Carta das Cidades
I – A 1ª. Conferência das Cidades, realizada no espaço privilegiado do Parlamento, com a presença de participantes de todos os Estados da Federação, provenientes de organizações da sociedade civil e institucionais vinculadas às questões urbanas, manifesta ao governo e à sociedade brasileira o sentido de urgência das transformações indispensáveis para que o País encontre o rumo da construção de um ambiente humano, socialmente digno, efetivamente democrático e culturalmente rico para a população.
II – A cidade brasileira é o retrato perfeito de uma sociedade que se construiu e se reproduz sobre a exploração e a opressão da imensa maioria da população. Este modelo contou com um Estado que investiu pesadamente no fomento e na estruturação do desenvolvimento urbano-industrial, mediante políticas cujo resultado sempre foi uma cidade mais desigual, mais segregada.
III – Esta situação urbana tem sua origem num conjunto articulado de questões oriundas de problemas estruturais do País, como a concentração de renda, a migração do campo para as cidades, a inconsistência da política fundiária, a baixa taxação sobre a propriedade imobiliária ociosa, o escasso investimento público na provisão de infra-estrutura e na produção habitacional – fatores que favorecem os comportamentos especulativos sobre a função social do solo urbano.
IV – A financeirização da economia submete os ritmos de vida da humanidade e da natureza, degradando a cidadania, depredando o meio ambiente e o patrimônio cultural, ignorando a memória como elemento constitutivo e significativo para a compreensão e gestão das cidades, desagregando e ameaçando a sobrevivência das populações tradicionais (índios, pescadores, caiçaras, povoações ribeirinhas, etc.). Com a reestruturação econômica e a g16balização, as cidades são progressivamente integradas em estratégias mundializadas, que produzem formatos de cidades homogêneas (shopping centers, etc.). Sistemas de comunicação e informatização nos integram ao primeiro mundo a Um custo social gravíssimo, descaracterizando as instituições públicas, os movimentos sociais e tomando descartáveis setores produtivos excluídos pelos novos parâmetros.
V – Tal modelo é responsável pela realidade de penúria em que vive a população brasileira, demonstrada pelos índices de desemprego (6,9 milhões de brasileiros perderam o emprego nesta década, conforme dados do IBGE; pelo número elevado de trabalhadores sem carteira profissional assinada; pelo aumento da população vivendo em favelas, cortiços, loteamentos clandestinos, nas ruas e sob as pontes; pela violência urbana e rural; pelo imenso contingente decrianças abandonadas; pelos massacres generalizados; pela redução crescente da mobilidade, fruto do modelo individual de transportes, pesado e oneroso, e de leis de zoneamento que mantêm a força de trabalho em áreas longínquas, gerando o caos nos trajetos, deslocamentos demorados e agressivos que implicam em perdas de recursos, tempo e vidas humanas. Um modelo perverso, enfim, que gera individualismo, implicando na elevação da hostilidade e na decadência dos valores da solidariedade, humanidade e com operação urbana.
VI – O Estado brasileiro foi historicamente marcado pela desigualdade e pelo uso dos bens públicos em benefício de classes já privilegiadas. Investimentos socialmente concentrados e oriundos das relações de troca de favores e clientelismo reduziram e continuam reduzindo o acesso da maioria da população a direitos básicos. Nos anos 90,: essa situação piorou. Houve mudanças na relação Estado! sociedade civil, aumento do déficit público, desmonte das políticas sociais, de bens e serviços públicos, agravamento da crise social, endividamento dos governos estaduais e municipais, imposições internacionais, perda de direitos conquistados na Constituição de 88, disputa entre níveis de governo, bem como a emergência de novos representantes das velhas elites brasileiras no desenho de políticas urbanas, acentuando as lógicas empresariais e de negócios e transformando os direitos sociais em mercadoria.
VII – A cidade brasileira também é o lugar da luta, o lugar da constituição de movimentos organizados que querem transformá-la. É o lugar da construção da cidadania, conquistada a partir de experiências concretas de solidariedade e da elaboração coletiva de projetos alternativos. Não obstante a atual política centralista, inúmeros municípios têm fortalecido a democracia e o atendimento das necessidades de parcela significativa da população, a partir da experimentação e afirmação de novas formas de planejamento e administração pública. Apesar da cultura da competição, os excluídos da produção formal vão criando laços de cooperação, articulando e estruturando na prática a economia popular, pressionando por políticas públicas que interfiram no mercado e que possam garantir trabalho e renda.
VIII – Para reverter o processo crescente da produção da pobreza, desigualdade e exclusão social, bem como de degradação humana e ambientaI, é necessário adotar metas claras visando alcançar reformas estruturais para um novo modelo de desenvolvimento, como já é apontado por vários documentos do movimento popular e democrático, entre eles o Manifesto do Movimento em Defesa do Brasil, da Democracia e do Trabalho, construindo uma ação comum de entidades, sindicatos e partidos políticos, na perspectiva da edificação da unidade no curso das lutas.
IX – A Conferência das Cidades busca oferecer ressonância à voz dos que lutam e sonham que é possível construir espaços de convivência com um novo perfil. Em nome dessas aspirações e das múltiplas possibilidades oferecidas pelo exercício da cidadania, afirma-se a perspectiva da construção de cidades estruturadas para a plena satisfação das exigências materiais e espirituais de seus habitantes.
