A Terceira Via só é transparente naquilo que nega: a social-democracia antiga. Não coloco no mesmo nível suas críticas ao neoliberalismo porque estas se realizam do interior da própria problemática neoliberal, assumindo uma parte substancial de suas propostas. O termo Terceira Via tem um passado complexo, sempre caracterizado pela tentativa de construir um caminho próprio, socialista, entre o estatismo autoritário do Leste e a gestão social-democrata atual. O austro-marxismo, até a insurreição vienense de 1934, foi a maior influência, prática e teoricamente, sobre essa genuína via (1).

Uma formulação teórica mais completa sobre o mesmo pode ser encontrada no livro Entre duas Guerras Mundiais? (2) – escrito em 1936 -, que contém uma afinadíssima auto crítica da política social-democrata desse período e uma tentativa de formular uma via socialista de massas, no marco da unidade dos partidos operários. Posteriormente, foi usada em diversos contextos, sobretudo por variantes de esquerda, chamadas de eurocomunismo, como no texto de Pietro Ingrao (3).

Nos anos 80, desenvolveu-se uma reflexão na esquerda em geral, e na social-democracia em particular, entrando em múltiplas confusões após a queda do muro (4). Convém, aqui, tornar mais claros alguns pontos. Em primeiro lugar, quando falamos de social-democracia, no contexto assinalado, falamos de partidos operários de massas que, depois de Bad Godesberg, renunciaram explicitamente ao projeto socialista convertendo-se em forças políticas cujo horizonte era um capitalismo reformado. Em segundo lugar, na Europa do Sul, esse processo teve outras particularidades. No caso, o Partido Socialista Francês, o Partido Socialista Operário Espanhol, ou o PASOC da Grécia, se converteram, num determinado momento, em oposição à social-democracia, apostando em projetos de rompimento com o capitalismo. Curiosamente, esses partidos – outrora baluartes formais da esquerda – na virada, terminaram por se situar à direita da social-democracia do Centro e do Norte da Europa.

Nesse sentido, Giddens tem razão em apontar Felipe González – como fez em julho de 1999, na Espanha – como o verdadeiro precursor da Terceira Via, colocando-o numa difícil situação pois José Maria Aznar, chefe de governo da direita espanhola, havia firmado, recentemente, uma Declaração Conjunta com Tony Blair para flexibilizar – ainda mais – os mercados de trabalho da Europa. Contudo, se quisermos ser justos, esse título, na verdade, pertence a Betino Craxi, recentemente falecido. Poderia parecer que o objeto deste artigo fosse o de tentar um acordo – o que pode ser entendido como uma agressão – entre os antecedentes da Terceira Via e a corrupção, a máfia ou a guerra suja; porém, queremos tão-somente fazer justiça: as políticas, as ações, a busca de um centro político sem ideologia, suas alianças para frear o PCI suporiam, nitidamente, o início da Terceira Via atual.

A menção a Felipe González se faz pela memória histórica, já que os seus governos se caracterizaram pela prática de políticas econômicas, fiscais, de trabalho e sociais, similares às propugnadas pela Terceira Via num contexto um pouco diferente do atual, marcado por: a) maior capacidade de manobra econômica e social; b) escasso volume de gastos públicos e um minguado desenvolvimento dos sistemas de bem-estar na Espanha.

