrial localizada nos grandes pólos tradicionais.

Em 1983, ainda no regime militar, o Executivo enviou ao Congresso o Projeto de Lei 775/83, positivando o princípio da função social da propriedade e estabelecendo diretrizes e instrumentos para uma política urbana. Para os mais conservadores, o projeto acabaria com o direito de propriedade no Brasil e a reação à matéria – qualificada como comunista – foi imediata. Esse projeto, mesmo enviado ao Congresso via regime militar, foi inspirado num amplo debate que perpassava os meios acadêmicos e o movimento social em novo curso no País.

A proposta de legislação, fruto dessa semente que florescia nacionalmente, permitiu uma discussão mais profunda da problemática urbana. Foi a partir dessa proposição que passou-se a debater a questão do solo urbano e instrumentos inovadores como o direito de superfície, o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios e o direito de preempção, entre outros temas relevantes.
Nascia, então, uma ampla articulação nacional pela reforma urbana, que teve suas bases assentadas de início na luta geral contra a carestia. No Brasil inteiro as classes e camadas populares reivindicavam moradia e melhores condições de vida. O movimento pela reforma urbana propiciou melhor compreensão do problema das cidades e envolveu universidades, pastorais, entidades profissionais (a exemplo do Instituto de Arquitetos do Brasil, IAB) etc.

A "Nova República" gera expectativas logo frustradas. No governo Sarney, o Ministério do Interior foi desdobrado em três pastas: Irrigação, Reforma Agrária e Desenvolvimento Urbano (MDU). Porém, a questão urbana não ganha força na agenda oficial. O MDU promoveu um novo seminário nacional para reformulação do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) mas, um ano depois, foi extinto juntamente com o BNH. Nenhum instrumento de política urbana sobreviveu à ação desestruturante ocasionada pela ausência de um novo modelo de desenvolvimento. Mas o grau de organização e o desenvolvimento das lutas atribui nova capacidade de intervenção aos movimentos sociais urbanos.

A primeira vitória expressiva no terreno legislativo e constitucional veio em 1988. Entre outros aspectos, fruto do trabalho e debate da sociedade, a nova Constituição brasileira promulgada incluiu, no título da ordem econômica, o Capítulo consagrado à política urbana, detalhado em seus artigos 182 e 183. Elegeu-se o plano diretor como referência do cumprimento da função social da propriedade. Com o objetivo de regulamentar tais dispositivos da Constituição Federal de 1988, foram apresentados diversos projetos de lei. Na redemocratização – com farta participação do movimento popular – o Executivo passa a um plano secundário: as 18 matérias que tratam da regulamentação do Capítulo de política urbana da Constituição surgiram no próprio Legislativo.

Neste arcabouço de proposições, o Parlamento resgata sua vocação essencial nas iniciativas de vários partidos que mostram uma fértil produção. Promulgada a Carta de 1988, o senador Pompeu de Souza apresentou o Projeto de Lei 181/89, com o propósito de regulamentar os artigos 182 e 183 e estabelecer diretrizes gerais de política urbana o Estatuto da Cidade. Aprovado no Senado Federal, o projeto foi para a Câmara dos Deputados em 1990, onde passou por uma tramitação extremamente lenta. Em 1997, movido precipuamente pelas gestões das entidades democráticas e populares, o projeto voltou a ganhar fôlego e retornou à pauta. Após intenso debate na Comissão de Economia, foi apresentado o primeiro substitutivo na Câmara dos Deputados: resultante de um trabalho do movimento social organizado, o Executivo passou a demonstrar interesse na matéria com a criação da Secretaria de Desenvolvimento Urbano, e o empresariado urbano, aos poucos, começa a perceber o Estatuto da Cidade como instrumento importante no desempenho dos seus interesses econômicos.

No centro da questão da reforma urbana está o tema da propriedade

Toda essa movimentação fez com que várias questões contidas no projeto original fossem suprimidas – para deixá-lo mais conciso ou para permitir efetivamente que o projeto pudesse tramitar. Após a aprovação na Comissão de Economia, a proposição foi à Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias (CDCMAM), onde encontrou um debate mais limitado em termos de audiências públicas e de participação do movimento social. Contudo, no substitutivo apresentado, buscou-se manter o acordo estabelecido na comissão anterior, que envolvia questões significativas.

