Os problemas do Brasil urbano
Como geógrafo sou uma pessoa simples e tenho certa insegurança ao iniciar uma palestra, mas estou hoje aqui com entusiasmo. Antes do tema das cidades vou falar sobre algumas questões que, ao longo do século XX, me marcaram profundamente.
Uma delas foi o fato de Franz Boas, um grande antropólogo que fugiu da Alemanha nazista e foi trabalhar nas universidades norte-americanas, ter dito que o contato de sociedades ocidentalizadas – com grande nível tecnológico belicoso – acabava por levar letalidade a quaisquer populações ameríndias com povos de cultura primária. Estamos ainda assistindo a resquícios desse processo em certos rincões remotos do Brasil- em Roraima, no norte e noroeste do Mato Grosso, e outros lugares. Contatos que acabam sendo letais e, quando não ocasionam genocídio, geram pelo menos a morte da cultura – o que é muito grave.
A segunda questão que presidiu minha vida nesse século foi uma fala do professor Braudell, que dizia: "A História é a história de todas as histórias". Será a história deste evento, que o Parlamento em boa hora teve a iniciativa de fazer, a história de nossa Brasília, a do pequeno povoado de Marzagão Velho no Amapá ou a de Pelotas no Rio Grande do Sul? Esta ampliação da História, fugindo do formal e abrangendo todas as histórias, é uma base para o estudo do desenvolvimento das redes e bacias urbanas no Brasil.
Um terceiro comentário nasceu de uma observação do mestre Roger Bastide ao fim de um curso que fiz quando jovem. Pedimos a ele que desse aulas sobre sociologia educacional para historiadores, geógrafos e sociólogos. O professor nos disse o seguinte: "Não tenho os livros que gostaria para organizar um curso de sociologia educacional, pois minha biblioteca ficou em Paris e possuo pequena reserva de livros em São Paulo". Procurei então em minha humilde estante e tirei um livro que me chamara a atenção no passado, A sociologia dos animais, e, de repente, diz o professor Bastide – e aquilo impressionou profundamente a todos, que éramos de áreas diferentes:
"Lendo e relendo este famoso livro de Marcel Mauss, cheguei à conclusão que o homem é a única espécie viva na face da Terra capaz de retraçar a trajetória da sua espécie em todos os tempos e em todas as épocas". Quando ele disse isso, ficamos pensando na responsabilidade desse fato. Se o homem é o único ser vivo na face da Terra capaz de produzir sua história e reconstruir sua trajetória, nossa responsabilidade com todo o planeta, a biodiversidade e a humanidade que se projeta pelos mais diferentes espaços – no campo, em cidades e áreas urbanas – aumenta ainda mais; porque somos os únicos que podem retirar exemplos do desenvolvimento da história dos homens, das comunidades e das sociedades.
Outro fato fundamental nestas lembranças do século XX foi a questão da diferenciação entre o conhecimento sobre o mundo natural e o conhecimento do mundo em que há uma projeção dos homens sobre o espaço herdado da natureza. Aqui abro um parêntese: conheci Brasília logo no começo de sua fundação, era um conjunto de altiplanos, revestidos por cerrados e interpenetrados por florestas e galerias, bem no centro do país. Mas na transição entre os altiplanos, os chapadões e o começo dos baixos relevos (que vão conduzir os grandes rios do Brasil Central para a margem direita do Rio Amazonas), de repente, os arquitetos e urbanistas concebem uma cidade com uma adaptação a uma rede de drenagem que a gente chama de semi-anular; e Brasília ganhou uma forma de asas, como uma flecha em direção a pontos extremos do país. Essa questão me conduziu ao problema da tipologia dos espaços organizados iniciados e desenvolvidos por homens e sociedades em diferentes áreas dos países em desenvolvimento.
Um famoso geógrafo da região de Toulouse escreveu na década de 1960 um trabalho fundamental, e que, evidentemente, hoje precisa ser completado:
Types of Geographical Spaces of Countries in Development. Naquele momento, o problema básico do Primeiro Mundo era caracterizar o mundo desenvolvido e o que eles consideravam subdesenvolvido, por diferenças regionais, de ocupação, de modernidade e outras causas. Mas o professor que fez isso, Bemard Kayser, iniciou um tratamento para quem quer estudar cidades, redes de cidades e bacias urbanas. Ele caracterizou em primeiro lugar um tipo regional imenso que seriam as regiões em processo de desenvolvimento, com cidadezinhas situadas na beira de rios, no entroncamento de rios, ou na barra de igarapés. Evidentemente a Amazônia era assim um grande território em processo de desenvolvimento complexo – em função do ambientalismo, do ecologismo e de pressões inteligentes, mas também pressões geopolíticas muito graves – teve de ser pensado como uma área que teria o máximo da floresta em pé. Ou seja, o máximo de biodiversidades naturais preservadas e um tipo de desenvolvimento que não fosse capaz de predar espaços muito grandes dentro deste conjunto. Assim, vemos que já mudou um pouco o conceito de espaços em vias de desenvolvimento do professor Kaiser.