Como já indiquei antes, a crítica dos terceiristas é dirigida frontalmente contra a velha social-democracia acusada de intervencionista, estatista, de subordinar o mercado e a sociedade civil ao Estado, terminando por "criar serviços públicos ineficazes e de baixa qualidade, especialmente na educação, telecomunicação, e outros, dos quais o Estado possuía, praticamente, o monopólio". (5) Uma social-democracia associada "ao controle do Estado, aos elevados impostos e aos interesses dos produtores". (6) A radicalidade da crítica não admite dúvidas. Blair afirma que "a esquerda fundamentalista tomou a nacionalização e o controle do Estado fins em si mesmo, convertendo a receita política em ideologia; o radicalismo julgado em função da propriedade e do gasto público". (7)
Trata-se de uma crítica fundamentalmente ideológica e que assume os supostos neoliberais. Se Clement Attlee (dirigente do Partido Trabalhista inglês desde 1935) pudesse "sair do túmulo", ficaria assustado ao se ver convertido, por seu herdeiro, num quase bolchevique e, o que é pior, até Winston Churchill terminaria retratado da mesma forma, pois apenas se modificou a política do Governo Trabalhista anterior, quando sucedeu ao conhecido dirigente social-democrata britânico. Tony Blair vai ainda mais longe: define seu projeto como uma "Terceira Esquerda" e unifica as outras duas (social-democrata e comunista) como variantes de um mesmo projeto, diferenciadas apenas pelo método e pelas formas.

O "terceirista" Blair se esquece de que:

1) Essas políticas trabalhistas ocorreram num contexto histórico de derrota do fascismo (e em parte da elite econômica e da direita européia), das crises do capitalismo liberal (de 1929 e o fracasso das receitas monetaristas e conservadoras), e num momento de claro ascenso do movimento operário; a isso deve-se acrescentar a concorrência do chamado campo socialista em expansão mundial;

2) as políticas trabalhistas – e também as sociais-cristãs ou democratas-cristãs – quando não abertamente conservadoras, entram em consenso social básico para preservar um capitalismo que pusesse fim às crises econômicas e assegurasse a integração das massas trabalhadoras. Um capitalismo que, para preservar-se e evitar a revolução, aceitou – não sem luta – tornar-se reformista ao menos nos países capitalistas centrais. As diferenças, claramente perceptíveis, têm a ver tanto com a orientação política geral (teimosia em relação aos gastos sociais frente aos militares, por exemplo) quanto com a participação dos trabalhadores na gestão e organização dos serviços públicos;

3) esse consenso social básico foi rompido unilateralmente pela elite econômica, uma vez mostrada a incompatibilidade de um capitalismo em processo de crise e reestruturação, e as conquistas sociais, políticas e trabalhistas do movimento operário na chamada "idade de ouro". Neoliberalismo é o nome do projeto – conjunto de valores, propostas e práticas – de restauração capitalista iniciado nos anos 1970, continuado na década de 1980 e, hoje, parece esgotado como discurso político, ao menos em suas manifestações mais claras; o que não significa derrotado nem vencido.

Os partidários da Terceira Via não analisam o neoliberalismo e suas conseqüências econômicas, políticas e sociais, apenas merecem alguns qualificativos marcadamente propagandísticos. Dizer que "o neoliberalismo considera a inversão pública e, amiúde, o conceito de sociedade e de esforço coletivo como males a serem superados" (8) não é exagero. Ou, afirmar que os neoliberais defendem "o total desmantelamento do Estado em nome da liberdade" (9) significa não dizer nada, ou quase nada, num país que sofreu um longo processo de governos conservadores e neoliberais.

Assim colocados – exageradamente os dois extremos, quer dizer, uma social-democracia superestadista e uma direita neoliberal extremista, a Terceira Via tenta aparecer em terreno próprio, pelo menos formalmente, entre o capitalismo reformista e o capitalismo selvagem; a social-democracia e o neoliberalismo; o capitalismo europeu e o norte-americano, com seus respectivos modelos sociais. Em relação a este último item é algo problemático: Clinton entrou no terreno dos republicanos e Blair no dos democratas norte-americanos de tal maneira que, rapidamente, tal oposição não será mais do que formal.