No trabalho da Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior (CDUI, a principal comissão de mérito) os esforços foram concentrados no aperfeiçoamento do
substitutivo da CDCMAM. Na CDUI foi proposto um outro substitutivo, contendo os pontos mais importantes acumulados nesta discussão histórica, incorporando-se os aperfeiçoamentos necessários.

Os elementos básicos do Estatuto

No que tange à regulamentação da Constituição Federal, o Estatuto da Cidade (Projeto de Lei 5.788/90) disciplina instrumentos fundamentais para se conceber uma reforma urbana em nosso país e que dependem de lei federal para sua regulação.

O primeiro instrumento é o do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios, com base no artigo 182, § 4°, da Constituição, que visa a coibir a retenção de terrenos urbanos ociosos, ou seja, a velha e surrada "especulação imobiliária". É extremamente relevante, pois existem índices inaceitáveis de terrenos ociosos na malha urbana de diversas cidades brasileiras, causando prejuízos significativos para o interesse público e social.

O segundo envolve o IPTU (imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana) progressivo no tempo, que é uma sanção igualmente prevista no artigo 182, § 4°, da Constituição, vinculado ao não cumprimento do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios.

O terceiro instrumento previsto é a desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública. Efetivada como seqüência da aplicação dos dois primeiros mecanismos, consiste na desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública semelhante à realizada para fins de reforma agrária.
O projeto dispõe também sobre o usucapião especial urbano, relativo ao artigo 183 da Constituição Federal. Ele se diferencia do usucapião contido no Código Civil e é enriquecido no Estatuto da Cidade pela figura do usucapião coletivo. Trata-se de um instrumento poderoso para promover a regularização fundiária nas cidades, especialmente nas áreas ocupadas por cortiços, favelas – áreas onde se encontram as condições de moradia mais precárias da nossa população.

O Estatuto dispõe também sobre o plano diretor, previsto no artigo 182, § 1°, da Constituição, como instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.
Além da regulamentação constitucional, são disciplinados no Estatuto da Cidade os seguinte instrumentos:

– Direito de superfície: é a possibilidade de dissociação entre direito de propriedade do terreno o direito de propriedade de edificação. O proprietário do terreno passa a poder conceder a outros o direito de superfície, de forma gratuita ou onerosa. Visa fundamentalmente a flexibilizar a utilização dos terrenos.
– Transferência do direito de construir: compreende a faculdade atribuída ao proprietário do imóvel por lei municipal de exercer em outro local ou alienar o direito de construir ainda não exercido. Tem inúmeras aplicações, a exemplo da preservação de imóvel de interesse histórico, proteção ambiental, operações urbanas, entre outras.
– Outorga onerosa do direito de construir: consiste no estabelecimento pelo município de um coeficiente de aproveitamento terreno, a partir do qual a autorização para construir passa a ser concedida de forma onerosa. Permite ao poder público a cobrança pela utilização mais intensa da infra-estrutura urbana instalada.
– Operações urbanas consorciadas: compõe-se de um conjunto de intervenções e medidas coordenadas pelo poder público municipal, com a participação dos proprietários, moradores e usuários, e de investidores privados, com o objetivo de alcançar em uma área a transformação e melhorias urbanísticas estruturais, melhorias sociais e valorização ambiental.
– Direito de preempção: na concepção do Estatuto da Cidade, dispõe sobre a preferência do poder público na compra de imóveis urbanos, via de regra em condições de mercado, visando garantir a formação de um estoque de terras públicas, sem a necessidade de desapropriação.

O Estatuto da Cidade traz ainda como inovação um instrumento decisivo de participação da sociedade: o orçamento participativo, uma proposta amplamente debatida com os movimentos sociais e um instrumento poderoso de democratização das cidades.

Os limites institucionais

Esses mecanismos visam à criação de condições para a melhoria da vida nas cidades. Mas, além deles, para se conquistar o desenvolvimento humano adequado, é necessário ampliar o sistema de saneamento básico, tratar adequadamente o lixo, cuidar da água, do esgoto, das áreas de preservação ambiental e das áreas de mananciais.