Depois, ele nos falava de bacia urbana, que seria o de uma grande cidade, a cabeça de um território, colocada próxima de porto ou em uma situação estratégica, ou no entroncamento de rotas, e que controlaria uma rede de cidades modestas vinculadas ao poder e ao comando social, socio-econômico ou econômico dessa grande cidade. Evidentemente, quando surgiu essa caracterização, a rede de cidades fundamental que representava esta bacia urbana era o Nordeste seco. Só que de lá para cá multiplicaram-se as rodovias asfaltadas, as cidades conseguiram até mesmo pontos universitários relacionados com as universidades que estavam na área central de concentração da originalidade principal das metrópoles. Com isso, o Nordeste seco se desenvolveu bastante e, não fosse a estrutura agrária rígida que existe nos sertões, teríamos condições de ter mais gente com pequenos espaços podendo produzir. Mas o principal problema é a secura, o grande drama do semi-árido do nordestino.
Aprendi sobre essa região e gostaria de socializar. Em um Congresso Internacional de Geografia no Rio de Janeiro (em que estiveram dezenas de grandes nomes da Geografia e da História da Europa, dos Estados Unidos, do Japão e da Rússia), organizamos várias excursões para toda as partes do Brasil:
Pantanal, Sudeste, Bahia, Minas Gerais, Amazônia e Nordeste. No caso do Nordeste, contávamos com a presença de Jean Dresch um grande conhecedor do Saara, o maior deserto existente no Planeta. E quando começamos a caminhar pelo interior dos sertões, depois de transpor a Borborema descemos do outro lado na Serra dos Ferros. No terceiro dia da excursão, ele parou nosso diretor, o professor Mário Lacerda de MeIo e disse o seguinte: "Nesses três dias que estou viajando por esses vastos sertões, já posso dizer a vocês que isso aqui não tem nada de deserto. Absolutamente nada! Tem gente por toda parte, na beira dos rios, nos interflúvios e ao longo de estradas. Há gente distribuída por todos os espaços que percorri. Se vocês me dizem que os outros espaços são parecidos com estes, posso afirmar que não tem nada de deserto". Achei aquilo magnífico porque era uma pessoa que conhecia. Sondando um pouco mais, nos disse o seguinte: "No deserto não tem sazonalidade, não é possível ter vegetação, nem arbustivas, muito menos área pontilhada por árvores e paineiras e outras coisas mais que existem nas chamadas caatingas arbóreas. Então isto aqui é uma região semi -árida muito extensiva, com rios que perdem a correnteza por cinco, seis, sete meses, mas readquirem-na por outros, e não são iguais aos do deserto que apenas correm quando chove – parou a chuva, parou de correr". Quando o professor Dresch falou isso, fiquei impressionadíssimo com nossa responsabilidade. Porque, dizia ele: "Tem gente por toda parte e é a região semi-árida mais povoada do mundo e, sendo assim, a responsabilidade de vocês governantes, intelectuais e pessoas esclarecidas é muito maior". E é evidente que a nossa responsabilidade com a região envolve ter esclarecimentos sobre a realidade fisiográfica, ecológica, social e fundiária do Nordeste, ou não poderemos resolver os grandes problemas da região semi-árida mais povoada do•mundo.
