A crise do modelo de circulação urbana está no limiar de parar, por exemplo, uma cidade como São Paulo – tanto na circulação de pessoas quanto na de mercadorias. Por outro lado, o sistemático desmonte dos serviços públicos, decorrência da implantação da política de 'Estado mínimo' adotada nos diversos níveis da esfera pública, vem reduzindo as possibilidades de intervenção do poder público na resolução da crise.

O modelo de circulação adotado prioritariamente é o rodoviário, fundado no uso do transporte individual. O Estado brasileiro, a partir dos anos 50 tem direcionado inúmeros incentivos diretos e indiretos à indústria automobilística e fomentado uma política geral de estímulo para que todos tenham seu carro. A publicidade apela e induz à necessidade do automóvel como status de quem 'venceu na vida' – quem não tem seria, por sua vez, um derrotado! Paralelamente aos incentivos e estímulos ao modelo do automóvel, o país, ao contrário de desenvolver, promoveu a destruição de sua malha ferroviária. Com isso até mesmo o transporte de mercadorias depende do padrão rodoviário, demandando um gigantesco e caro sistema de rodovias, de vias urbanas e interurbanas.

O modelo rodoviário de circulação apoiado no automóvel teve no ônibus um complemento importante que permitiu a expansão dos territórios urbanizados para além dos limites iniciais, visto que estes veículos, por sua mobilidade, rapidamente iam em socorro à populações deslocadas para novos loteamentos, que cresciam sem nenhuma consideração às necessidades da circulação. Este sistema de circulação tem conseqüências penosas sobre as cidades: o esgotamento da malha viária, danos sérios ao meio-ambiente por concentração de poluentes; disputa automóvel-pessoa com altos índices de acidentes e atropelamentos; concorrência com o modelo ferroviário, a exemplo do Metrô; dentre outras.

A crise também atinge a circulação de mercadorias, que vem se agravando ainda mais, em decorrência da adoção pelas empresas do sistema just in time, que representa uma nova logística para o armazenamento e distribuição de mercadorias. Está criada, portanto, uma situação de difícil equacionamento, pois todo mundo briga pelo mesmo espaço viário para ter funcionamento mínimo. O planejamento da circulação pouco tem levado em conta os impactos da logística de circulação de cargas, assim como tem ignorado as demandas de circulação de pessoas através do sistema de transporte coletivo – que acaba sendo a vítima maior de tal modelo.

O transporte coletivo passou a ser o sistema para atender aos que não venceram na vida – aqueles que não têm carro. Muitas empresas de transporte, sem perceber, agem contra si mesmas quando divulgam certo tipo de publicidade nos coletivos:
"Que pena, você não fez aquele empréstimo e não comprou aquele carro! Você não estaria agora andando de ônibus … ".

O próprio setor de transporte coletivo, a partir das suas práticas acabou contribuindo para a crise atual. Muitas das empresas do setor nunca se organizaram enquanto prestadoras de um serviço público. Na verdade, muitas destas empresas construíram seus ganhos numa atividade centrada na compra e venda de veículos, valendo-se de uma política continuada de financiamento para aquisições de veículos e de renovação de frotas. Na medida em que o veículo novo incide positivamente na elevação da tarifa, a renovação da frota se constituiu num negócio de alta rentabilidade. Passado algum tempo vamos encontrar esses ônibus em cidades do interior ou em outros países latinoamericanos como Peru, Chile etc.

Se não entendermos que temos de mudar o modelo de circulação nas cidades como São Paulo para um modelo que priorize o transporte coletivo; que transfira recursos, hoje investidos no suporte do modelo rodoviarista, para uma rede de transportes que assegure condições a que esse serviço seja ajustado – ou seja, se nós não invertermos essa lógica atual- não há saída para a crise vivida atualmente. Nas grandes cidades não há mais rua, não há mais praça, muitos canteiros centrais já foram sacrificados, imensas áreas são ocupadas por estacionamentos… não temos saída se continuarmos insistindo que a única perspectiva que as pessoas têm de circular é por meio do transporte individual. Nesta lógica continuaremos tratando os ônibus como sendo automóveis, entregues a disputa pelo espaço de circulação no sistema viário já saturado, constrangido a ter de seguir itinerários e cumprir horários. E nesta disputa, o ônibus perde.