X – A Conferência das Cidades reafirma e assume para si as deliberações da Conferência Nacional de Saneamento e propõe à sociedade brasileira, de imediato:
– A formulação de um novo projeto de desenvolvimento para o Brasil, inscrevendo, entre outras políticas públicas, o desenvolvimento urbano, no sentido de assegurar a articulação das dimensões ambiental e social, e sua integração ao conjunto das políticas e planos para o País, suas regiões e cidades.
– Para viabilizar a execução deste projeto nacional de desenvolvimento, no que se refere à política urbana, impõe-se a reversão do panorama atual relativo à alocação de recursos, inclusive do BNDES e FINAME, para habitação, saneamento, transporte público de massas e infra-estrutura urbana. É necessária a previsão – e efetiva aplicação – nas leis orçamentárias dos três níveis de governo de um volume significativamente maior de recursos a fundo perdido.
– Mesmo admitindo á relevância da participação dos recursos privados, cUmpre-nos evidenciar o histórico papel alavancador do desenvolvimento urbano representado pelos recursos. públicos, exigindo-se também melhor utilização dos recursos orçamentários, mediante a sua conjugação com outras fontes (FGTS, recursos do BNDES, da CEF e de organismos multilaterais), voltadas em especial para o financiamento das classes e camadas de baixa renda da sociedade.
– Reafirmação da Reforma Urbana, substrato e garantia do direito à cidade, à função social da propriedade e à moradia como direitos fundamentais das populações urbanas e dos indivíduos, contribuindo para a promoção do desenvolvimento material, social e cultural de uma pátria de brasileiros e, assim, promovendo a efetiva melhoria da qualidade de vida.
– O estabelecimento de um novo Pacto Federativo, que vede a centralização e concentração de recursos financeiros pela União, restabelecendo os recursos e as prerrogativas dos Estados e Municípios e a plena retomada das atividades de interesse local, assegurando às cidades o direito inalienável de formular e executar suas políticas públicas, tomando disponíveis ainda os programas federais de desenvolvimento urbano para efetiva aplicação municipal.
– A democratização do planejamento e da gestão das cidades, com ênfase nos mecanismos que garantam o interesse público, o acesso à informação e o controle social sobre os processos decisórios das políticas e dos recursos públicos, nos vários níveis, assegurando a participação popular em geral, mediante a realização de orçamentos participativos, entre outros instrumentos e, em âmbito nacional, a criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano, com efetiva participação da sociedade.
– O apoio irrestrito à luta pela Reforma Agrária como parte integrante do esforço voltado para o desenvolvimento nacional, ao lado da Reforma Urbana, e à oferta de serviços públicos às vilas e pequenas localidades rurais, a exemplo da eletrificação rural, saneamento e outros instrumentos de conforto, saúde e estímulo à cidadania, oferecendo consistência a uma política de emprego e elevação da qualidade de vida dos trabalhadores rurais – protagonistas da produção de alimentos crescentemente importados -, tornando mais atraente a vida no campo e gerando conseqüente impacto positivo nas cidades.
– A ampliação da política de preservação urbana, reforçando o papel dos organismos federais, estaduais e municipais do setor, como instâncias de proposição, implementação e articulação de políticas públicas, desenvolvendo seus instrumentos de financiamento urbano em ações que fomentem e articulem os diversos aspectos relativos à defesa do patrimônio cultural (históricos, artísticos, educacionais, etc.). Realização de um seminário nacional para discussão e elaboração do Sistema Nacional de Preservação do Patrimônio Cultural, com a participação de representantes dos três poderes da República, dos movimentos sociais afins, ONGs e empresas interessadas.
– No plano legislativo, é indispensável a aprovação definitiva do Estatuto da Cidade (PL 5.788/90, do Senado), já aprovado nas comissões de mérito da Câmara dos Deputados e ainda pendente de manifestação da Comissão de Constituição e Justiça e do Senado; da PEC 601198, que introduz o direito à. moradia na Constituição Federal; do PL 2.710/92, de iniciativa popular, que cria o Fundo Nacional de Moradia Popular e o Conselho Nacional de Moradia Popular; da PEC169/93, que tratados recursos do SUS; a inserção na proposta de Reforma Tributária da destinação de recursos vinculados do Imposto Seletivo para o transporte urbano; regulamentação .dos artigos do Decreto-Lei n° 25,de30/11/1937, que trata da preservação do patrimônio cultural brasileiro e define as atribuições do IPHAN.Apresenta-se como uma exigência o cumprimento da Lei n° 8.899/94, que concede passe livre às pessoas portadoras de deficiência no sistema de transporte coletivo interestadual.
A Agência Habitat, da ONU, já iniciou o processo preparatório do encontro de avaliação da Conferência de Istambul, a realizar-se em 2001. 0s compromissos firmados pelo governo brasileiro, como signatário da Agenda Habitat, não foram implementados e nem sequer planejados.
A Conferência das Cidades exige que a sociedade civil seja chamada para a retomada imediata da Agenda Habitat.
A Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior estabelece o compromisso de realizar anualmente a Conferência Nacional das Cidades, precedida por conferências organizadas nos Estados e Municípios pelas assembléias legislativas e câmaras 11lunicipais, articuladas com as entidades e movimentos da sociedade civil.
A Conferência das Cidades conclama à ampla mobilização popular em defesa de Reforma Urbana, do direito à moradia, ao transporte, ao saneamento, à infra-estrutura, enfim, do direito à cidade.
Brasília, Câmara dos Deputados, em 03 de dezembro de 1999
EDIÇÃO 56, FEV/MAR/ABR, 2000, PÁGINAS 44, 45, 46