Há um assunto que converia analisar neste artigo. Anthony Giddens em seu livro A Terceira Via: a renovação da social democracia (10), expõe o seu conhecido ponto de vista, que consiste em separar os neoliberais em dois tipos: "conservadores" e "libertários" (l1). Como se sabe, a diferença está na posição de cada um com relação à tradição, no sentido que, no caso dos primeiros, o conceito de mercado entraria em contradição com elementos centrais de sua concepção: a família, a nação. Em suas próprias palavras: "A devoção ao livre mercado, por um lado, e à farm1ia e à nação tradicionais, por outro, é contraditória em si mesma. Supõe-se que o individualismo e a eleição se detenham abruptamente na fronteira da farm1ia e das identidades nacionais, na qual a tradição deve permanecer intacta. Porém, nada mais dissolve a tradição do que a revolução permanente das forças do mercado. O dinamismo das sociedades do mercado reproduzia as estruturas formais de autoridade e fracionava as comunidades locais". (12)

Essa citação (que é preciso memorizar e que marca os limites e as contradições do trabalho de Giddens) (l3) expressa bem os problemas, ainda não resolvidos, que opõem o conservadorismo político e religioso às conseqüências das políticas por eles mesmos impostas. Assim sendo, tais contradições não são as mesmas em relação aos denominados "libertários". A hipótese que formulamos é a seguinte: a Terceira Via seria a expressão ideológica e social das modernas elites (nos partidos políticos, nas grandes empresas multinacionais, nas cúpulas dos meios de comunicação) políticas e econômicas, ligadas a essa corrente "libertária" que, nesta fase, se encontram em melhores condições históricas para desenvolver o projeto neoliberal do que os "conservadores", pelo motivo de melhor defenderem os interesses globais, os consensos sociais necessários e as coerências teóricas e práticas em relação aos interesses básicos, econômicos e sociais, que hoje governam os processos de modernização e globalização capitalista.

Direita e esquerda: a crítica ao capitalismo

Giddens é mais radical ainda do que Blair e, até certo ponto, mais coerente. Parte de um elemento-chave: o socialismo morreu e, conseqüentemente, não há alternativa ao capitalismo. Afirma, expressamente: "O comunismo e o socialismo morreram, mas continuam nos rondando" . Ele e, acrescenta um elemento capital que, de uma maneira ou outra, intenta perpetuar o projeto. "Não podemos simplesmente menosprezar os valores e os ideais que os impulsionaram, já que alguns deles seguem intrínsecos a uma vida digna, cuja realização é o objetivo do desenvolvimento social e econômico" (14).

Caberia esperar uma argumentação solvente em torno da morte do socialismo, mas a única que encontramos é uma desqualificação da teoria econômica do socialismo, a constatação da sua desintegração e uma conclusão surpreendente que serve, também, para justificar a falta de uma real legitimidade dos conceitos de direita e esquerda. Já que não há uma alternativa ao capitalismo, também não é possível um capitalismo reformista ou reformado. Esse aspecto tem muita importância e fornece uma das chaves para o passado, o presente, e o futuro da esquerda, a saber: se não há uma crítica consistente ao capitalismo, do mesmo não resultam factíveis políticas de reforma. Quer dizer, tanto a afirmação do ideal socialista quanto a luta pelas reformas no capitalismo requerem valores, crenças e idéias que questionem o modo capitalista de viver, produzir e consumir.

Diz Giddens: "A teoria econômica do socialismo depende da idéia de que o capitalismo – deixado às suas próprias dinâmicas – é economicamente ineficiente, socialmente divisor e incapaz de se reproduzir a longo prazo" (15). Disse isso, obviamente, para demonstrar o fracasso da teoria econômica do socialismo. Aqui, se confundem dois aspectos, logicamente diferenciáveis: uma coisa é a análise e a crítica ao capitalismo e, outra, é a fundamentação da viabilidade econômica do socialismo. Portanto, metodológica e historicamente, pode se concordar tanto com o primeiro quanto com o segundo. O que se quer dizer está bem claro: o capitalismo, na sua dinâmica, gera conflitos sociais, desigualdades de classe e, na sua reprodução, tem de enfrentar crises periódicas. Historicamente, parece ter sido assim até os dias atuais. Porém, precisamente as chamadas políticas social-democratas têm servido para frear essas dinâmicas, amortecendo amortizando as diferenças sociais e evitando as crises periódicas. Sem isso não se explicariam as atuais dimensões do gasto público (entre 45 e 50% do PIB nos países europeus), nem a presença de um Estado de Bem-Estar e de gastos sociais reestruturados e redefinidos mas, que, substancialmente, não baixam, gerando, de uma ou outra forma, estabilidade macroeconômica e integração social.