É indispensável a aprovação, no âmbito da reforma urbana, do projeto de lei de iniciativa popular (o primeiro do gênero a tramitar no Parlamento) que cria o Fundo Nacional de Moradia Popular e o Conselho Nacional de Moradia Popular, pois, sem habitação, não é possível melhorar a qualidade de vida do povo. É fundamental também a ampliação do sistema de transportes públicos do País, superando a opção que penaliza toda a sociedade: a do transporte individual, cada vez mais dominante – e onerosa.

A retomada das soluções para a questão urbana no Brasil, portanto, esbarra em problemas de vulto relacionados às questões da habitação, saneamento, transportes e meio ambiente, em especial. Aponta, em princípio, para o déficit habitacional, estimado oficialmente em quatro milhões de novas moradias urbanas, mais 13 milhões sem (ou com inadequados) serviços de infra-estrutura, e em áreas superpovoadas e precárias. Neste déficit, 55% são relativos à população com renda familiar de até dois salários mínimos. É um dos mais graves problemas sociais do Brasil de hoje, que não depende apenas da reordenação dos mecanismos financeiros institucionais.

É relevante reconhecer a atualidade da questão urbana no Brasil e buscar soluções. Isto atende antiga aspiração da sociedade organizada. Mas nenhum decreto – na tradição atrabiliária do Executivo, de legislar acima do Congresso – pode ignorar décadas de experiências e debates, apenas mediante a criação de um órgão (a Secretaria de Políticas Urbanas da Presidência) que pretende tratar dilemas que afligem a vasta população hoje presente no espaço urbano. Ocorre que o presidente FHC, em seu descuido crônico com a agenda popular e atenção obstinada aos agiotas, não tratou do tema em seu primeiro mandato, enquanto submeteu o País a um modelo que inviabiliza o planejamento.

É profunda a distância entre a intenção explícita e o gesto, entre discurso e prática, neste governo, que apenas cria novos problemas. O que de resto não constitui nenhuma novidade desde que Engels, ao tratar do problema da habitação, revelou que as classes dominantes não buscam resolver um problema sem pelo menos criar outro ou muitos outros e mais graves problemas. Mas, nesta patética gestão do Estado – que seria a representação ideal dos capitalistas em seu conjunto – no Brasil, não se constata sequer o empenho em conseguir que "as medidas usuais, que representam um paliativo superficial, sejam aplicadas em toda parte de maneira uniforme" (2), como constatou Engels para sua época. Além de não atender a sua clientela fundamental – os capitalistas – de modo uniforme, aprofunda os problemas de parte deles pequenos, médios e até grandes empresários do setor produtivo – e do conjunto da população. Para esta, distribui, de modo uniforme, o horror social.

A privatização do sistema de águas e esgotos, prevista em memorando do FMI, tende a ampliar ainda mais o vasto contingente dos sem-nada, mas já consta de projetos em tramitação legislativa: em um deles, de autoria do senador José Serra, é retirada a titularidade dos municípios sobre o sistema; noutro, de autoria do próprio Executivo, é criada a Agência Nacional de Águas (ANA), que consiste na inclusão de um bem essencial à sobrevivência da população no jogo do mercado – a exemplo do que acontece com a energia elétrica ou o telefone. E isto ocorre num momento em que os organismos internacionais alardeiam que as guerras do próximo século serão motivadas pela escassez da água, e não mais do petróleo.

O primeiro passo para esta privatização, veio na Resolução (2521) do Executivo, que ampliou as restrições para o crédito aos órgãos públicos nas operações de financiamento dos investimentos das companhias estaduais e serviços municipais de saneamento, incluindo igualmente as COHABs. Esta medida praticamente esterilizou os recursos do FGTS, destinados legalmente à ampliação da cobertura e melhoria da qualidade dos serviços de saneamento e à construção de habitações populares. O segundo passo, decisivo, consta da inclusão de recursos de financiamento da ordem de R$ 60 bilhões no Plano Plurianual (PPA), ofertados graciosamente às empresas concessionárias na desestatização dos serviços de saneamento.