Além das áreas em processo de desenvolvimento e das bacias urbanas mais rústicas existe a necessidade de se considerar também as bacias urbanas mais densas, com maior número de capitais regionais, densidade de cidades e certo grau de ocidentalização aparentemente melhor que a bacia rústica. Então, nessa classificação, eu acrescentaria o caso da rede urbana, a bacia que se estende de São Paulo ao norte do Paraná, ao Triângulo Mineiro e certas áreas de Minas Gerais, aos estados do Rio de Janeiro e Espírito Santo. Esta bacia urbana é dependente de alguns grandes centros como São Paulo, Curitiba, Rio de Janeiro, Vitória e Belo Horizonte. É uma bacia urbana fantástica. Só no Estado de São Paulo, em função da sua história econômica e das elites do passado – inteligentíssimas em relação à administração do espaço total paulista -, essa bacia urbana teve 100 cidades, formadas em pontas de trilho e em função de heranças dos tempos de cruzamento de rotas de muares para levar café para os portos. São 100 cidades do café. E hoje tem 1.500 centros urbanos de portes variados, desde o pequeno núcleo de atendimento rural, com bóias frias, até capitais, algumas delas, talvez, entre as maiores do mundo. São Paulo é uma região integrada de municípios, mas o todo funciona como um núcleo urbano de integração total – daí seus problemas, inimagináveis, de circulação interna e outras coisas mais. Mas vejam bem, esse tipo de cidade nos faz pensar em quais os fatores para um crescimento urbano tão rápido. No caso das cidades de porte médio – Ribeirão Preto, Sorocaba, São José do Rio Preto, Presidente Prudente, e sobretudo Campinas -, estão ao ensejo de várias pressões.
A principal pressão é a passagem abrupta do mundo urbano para dentro do mundo rural. Isso é um desastre. Em alguns lugares do norte do Paraná desaparecem 7 fazendas produtivas por ano e cria-se um bairro no lugar. Este, no começo é pequeno, pobre, desconcentrado e, de repente, cresce e afinal obriga os prefeitos a procurar integrá-Io à infra-estrutura – e a cidade incha pela agregação.
Outro processo também especulativo é a verticalização. Quando venho a Brasília e relembro os padrões implantados no início com feições arquitetônicas e urbanísticas que deveriam ser preservadas, fico alegre com algumas coisas e um pouco entristecido com a violência da verticalização que vai se esboçam independentemente dos planos diretores, porque a pressão dos poderosos é infinita num país de grandes desigualdades sociais. Mas, vejam bem, a verticalização em São Paulo está adquirindo aspectos que não dá para se comentar. São Paulo se desenvolveu num sistema de colinas, com amplitude grande de ordem altimétrica (as várzeas do Tietê-Pinheiros estão a, mais ou menos, 718 metros e o espigão da Avenida Paulista está 820), tem um certo relevo nas colinas, terraplanície, terraço, rampas, vales que seccionam os terraços intermediários etc. E essa cidade, após o ciclo histórico em que funcionou como ponta de lança da ocupação territorial do Brasil e da interlândia rústica do Brasil, passou a ter um contorno tentacular de vários tentáculos: avenidas como São João, Celso Garcia e outras, todas se dirigindo para os quadrantes mais variados – na direções do porto, do interior, do Vale do Paraíba … Após essa fase tentacular em que a cidade foi predominantemente comercial na sua região central e possuía núcleos industrializados bem separados no ABC e mais tarde em Cubatão, criou-se uma nébula fantástica de bairros carentes nos confins desses tentáculos – com um traçado absolutamente caótico e anacrônico. Dentro desse composto fantástico de bairros carentes surgiram incrustações de favelização – que, em São Paulo, tendem a ser centrípetas.
O favelado é uma espécie de estrategista do espaço. Se possível, ele estaria na Praça da Sé; se não estão na Sé, os camelôs estarão por volta do centro histórico, defendendo sua alimentação e de seus filhos. Então, o favelado, o migrante, é periférico e assim centrípeto em relação ao corpo urbano total da cidade. Esse processo precisa ser entendido, pois há uma metrópole interna e uma metrópole intermediária – na expressão de um grande urbanista de São Paulo, Cândido Malta Campos – e depois uma metrópole externa, extremamente grande, em um processo inevitável de crescimento. A avenida Paulista, os terraços, os rios, os bairros carentes, tudo isso forma um complexo diverso. Um traçado social e cultural daquela avenida, que representa o máximo de mundialização no território brasileiro, e o da favela, incrustada no bairro carente – que é a mais desesperante que outras mais próximas da zona subcentral na metrópole intermediária, e que ganham com o descarte do mundo consumista -, evidenciam problemas muitos sérios a avaliar nesse contexto da estrutura metropolitana.
Em função de tudo isso, surgiu no caso das tipologias do espaço de Kayser, aquele espaço que chamou de autodesenvolvido, quer dizer, espaços que ao sabor dos ciclos econômicos rentáveis puderam se desenvolver com uma certa autonomia. Hoje, a expectativa do mundo inteiro é que haja cidades com uma certa sustentabilidade. Evidentemente as grandes metrópoles estão com muitos problemas, mas há tempo ainda para evitar que as cidades pequenas e médias cresçam indefinidamente, saltando para as zonas rurais, conurbando-se – integrando-se em processo de urbanização que não tem fim dentro do espaço. Isso é um sério problema. O Estado de São Paulo, no futuro (e há diversos níveis de profundidade do futuro), do ponto de vista da ecologia e da ocupação humana dos espaços, se não houver retenção relativa desses núcleos (1.500 núcleos de todos os tamanhos), não haverá, daqui a 500 anos, espaços agrários capazes de produzir alimentos para a população cada vez mais volumosas.