Há de se destacar um outro assunto: a questão ecológica, que pode elocubrar muito ou pouco em tomo da crise do meio ambiente e a sua importância político-social. Mas, não há dúvida de que as "novas contradições" obrigam a racionalizar conscientemente os processos produtivos, a regulamentar as atividades empresariais, a limitar a iniciativa privada; quer dizer, a coordenar a priori atuações político-administrativas que limitem e reordenem a "livre atividade" dos mercados, gostem ou não, que obriguem a programar, a planificar. Como, se não se pode realizar uma reconversão ecológica da economia? Como limitar os custos ecológicos da produção e do consumo na sociedade? E, o que é mais importante: quem o faz, que poderes o fazem?

É certo que, efetivamente, essas questões, e outras, deixaram de ser importantes; a divisão direita/esquerda perdeu sua relevância. Não parece demasiado lógico reafirmar um centro, ou uma centro-esquerda,já que não existe direita ou esquerda; quer dizer, uma política sem centro, um centro radical – Giddens fala expressamente dele – que tem de realizar transformações econômicas, políticas e sociais. O possível "sem sentido lógico" tem a ver, como o caso de Blair e Schröder – esta vez sim – com um elemento central: a aliança com empresa e empresários.

Nas suas próprias palavras: "queremos uma sociedade que aplauda os empresários de êxito como acontece com os artistas e os futebolistas e que valorize sua atividade em todas as esferas da vida" (16). Essa "mística" empresarial corresponde, e não poderia ser de outra forma, a uma concepção que elimina o conflito de classe entre capital e trabalho, que leva a manter posições próprias da filosofia conservadora de extrema direita, quando não, das conhecidas formulações "comunitárias" do fascismo. Conforme o documento, "os conflitos tradicionais no âmbito do trabalho devem superar-se. Isto, sobretudo, significa revi ver o espírito de comunidade e solidariedade, fortalecer o diálogo entre os grupos da sociedade e desenvolver um novo consenso para mudança e reforma". Em resumo, conciliar trabalho/ empresários; ecologia/economia; benefício/salário; pequena empresa/monopólios multinacionais …

Fundamentos político-culturais: idéias e crenças

Blair inicia o seu livro dizendo: "sempre acreditei que a política tem a ver, antes de tudo, com as idéias" (17). E pouco mais adiante afirma: "o ponto de partida são os valores progressistas-chave nos quais se funda a centro-esquerda" (18). Delineia quatro valores-chave: partilha eqüitativa da riqueza; igualdade de oportunidades; responsabilidade; e solidariedade.

O discurso de Blair, Schröder e Giddens, denuncia o igualitarismo tradicional na esquerda e reafirma os deveres e as responsabilidades individuais. O curioso, para começar, é que os exemplos apresentados têm a ver com um mau uso que os trabalhadores fariam dos seus direitos e do seguro desemprego, e de sua falta de responsabilidade ao fazer mau uso desse direito para não trabalhar. Não há uma análise correlativa da falta de responsabilidade dos empresários, industriais ou financistas, quando especulam, contaminam ou, simplesmente, mudam o local da empresa para combater a pressão sindical ou evitar o pagamento de impostos.

G. A. Cohen, comentando os primeiros documentos elaborados como pressupostos político-culturais da Terceira Via, assinala como característica a renúncia teórica e prática a uma luta real por igualdade e o esquecimento do que ele denomina "princípio de comunidade". Reduzir esse princípio de igualdade, como faz Blair, a uma simples "igualdade de oportunidades", sem modificar as causas que perpetuam as desigualdades econômicas, sociais e culturais é, na prática, mudar de lado. O assunto está no outro lado, na "comunidade" de Cohen, entendida como princípio ético-político que limita estruturalmente o funcionamento (auto)regulado do mercado capitalista e esforça-se, num processo histórico-social, para que a própria comunidade, de homens e mulheres livres e iguais, regule, conscientemente, as suas relações sociais. "O motivo – diz Cohen (19) – da atividade produtiva numa sociedade de mercado é, tipicamente, uma combinação de medo e cobiça, em condições que variam com o caráter de uma pessoa e a sua posição no mercado; à luz da cobiça os demais são vistos como possível fonte de enriquecimento; à luz do medo são vistos como ameaça. Essas são maneiras horríveis de ver os demais, por mais que nos tenhamos tomado insensíveis e habituados a eles – como resultado de séculos de desenvolvimento capitalista".