A agenda neoliberal em curso mantém e desenvolve igualmente a questão fundiária e a da moradia urbana na perspectiva suprema do mercado. Entre suas maquinações o governo menciona o Sistema Financeiro Imobiliário (SFI); os programas Pró-Moradia, Habitar Brasil e a Carta de Crédito. São iniciativas que carecem, como o arcabouço de formulação política habitacional sustentado pelo regime militar, de sustentação na realidade social. Ignora, desse modo, a Constituição de 1988, que elegeu o direito à moradia como pressuposto da vida digna e de boa qualidade.

O SFI confunde habitação com veículo automotivo ou eletrodoméstico, apostando na securitização com livre negociação e alienação fiduciária do imóvel para atrair capitais externos. O Programa de Arrendamento Residencial (PAR) segue na mesma linha: um leasing (arrendamento com opção de compra) de casas urbanas para famílias de baixa renda, e recursos de um Fundo (FAR) que terá a propriedade dos imóveis. Com prestações para "mutuários" em 15 anos, o PAR pretende resolver o problema da moradia nas grandes cidades, em cortiços e áreas de risco, construindo nos vazios urbanos. Acontece que: 1) o problema não se restringe aos grandes centros; 2) os vazios urbanos são, em geral, terras imprestáveis ou muito valorizadas pela especulação imobiliária; 3) o bote é semelhante ao da ditadura, quando tentou atar ao mercado os trabalhadores que, sem renda estável e presos às casas, marcharam para a inadimplência e, quando organizados, para a resistência.

O SFI e o PAR são soluções de mercado que confundem desejo de consumo com necessidade de abrigo, de aconchego humano. Os demais programas aguardam recursos rarefeitos pelo ralo dos juros das dívidas. Não resultam de consulta aos setores envolvidos e atendem basicamente às regiões Sul e Sudeste do País. Também por isso, o governo não pode afirmar que o crescimento das vendas de materiais de construção e o aumento do número de ligações elétricas mostram a redução do déficit habitacional.

A situação da economia e da renda popular inviabiliza esses programas, com o desemprego em alta e a renda na maior queda livre do século. A soma dos salários, mais o rendimento do trabalhador autônomo e mais as pensões dos aposentados, será em 1999 bem menor do que em 1998. A crise, com a estagnação e saturação do mercado de trabalho, trará mais 4,3 milhões de desempregados, fechando 2,8 milhões de postos de trabalho, vedando o acesso ao emprego a mais 1,5 milhão de jovens, como conclui o professor e economista Márcio Pochmann, da Unicamp. A agenda articulada pelo FMI não prevê recomposição dos salários e políticas consistentes para a geração de emprego, não prioriza investimentos na área social ou a melhoria da qualidade de vida. O salário mínimo, com a crise cambial, passou a valer menos de US$ 70 e tende a cair ainda mais.

O caminho para a solução dos dilemas urbanos e, em particular, da crise de moradia é, em consequência, oposto ao percurso atual, que afunda o País numa recessão sempre mais profunda. A prioridade pode estar inicialmente em ações voltadas para o aquecimento da economia, como o impulso da construção civil em ritmo pleno, assegurando o combate ao desemprego, o resgate da tecnologia nacional – uma das mais respeitadas no mundo – articuladas a medidas como a da redução da jornada de trabalho de 44 para 40 horas. É este um dos passos iniciais para vislumbrarmos, ainda nos marcos da economia de mercado, uma certa redistribuição da riqueza. Ao lado disso, o redimensionamento do planejamento urbano deve atingir as regiões mais desprovidas de recursos públicos, a exemplo do Nordeste. Sem isso, somente agravar-se-á o déficit habitacional.

Superando os decretos e medidas provisórias, é hora de semearmos uma nova gestão das cidades. A sociedade brasileira, em sua caminhada por uma vida melhor conheceu profundas transformações no processo que converteu o Brasil rural em um país urbano e industrial, pode beneficiar-se da experiência acumulada nas lutas pela reforma urbana e do rumo sólido oriundo da mobilização popular.