Esse é um problema fundamental para o futuro, pois é evidente que, na medida em que faltarem espaços agrários, terá de se interferir nos espaços de solos mais pobres, nos espaços que deveriam ter o máximo de biodiversidade e o mínimo de predação. Esse problema, com diferentes profundidades do futuro, serve para que autoridades nunca falem do futuro de um modo ocasional. O futuro da economia, em minha época de estudante, era pensado em qüinqüênio – cinco anos para dosar a economia – depois passou para três anos, mais tarde para três meses, para duas semanas, uma semana; e agora se pensa a economia em função da manhã, da tarde e das bolsas. Temos de saber que o tempo dos economistas é um, mas o tempo do ecologista, de quem pensa integradamente os usos diferentes do espaço tem de ser dosado, pois existem os níveis de profundidade: 100 anos, 500 anos, 10 mil anos – as últimas mudanças climáticas que interessaram a modificação dos espaços ecológicos se deu entre 23 mil e 12 mil anos atrás. Quando o clima esfriou na última glaciação, em alguns lugares, de repente, em função desse resfriamento aliado a uma secura (que ninguém entendia no meu tempo e colaboramos para esse entendimento), a corrente fria que vem do sul subiu até a Bahia e não deixava entrar umidade para o Continente. O que estava entre uma chapada e outra, entre um maciço antigo e outro, ficou seco – corredores de secura anastomosados dentro do território brasileiro. Na medida que a secura chegou, as caatingas se estenderam, os cerrados ficaram mais acantonados na parte do altiplano e, na Amazônia, houve uma fragmentação relativa da tropicalidade. À medida que as florestas se reduziram, a fauna de sombra – a fauna de meio da floresta – se concentrou, e houve a formação de redutos. Eles sofreram um processo evolutivo e acrescentaram-se espécies às espécies já existentes. Houve, assim, o pano de fundo geral de espécie – com espécies novas e outras subespécies – que, depois da tropicalização, se estenderam por áreas bastante desiguais.
Enfim, o Brasil já teve uma grande projeção nas regiões semi-áridas do tipo que conhecemos no Nordeste e, se a quisermos saber como foi, basta olhar aqueles setores: todos têm serras úmidas, com florestas biodiversas, brejos de pé de serra e encostas de serras com florestas, e o pano de fundo geral é a caatinga com vários tipos (caatinga arbórea arbustiva, arbustiva arbórea, agrestes etc). Mas atenção, podemos dizer que haverá uma certa normalidade relativa entre os 12.700 e mais alguns milênios e, de repente, mudanças climáticas novas poderão ocorrer e muita coisa pode acontecer.
Posso conservar 100 ou 200 produtos em Senagens e órgãos parecidos, mas as biodiversidades vão flutuar, e acontece que muitas daquelas áreas de redutos e de florestas já desapareceram.
O entendimento desses processos, que parecem indiretos, servem para se entender que o mundo urbano vai sofrer mais se houver a extensividade de condições diferentes das de hoje, eliminando a possibilidade de produtividade rentável para o país – em termos de alimentos, de comércio internacional. Estaremos numa situação muito ruim no futuro, e grandes países do mundo estarão talvez ainda pior do que nós. A apreciação do professor Kayser sobre as tipologias das cidades nos interessa muito. Ele tem um outro tipo final, que é a região de especulação agrária. São regiões em que um produto monopoliza todos os outros. Tal produto tem interesse econômico e social, sobretudo por sua capacidade de gerar recursos externos, e se estende muito rapidamente por grandes espaços, eliminando grandes setores das áreas naturais. Foi o café no Estado de São Paulo, a cana-de-açúcar na zona da mata nordestina, e foi o cacau no sul da Bahia – com menos gravidade porque o cacau era colocado na sombra da mata e isso facilitou um pouco sua preservação, que hoje já mudou muito. Mas nessas regiões de especulação agrária existe um problema sério, pois tudo o que pode ser aproveitado no terreno é destinado ao produto-chave da economia regional. A soja, no momento, em várias partes do oeste de Santa Catarina, Oeste do Rio Grande do Sul etc, abrangeu grandes espaços que conheci quando jovem pesquisador de campo. Eram enormes áreas de florestas subtropicais com araucárias emergentes -lindas e poderosas. E de repente isso tudo foi cortado para se estender o espaço – chamado de especulação agrária – de importância econômica social para o país. Mas houve fragmentação, e só as cidades cresceram. É uma beleza chegar numa cidade dessa zona – que teve esse caráter de depredação e encontrar Cascavel, Ponta Grossa e outras que têm um grau de modernidade e nível de infra-estrutura não muito fácil de se encontrar.