A demonstração mais evidente de que não há intenção real de se conseguir uma igualdade sócio-econômica aparece quando se fala sobre partilha da riqueza, na qual não figura o que deveria ser central nessa proposta: a necessidade de um sistema fiscal progressivo sobre as rendas e os patrimônios. Ainda mais quando, hoje, um dos dados característicos é o descomunal crescimento da riqueza das minorias que detêm o poder econômico na sociedade.

Giddens – mais hábil do que Blair e, por conhecer mais detidamente os problemas atuais da sociedade britânica – entra direto no assunto de modo bastante convincente, depois de desqualificar alguns dos argumentos do próprio Blair. Para o sociólogo britânico, igualdade, hoje, significa, fundamentalmente, a inclusão social, isto é, a existência de uma autonomia individual está diretamente relacionada à existência de um conjunto de direitos civis, políticos e culturais, de cidadania. O problema está entre a incompatibilidade do predomínio do mercado na sociedade e na debilitação da rede de proteção (social, política e jurídica) que torna possível o exercício real desses direitos. A experiência histórica recente (socialdemocrata ou neoliberal) manifesta que a cidadania social deve ser imunizada contra o mercado e exige uma desmercantilização de tais direitos.

O fundo ideológico neoliberal, nas entrelinhas – presente nessa análise, fica demonstrado em dois argumentos centrais; social um e filosófico o outro. Giddens iguala dois tipos de exclusão: a dos "de baixo" e a dos "de cima". Isso provoca um certo embaraço na leitura, obrigando a voltar ao texto para ter certeza de que lemos corretamente. Pela sua conclusão, os 20% mais ricos desta sociedade estão se isolando social e territorialmente em zonas privilegiadas e exclusivas, sendo isso ruim para a sociedade; uma fratura muito grave. O conhecido cientista social não acredita na existência de alguma relação entre essa minoria, que enriqueceu bastante nestes anos, e os neoliberais? Isso teria a ver, não apenas com a pobreza e a exclusão dos "de baixo", produto de um sistema econômico divisionista (20) e de um sistema fiscal que marca crescentemente os assalariados e os consumidores, que poupa os grandes empresários do pagamento de impostos? Por tudo isso, falar, no final, sobre o princípio de solidariedade e internacionalismo não deixa de ser uma cruel ironia, não apenas pelo fato dessa solidariedade não ter reciprocidade (de cima para baixo) mas sim por acabar exigindo isso de uma parte da classe trabalhadora em favor de outra classe, também trabalhadora; quando não, solidariedade às empresas em relação à sua luta competitiva internacional.

Melhor seria nada falar sobre a questão do internacionalismo: não há, em declarações, livros, ou manifesto público da Terceira Via, qualquer menção sobre o que seria o grande problema da humanidade, que preocupa a Igreja católica, a ONU e as ONGs: o incremento descomunal das desigualdades mundiais, o crescimento da crise ecológica do planeta. Nessa questão, vale a advertência de Cohen: "Os valores socialistas fundamentais que apontam para uma forma de sociedade além das possibilidades presentes, são necessários para defender cada porção de terra ganha e para tentar recuperar cada parcela perdida". (21)

A Terceira Via e suas linhas básicas como projeto: perpetuar o mesmo modelo

Ninguém duvida da necessidade de adaptar-se e de intervir nas mudanças políticas, sociais e culturais em curso. Mas nos opomos à interpretação dominante que explicita uma seqüência, da análise dos velhos e novos problemas até a aceitação da versão neoliberal dos mesmos, para chegar à conclusão sobre a impossibilidade das políticas de esquerda.