A segunda dimensão da crise do sistema de transporte se dá através do desmonte do conceito de serviço público. Tal desmonte vem acontecendo há algum tempo em diversas esferas de governo – é o chamado 'Estado mínimo'. Este Estado, porém, está ficando tão 'mínimo' que vem sacrificando questões fundamentais. Podemos dizer que em uma cidade como São Paulo tal política sacrifica algumas noções básicas necessárias à manutenção do serviço público – ou seja, sacrifica a autoridade pública reduzindo seu poder de regulamentação e de regulação para fazer cumprir contratos; para fazer prevalecer sistemas de licitações e concessões para que todos, pessoas físicas e jurídicas, obedeçam. São Paulo explicita, também sob este aspecto, uma situação limite de crise de governabilidade.

O transporte clandestino urbano, que hoje preocupa empresários e trabalhadores, nada mais é do que expressão dessa dupla crise: da perda da autoridade, expressa na incapacidade do atual governo municipal de São Paulo, apesar de ainda contar com técnicos qualificados, em dar uma direção que se materialize num projeto conseqüente de gestão de uma política de transporte, de regulamentação, fiscalização e financiamento; e, por outro lado, o transporte clandestino corrói e atua sobre a crise do serviço em si, da circulação em si – vem ao encontro da perda de qualidade do serviço em decorrência das péssimas condições de circulação.

Em uma cidade como São Paulo, só por conta dos congestionamentos, hoje, precisamos ter 3.342 ônibus a mais do necessário para compensar as perdas provocadas pelos congestionamentos, o que representa 30% da frota e equivale a 15,8% do custo operacional do transporte coletivo. O setor de transportes coletivos 'joga fora' recursos dessa ordem e isso tem implicações para o equilíbrio econômico de todo o setor e das empresas.

Estamos perdendo mais de 200 milhões de horas por ano em congestionamentos só no transporte individual e mais 120 milhões hora/ano no transporte coletivo. São horas em que as pessoas poderiam estar usando para outras atividades. As horas passadas no trânsito são um sacrifício sobre o trabalho, a saúde e o convívio com a família. São horas não contabilizadas, porém importantes para a vida das pessoas.

O Estudo Redução das deseconomias urbanas com a melhoria do transporte público elaborado em parceria pela ANTP (Associação Nacional de Transportes PÚblicos) e pelo IPEA (Instituto de Pesquisa EconômicaAplicada), em 1988, analisou as dez maiores cidades brasileiras e contabilizou que a cidade de São Paulo perde 350 milhões de reais por ano com seus congestionamentos. São recursos desperdiçados em uma escala tal que demonstra, portanto, haver recursos. Só que estes estão sendo muito mal-empregados. Isso nos leva a crer que não podemos atribuir à falta de recursos a causa maior da crise que vivemos.

A cidade de São Paulo tem somente dois corredores exclusivos para ônibus – e se sabe o quanto são importantes os corredores exclusivos para um bom desempenho do serviço. Isso é fundamental porque o setor necessita ter um desempenho compatível para evitar as perdas. O transporte precisa garantir a tabela de horário fixada no ponto. Os ônibus, atualmente, não têm mais hora para chegar! É fundamental a confiabilidade no sistema, garantindo-se que as pessoas não vão ficar esperando demais. As condições de funcionamento do transporte requerem que o plano de corredores de São Paulo seja efetivamente realizado, para que o sistema de ônibus tenha condições de desempenho competitivas com o automóvel e as pessoas saibam que têm um serviço com o qual podem contar, com segurança e confiabilidade: "Ele vai chegar! Vai me levar ao local que preciso!".