Mas passemos às conclusões.
Os grandes problemas que estamos enfrentando envolvem em primeiro lugar a conurbação e emendação de cidades e o cantonamento de espaços. Em segundo lugar, a especulação desesperada do espaço – e os especuladores são insensíveis à pobreza, à ascensão das camadas pobres para, pelo menos, um nível de classe média, e usam os espaços de todas as maneiras possíveis. Basta dizer que a diferença entre o mundo rural e o mundo urbano é que, no rural, se medem os espaços pela necessidade da produtividade agrícola ou agrária (por hectares, agora e, no passado, por alqueires) e, na cidade, se mede por metro quadrado – e é por metro quadrado dentro de cada subsetor de diferentes bairros, uns muito ricos outros muito pobres. As pessoas são obrigadas a adquirir o seu espaço com grandes dificuldades. E quem chega lá do sertão do Nordeste no período de seca não encontra seu pequeno espaço e tem de se amoldar às circunstâncias: fica um pouco nas casas de parentes, ou perde forças para procurar o seu espaço, ou invade espaços mal-administrados pelo poder público ou particulares – é a lei da sobrevivência. Assim, de repente, se encontra as pessoas dormindo embaixo da arcada da Faculdade de Direito de São Paulo, embrulhadas naqueles cobertores que nem se fabrica mais hoje, ou então envolvidas em pedaços de papelão.
Assim vai se conformando o problema da grande desigualdade social que existe exatamente nas maiores cidades, aquelas que são mundializadas, segundo a apologia da globalização – uma estratégia do Primeiro Mundo para dominar todos os países do Terceiro Mundo. Na época em que o colonialismo estava em todas as partes e a Europa controlava o mundo, existiam três tipos de colônia: Colônia de Povoamento, Colônia Estratégica (Suez, Panamá, o Saara) e Colônia de Enquadramento. A Índia, por exemplo, era uma Colônia de Enquadramento burocrático e militar, porque os ingleses não iriam povoar um lugar extremamente povoado com grandes e antigas tradições. E agora, o que eles querem para nós? Querem que sejamos um tipo de Colônia de
Enquadramento Estratégico para eles, porque seria um enquadramento exclusivamente econômico e financeiro. É isso que está acontecendo, e as elites brasileiras colaboram.
Alguns ganharam muito com a verticalização dos prédios, ainda que ninguém more neles e que muitos apartamentos sejam adquiridos para patrimônio de tipo especulativo. O dinheiro vai para o exterior por diversos mecanismos e o Brasil não tem recursos para investimentos. Existe uma desindustrialização na cidade de São Paulo e o comércio aumenta. A sedução das grandes cidades também adquire fóruns extraordinários, desde a criancinha, moços, pessoas de meia idade até os idosos. A sedução de uma cidade já era importante porque, diferentemente dos campos, ela tinha o dia e a noite. A noite do lazer no passado, dos cinemas e, agora, os shoppings centers; é a geração dos shoppings, que seduzem as pessoas e vão criando uma outra mentalidade. O cineminha não existe mais; existe, agora, o medo da violência – assunto que exige um tratamento especializado. Hoje as cidades têm seus cinemas dentro dos shoppings e seu comércio mais variado e tem, também, a potencialidade criminosa de alguém que – desesperado – chega numa saleta de cinema e consegue atirar em várias pessoas.
Para lhes deixar uma mensagem final, digo que estou desesperado com a vida urbana, especialmente a vida dos pobres nas grandes cidades. Um dia ouvi uma menina pequenina dizendo para a sua mãe isoladamente: "Mãe, mas nós não temos nada enquanto outros têm tudo"! Isso não é de fazer chorar?
Aziz Ab'Saber é geógrafo e presidente de honra da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. Este texto é fruto de sua palestra na Conferência das Cidades, realizada em dezembro de 1999 na Câmara dos Deputados, Brasília.
EDIÇÃO 56, FEV/MAR/ABR, 2000, PÁGINAS 47, 48, 49, 50, 51