A primeira questão tem a ver com a chamada globalização – elemento central dos supostos básicos da Terceira Via. Sem entrar em todas as nuances do problema percebe-se que a globalização limita os poderes do Estado/nação e restringe as possibilidades de políticas econômicas, democráticas e igualitárias. Essa limitação provém, fundamentalmente, da livre circulação de capitais e da ditadura dos mercados financeiros.

Isso é real e, assim sendo, há distintos procedimentos – no caso da Europa fica evidente com a União Política, econômica, social e monetária que perfeitamente poderia aplicar mecanismos de controle financeiro influindo pesadamente para conseguir a regulação dos mercados de capital internacional, supondo as dificuldades acrescentadas às políticas socialistas. Sem embargo, o assunto deveria ser conduzido de forma natural – do seu marco superior ao dos Estados/nação clássicos. Estamos nos referindo à União Européia de hoje, que, ao menos formalmente, abarca claramente maiorias sociaisdemocratas, capazes de impulsionar políticas integradas de emprego, de melhoria dos direitos sociais e econômicos e de aprofundar a democracia. E, mais adiante, com toda a sua força, impulsionar uma nova ordem econômica e social internacional para limitar o papel dos mercados especulativos internacionais e regular o poder incontrolável- até agora – das multinacionais.

Ocorre que essas políticas, perfeitamente factíveis, são sistematicamente evitadas pelos partidários da Terceira Via. E, mais ainda, a sua filosofia e as suas propostas impedem um controle mais efetivo do capital, justificando, assim, a limitação dos direitos sociais e trabalhistas dos trabalhadores em nome de uma globalização irreversível e incontrolável.

Em segundo lugar, ao se afirmar que a margem de manobra dos Estados foi reduzida, parece pouco realista debilitar ainda mais a capacidade de negociação de cada um desses países privatizando suas empresas rentáveis, cedendo as indústrias estratégicas e repassando soberania a organismos nãodemocráticos como, por exemplo, a Banca Européia. Em um e outro sentido, as políticas econômicas devem lutar pela incrementação de espaços de autonomia. As propostas da Terceira Via, do modo como aparecem nos manifestos de Blairl-Schröder e de Aznar-Blair são muito significativas; de um lado, liberam as grandes empresas de uma importante parte das cargas tributárias e, de outro, para lutar presumivelmente contra o desemprego, subvencionam as mesmas e lhes diminuem os encargos sociais. Comprometem-se, igualmente, a qualificar e requalificar a mão-de-obra existente e asseguram uma colaboração econômica estreita entre as empresas e o Estado em relação à modernização tecnológica. A empresa e os empresários se convertem em figuras centrais do sistema e do incremento de seus lucros é que se espera, novamente, aumento de emprego.

Com vinte anos de implementação de semelhantes políticas observa-se – Keynes conhecia isso muito bem, para não mencionar Marx – que dos lucros pode-se desviar investimentos de racionalização, buscando economizar mão-de-obra, ou pode-se desviar também para a especulação (mobiliária e imobiliária) – de fato uma parte das fusões se faz para isso – e, também, para o incremento de gastos suntuários ou luxuosos, como diria Ricardo. Sem a atividade do Estado, através de mecanismos fiscais, financeiros e industriais, não se pode garantir, em absoluto, a geração de empregos pelos benefícios.

Em terceiro lugar, a luta pelo emprego pleno é sistematicamente rejeitada. Quer dizer, no fundo, é preciso encontrar uma síntese entre o modelo americano e o europeu. Isto significaria aceitar, no presente e no futuro, um modelo de relações trabalhistas e um modelo social, correlativo, que perpetuasse a atual heterogeneidade estrutural do mercado de trabalho organizado em torno de um setor assalariado, com condições sociais e jurídicas estáveis, ao lado de outro setor que vive numa situação instável, em suspensão estrutural. Como demonstrou Castel (22), um círculo que se mantém entre a precariedade e a exclusão, e vice-versa, mas que dificilmente conseguirá uma integração salarial. Ao final, na realidade, isto significa aceitar uma parte da população trabalhando cada vez mais, e em piores condições. No pico do ciclo se produz aumento de emprego, embora de baixa qualidade, precário e com baixos salários, surgindo o que se chama de maldição norte-americana: os trabalhadores pobres. Na fase de descenso da economia, o desemprego aumenta enormemente e se inicia um novo ciclo que reproduz a situação anterior, sem variações significativas.