Precisamos investir em um sistema de transporte que tenha corredores funcionando, que sejam tão eficazes para média capacidade quanto o é o Metrô. Temos de caminhar para uma segmentação de transporte, integrando harmoniosamente também o transporte de baixa capacidade vans, micro-ônibus – que deve funcionar de forma articulada com os corredores e dentro de um sistema regulamentado. Todos têm de saber a parte do serviço que lhes cabe no planejamento global. Os serviços de transporte escolar, idosos, noturnos, para momentos e horários de pico, para as regiões adensadas … tudo deve ser adequado. Uma cidade conta com diversidade de necessidades e interesses. São Paulo, por exemplo, funciona 24 horas por dia e precisa construir um sistema de transporte que atenda todas as suas diversidades.

Ao mesmo tempo, temos de tratar a cidade de São Paulo como sendo parte de uma região maior e desta forma considerar o sistema metropolitano de transporte como parte da solução dos seus problemas. Não se pode pensar seus corredores e terminais sem se considerar o papel do Metrô e o papel dos trens metropolitanos (CPTM) e trens regionais – tudo dentro de sua estrutura única de sistema de transporte.

Um bom serviço de transporte não envolve somente bom equipamento e modernos veículos. Ele tem de ter um desempenho, com trabalhadores satisfeitos para tratar bem os passageiros. As condições oferecidas hoje aos trabalhadores do setor não permitem isso. Trabalhadores e usuários estão, sob condições precárias, constantemente colocados uns contra os outros, impedindo sua união para enfrentar juntos a crise e a mudança do modelo.

Tal mudança necessariamente implica na existência de um sistema regulamentado. Atualmente, a irregularidade não atinge somente os chamados' clandestinos' ou os 'perueiros'. Hoje é esta a situação da maioria dos contratos formais com as empresas prestadoras. Os próprios empresários reconhecem atualmente a necessidade da regulamentação – existem problemas de toda ordem e, em particular, a demanda caiu 40% em São Paulo. É dinheiro que deixou de entrar.

O modelo de circulação rebate também no modo de ser da nossa vida, na maneira como estamos vivendo. Assim como se diz que, com o automóvel, o indivíduo faz o que quiser – com aquela carapaça vira um 'guerreiro' – a lógica disseminada é aquela de que "cada um se vira". Assim, está todo mundo se virando – de qualquer jeito. Isso é reflexo da corrosão da governabilidade e leva as pessoas a pensar "porque vou respeitar as regras se os que respeitam são os que pagam mais, os que sofrem mais, e aqueles que não respeitam regra nenhuma se viram?" Claro que esta é também uma forma de saída, ainda que momentânea, pois leva a cidade ao caos. Esse processo conduz à uma crescente deterioração da qualidade de vida de todos, até mesmo dos que "se viram".

Se conseguirmos entender a necessidade de uma regulamentação voltada à priorização do transporte coletivo – que significa mudar conceitos de circulação e o uso viário, investindo nas obras destinadas a uma boa circulação do transporte coletivo, começaremos a enfrentar a crise.

É necessário, também, questionar as soluções paliativas e as falsas soluções, que não mexem no fundamental. Isso exige dos trabalhadores do setor de transportes e da sociedade organizada a capacidade política de impulsionar uma mudança na gestão não só municipal, mas também nas demais instâncias de governo. E quem tem de fazer isso – propor e exigir um novo modelo para o sistema de transporte – também são aqueles que entendem e convivem diariamente com os constrangimentos ao operar o sistema de transporte coletivo nas grandes cidades e rodovias brasileiras sem nenhuma condição técnica, disputando espaço nas vias com os automóveis. Isso implica em questionamentos sobre qual gestão, governo e autoridade necessitamos numa cidade para fazer vingar os regulamentos exigidos pela realidade e reclamados por sua população.

Valeska Peres Pinto é presidenta do Sindicato dos Arquitetos e Urbanistas de São Paulo e assessora técnica da Associação Nacional de Transporte Público. Este texto é transcrição parcial da intervenção da autora no Seminário "A Crise do Sistema de Transportes", realizado em setembro de 1999 em São Paulo.

EDIÇÃO 56, FEV/MAR/ABR, 2000, PÁGINAS 57, 58, 59