Desafios para a sociedade

Os diversos momentos da formação da rede urbana brasileira nos últimos 60 anos evidenciam um processo evolutivo determinado por interesses quase sempre individuais, privados e especulativos. superpondo-se aos interesses públicos, coletivos. O exame das experiências em planificação no Brasil, neste período, confirmam a tese de que as cidades brasileiras (o Brasil urbano) fizeram-se apesar do planejamento.

Isto se deve precipuamente à submissão aos mecanismos de mercado e ao poder do capital imobiliário, fatores que determinam um escudo de proteção à propriedade privada, inibindo o avanço e aplicação dos instrumentos institucionais que possam controlar o uso do direito de propriedade que gera conflitos e prejuízos para o interesse social e coletivo nas cidades.

As consequências desta ordem são desastrosas para as populações urbanas, sufocadas pela crescente poluição ambiental, pelos penosos e demorados deslocamentos, pela vida social e cultural limitada e empobrecida. O Estado atual não pode ultrapassar os limites da política de intenções, materializando-a em prática efetiva. Desse modo, seu planejamento não repercutirá sobre o caótico processo da urbanização no Brasil, fixando a permanência de intervenções sobre a vida urbana que redundam em recorrentes fracassos e na exaustão administrativa.

Nessas condições, o Estatuto da Cidade é um passo importante na luta pela reforma urbana, no contexto da luta popular por uma vida digna. Tenta-se acelerar ao máximo a tramitação do substitutivo em função de um problema concreto, imediato: há quase dez anos se espera para a aprovação deste projeto. Contudo, não podemos perder de vista a questão central nesse processo de luta para sua aprovação – a função social da propriedade e os mecanismos para o seu tratamento –, correndo o risco de produzir apenas uma bela peça de retórica. Além disso, surgem problemas novos ao longo do debate. Cabe à relatoria do projeto articular as expectativas dos diversos personagens sociais envolvidos no processo, produzindo um texto exeqüível na atual correlação de forças.

Há, contudo, acima da necessidade do instrumento legal, que haver muita disposição para aplicá-lo nas cidades brasileiras, somando-se, como parte de um todo, às transformações mais gerais contidas nos anseios da sociedade – de um Brasil soberano, social e economicamente desenvolvido – contempladas pela substituição conseqüente da agenda política responsável pelo agravamento mais profundo dos problemas urbanos no País. Para efetivá-lo, é fundamental assegurar a justa distribuição dos benefícios e ônus do processo de urbanização. Sua concretização depende de fatores diversos entre os quais se inclui essencialmente a consciência e a organização popular, forjada, como vimos, na mobilização e no amplo compromisso com o interesse social.

Neste sentido, a trajetória dos movimentos sociais urbanos se confunde com as lutas do povo brasileiro por dias melhores. Ao longo da nossa História, ocupando espaços urbanos, o povo requer moradias, pressionando por verbas para habitação, saneamento, saúde e educação; com panelas vazias, pugna por melhores ganhos e alimentação; com lamparinas, exige energia elétrica; luta por água encanada ou transportes de massa, entre os equipamentos coletivos de consumo.
Planos diretores adequados às necessidades da maioria urbana, incluindo-se aí a erradicação das favelas e a ruptura com o conceito de que as melhores áreas de uma cidade são destinadas por jus naturalis aos ricos, dependem desta pressão organizada por recursos que contemplem os direitos da população.

A transformação das diretrizes e instrumentos tratados pelo Estatuto da Cidade em lei federal é apenas um passo necessário nesta luta.

* Deputado federal pelo PCdoB-CE e presidente da Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior da Câmara Federal e relator do Estatuto da Cidade na CDUI.
** Sociólogo e jornalista.

Notas
(1) TRINDADE, M. Habitação e Desenvolvimento. Petrópo1is, Vozes, 1971, p. 12.
(2) ENGELS, Friedrich. "Sobre o Problema da Habitação", In: Textos II. São Paulo, Edições Sociais/ Alfa-Ômega, 1976, p. 90-91.

EDIÇÃO 55, NOV/DEZ/JAN, 1999-2000, PÁGINAS 30, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39