Nesse sentido, como assinalou há muitos anos o destacado dirigente social-democrata alemão Peter Glotz (23), a luta pela redução da jornada de trabalho poderia ser o ponto de unificação da esquerda européia e o elemento fundamental para passar a uma ofensiva político-cultural em todo o continente. Como é natural, não se trata apenas da jornada, mas, de um conjunto de políticas que reforçassem a capacidade contratual das forças de trabalho, sem a qual parece pouco provável conseguir poder real, nesta sociedade, para a classe trabalhadora.

Em quarto lugar, é necessário uma reforma do Estado de Bem-Estar adaptando-o às condições do presente mercado de trabalho. Aqui, convém não enganar e nem se enganar. As propostas da Terceira Via coincidem, claramente, com as políticas neoliberais. Desmantelar, radicalmente, o Estado de Bem-Estar não parece possível em condições democráticas; trata-se de propiciar reformas que o tornassem progressivamente funcional em relação ao tipo de capitalismo dominante hoje, evitando assim uma contundente resposta dos trabalhadores; privatizando as partes rentáveis do sistema (Saúde, Previdência, Educação); restringindo a cobertura das prestações; e reduzindo sua intensidade.

Tudo o que for compatível ao gasto estatal para a realização de reconversões industriais (pré-aposentadoria, aposentadoria antecipada), redução dos encargos sociais e custosas subvenções à empresa privada.

Epílogo. Que democracia?

Um dos elementos mais interessantes das propostas de Giddens é a necessidade de reforma e de democracia. O ponto de partida é correto: "A democracia está em crise por não ser suficientemente democrática" (24). Do ponto de vista de Giddens, "democratizar a democracia" exige um conjunto de medidas, de uma forma ou de outra planejadas por ele e que fogem ao problema principal: dar mais poder aos cidadãos e às cidadãs.

O problema não é unicamente de ajuste às mudanças operadas – apesar de muito importantes – mas sim de questionamento do poder da democracia (no sentido que dá ao termo David Held ou Boaventura Sousa Santos), ou seja: o quê os poderes democráticos podem, realmente, fazer frente à ditadura dos mercados financeiros? O que podem frente à luta de classes dirigi da por cima por esses 20% que "se autoexcluem"? E, ainda, frente ao poder dos "Estados soberanos sem fronteiras" (as multinacionais)?
Se, além disso, se diz, como afirma o sociólogo britânico, que não pode haver "autoridade sem democracia", como não questionar o poder na empresa, na fábrica, na família, e, definitivamente, em cada uma das esferas de poder? Por tudo isso, do ponto de vista histórico, a Terceira Via é um passo a mais em direção à imposição do modelo social norte-americano à Europa e, no final, uma mudança de modelo político segundo as normas e as práticas predominantes na parte norte do outro lado do Oceano.

Os traços político-culturais dessa norte-americanização da nossa vida são cada vez mais evidentes:
1. A concepção da democracia como técnica, como processo desligado de qualquer idéia ou projeto de transformação social. Uma democracia intermediária e crescentemente separada dos "de baixo".
2. O declínio de qualquer idéia, minimamente coerente, de oposição política ou social e a homogeneização das forças políticas sob pretexto de superar os partidos ideológicos arcaicos, ou seja, os que tenham projetos alternativos ao existente.
3. A substituição do programa, quer dizer, da discussão sobre projetos diversos de sociedade, por técnicas eleitorais fundamentadas em várias fórmulas de marketing comercial, com o único objetivo de conseguir votos a qualquer preço.
4. A tendência a executivos fortes e à progressiva substituição do centralismo do parlamento, no contexto das reformas eleitorais que consideram os sistemas proporcionais ingovernáveis e que convertem os partidos em máquinas eleitorais cada vez mais oligárquicas e fundidas ao aparato do Estado (do partido de "arranjos" ao partido de "cartel").
5. A consolidação prática do mecanismo de "duplo Estado", quer dizer, a ampliação da parte do aparato estatal não sujeita ao controle democrático e, o mais importante, o seu predomínio cada vez mais real sobre o conjunto das instituições.
6. A impotência do soberano.

Como conseqüência dos itens anteriores o cidadão se converteria num mero objeto dos políticos, num "cidadão servo" (25), política e culturalmente mais alienado, sem entender a coisa pública e interiorizando o que, para a perpetuação do sistema, é fundamental: a política, o público, não é, nesta sociedade mercantil capitalista, um instrumento eficaz de transformação social, um mecanismo de promoção frente à injustiça e à desigualdade, quer dizer, o definitivo triunfo de uma espécie de "liberalismo de direita". (26)

Manuel Monereo Pérez é membro da Presidência Federal da Esquerda Unida, Espanha. Tradução de Maria Lucília Ruy

Notas:

(I) BAUER, Otto. Tra due guerre mondiali? La crisi Delt' economia mondiale, delta democrazia e dei socialismo. Torino: Eunaudi. 1979. Prólogo. In: COLLOTTI, Enzo. Lo político y Ias transformaciones. In:
Cuadernos Passado y Presente n° 95. México. 1982. Como em todos os trabalhos de Bauer, nestes se encontra uma detalhada e completa exposição sobre os dilemas e tragédias do experimento social-democrata na Áustria.
Para compreender essa época, é imprescindível o livro de memórias de Ernest Fischer Recuerdos y riflexiones. Século XXI. Madrid. 1976.
(2) INGRAO, Pietro. Crisis y Tercera Via. Laia. Barcelona. 1980.
(3) Este tema foi aprofundado num amplo artigo à revista Sistema, n° 139. Julho de 1997. La izquierda europea: entre el estancamientu y Ia renovación.
(4) BLAIR, Tony. La Tercera Via. E1 País-Aguilar. Madrid. 1998. p. 73. (5) Op. Cit., p. 54.
(6) Op. Cit., p. 56.
(7) Op. Cit., p. 57.
(8) Op. Cit., p. 66.
(9) GIDDENS, Anthony. La Tercera Via: La renovación de Ia socialdemocracia. Taurus. Madrid. 1999.
(10) Respeitamos, aqui, os termos utilizados por Giddens e nos permitimos colocá-los entre aspas para não fazer confunda, em nenhum momento, com a corrente de esquerdas.
(11) Op. Cit., p. 26.
(12) Como veremos mais adiante, esse mesmo argumento será utilizado com um sentido positivo por Cohen.
(13) Op. Cit., pp. 13-14.
(14) Op. Cit., p. 53.
(15) Da Declaração conjunta Blair/ Schröder.
(16) Op. Cit., p. 53. (17) Op. Cit., p. 53.
(18) Vuelta aios principios socialistas. Revista Mientras Tanto, n° 74, 1999. (19) Como se pode observar, utilizamos, aqui, o mesmo termo de Giddens. (20) Artigo citado, p. 79.
(21) CASTEL, Robert. La metamorfosis de Ia cuestión social. Paidós. Barcelona. 1967.
(22) GLOTZ, Peter. La izquierda tras el triunfo de occidente. Alfons el Magnani. Valencia. 1992.
(23) Op. Cit., p. 87.
(24) CAPELLA, Juan Ramón. Los ciudadanos siervos. Editorial Trotta. Madrid. 1993.
(25) Este tema foi desenvolvido mais amplamente no artigo La crisis de Ia politica y Ias Instituciones Europeas. Revista Sistema, n° 123, novembro de 1994.

EDIÇÃO 56, FEV/MAR/ABR, 2000, PÁGINAS 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28