Qual a saída?
Economia de mercado, sim; sociedade de mercado, não – proclamaram em Paris os delegados do XXI Congresso da Internacional Socialista, em novembro de 1999. Economia de mercado, sim, sociedade de mercado, não – ecoaram, pela voz do primeiro ministro britânico Tony Blair, os chefes de Estado "de esquerda" reunidos em Florença, Itália, também em novembro, para discutir a chamada Terceira Via, e apresentá-la como alternativa para os impasses do neoliberalismo.
Distante dali, quase do outro lado do mundo, também em novembro, o bloco dos prejudicados pelo domínio global do capitalismo financeiro ocupou as ruas de Seattle, nos EUA, denunciando a primazia do mercado, na economia e na sociedade, que oprime trabalhadores, agricultores, pequenos empresários, nações e povos. Foi uma semana inteira de protestos nas ruas daquele rico porto norte-americano, com a participação de centenas de sindicatos e organizações da sociedade civil, mobilizando mais de 50 mil manifestantes contra a Organização Mundial do Comércio e a globalização.
Onde está a saída? Esta é a pergunta que percorre os salões de Florença e Paris e ecoou nas ruas de Seattle. Qual é a saída? É a pergunta que fizeram, em Florença, Bill Clinton, Tony Blair, Lionel Jospin, Gerhard Schroder, Massimo D' Alema, Antonio Guterres, com a presença subalterna de Fernando Henrique Cardoso – o bloco dos chamados sete governos de "esquerda" do mundo. Os salões apontam para um neoliberalismo açucarado, apelidado de Terceira Via (ver artigo nesta edição). O britânico Blair e o francês Jospin são os representantes mais significativos, e contraditórios, da nova tendência. Blair defendeu a combinação do "dinamismo econômico com a justiça social", dizendo que seu "novo trabalhismo significa empresa e justiça", e alertando: "não sejamos os guardiães de dogmas superados diante da globalização" (como escreveu em uma carta aos franceses, publicada em Paris, por ocasião do congresso socialista). "Dogmas superados" que significam, sem dúvida, a tradição de luta anticapitalista e pelo progresso social dos trabalhadores.
Jospin, por sua vez, veterano social-democrata, recusa-se a aceitar a Terceira Via como meio caminho entre a social democracia e o neoliberalismo, mas reconhece a "superioridade do mercado sobre a economia planificada", e diz que o "mercado é um instrumento precioso e eficiente" que "deve estar a serviço da sociedade". Um eufemismo através do qual Jospin afirma, na verdade, a superioridade do capitalismo (o "mercado") sobre o socialismo (a "economia planificada"), embora pretenda um capitalismo com suas chagas cobertas com esparadrapo.
Blair e Jospin refletem os impasses do fracasso neoliberal e a ambigüidade das saídas que os terceiristas e social-democratas procuram. Fernando Henrique Cardoso tem uma posição curiosa nesse embate.
Foi recebido em Florença – diz-se que convocado para explicar-se sobre a Amazônia – entre os grandes do mundo. Em Paris, porém, não foi aceito no congresso social-democrata porque, como explicou o presidente da Internacional Socialista, o francês Pierre Maurroy, ele dirige o Brasil "à direita, governando com base em uma aliança com liberais e conservadores, enquanto as forças de esquerda próximas da Internacional Socialista, PT e PDT, encontram-se na oposição."
O resultado principal da presença de Fernando Henrique Cardoso no palco de Florença foi a foto onde apareceu entre os principais governantes do mundo, instrumento para sua propaganda política no Brasil.
Aqui, no final do ano, o debate sobre as alternativas à crise também foi intenso. Christovam Buarque – ex-governador do Distrito Federal – proclamou que as teses de Karl Marx já não servem para resolver os problemas atuais; opinião semelhante à de José Genoíno (Deputado Federal, PT-SP), que descartou não só o marxismo (disse que Thomas Jefferson, o teórico liberal da independência dos EUA, é superior a Karl Marx) mas também o socialismo. Outra vertente do debate é representada pela revisão que Jacob Gorender faz no livro Marxismo sem utopia, em que o papel revolucionário da classe operária é descartado em nome de um bloco de trabalhadores intelectuais assalariados a quem caberia, diz ele, promover a transição para o socialismo, e em que também, mais uma vez, se pretende atualizar o pensamento de Marx (ver artigo sobre o tema nesta edição).
No governo e nas elites, o debate sobre as saídas surge nas propostas que, desde o começo do ano, tem aparecido sob o rótulo de neonacionalistas. Andrea Calabi, que ainda era o presidente do BNDES, foi a primeira personagem do alto escalão do governo a defender uma reorientação política nesse rumo. Não era, obviamente, o nacionalismo popular e avançado, que freqüenta as ruas e os movimentos de oposição a Fernando Henrique e seu projeto neoliberal, mas uma atitude de defesa de grandes empresários nacionais ameaçados pela presença estrangeira maciça na economia. Nessa discussão, Fernando Henrique reafirmou o rumo principal seguido por seu governo quando declarou que "manteremos os braços abertos" ao capital estrangeiro. O próprio subsecretário de Estado para Assuntos Políticos dos EUA, Thomaz Pickering, não se furtou a dar seu palpite no debate, alertando que o nacionalismo não pode se transformar em protecionismo, e que o nacionalismo só é positivo quando é patriotismo. Pode se adivinhar que, para este alto funcionário do governo dos EUA que se acha no direito de intervir em assuntos internos de nações soberanas, o nacionalismo bom é aquele que exalta as virtudes da terra onde se nasceu, sem criar dificuldades para os interesses dos países ricos através da defesa dos interesses econômicos e políticos que se contraponham a seu projeto de domínio global. E que conta, nessa tarefa, com a ampla e irrestrita ajuda do governo de Fernando Henrique Cardoso.
Neste momento em que se debatem saídas para "salvar" o capitalismo, a comemoração dos 130 anos do nascimento de Vladimir I. Lênin pode ser uma inspiração. Figura central no século XX, fundador do primeiro Estado proletário da história, ele participou diretamente da primeira construção de uma alternativa concreta para o capitalismo, uma história contraditória e complexa que, apesar das vicissitudes que levaram à sua débàcle após 1956 e, particularmente, na década de 1980, é grávida de ensinamentos que ainda não foram completamente extraídos.
A lembrança de Lênin, neste momento, é também a da alternativa socialista, revolucionária, como a única capaz de superar os impasses e malefícios que o capitalismo impõe aos trabalhadores e aos povos. E da criação dos instrumentos práticos e teóricos capazes de levar essa tarefa histórica adiante.
A avaliação da herança deixada por Lênin não é pacífica nem consensual. Avultam-se, no campo da esquerda, os críticos de seu pensamento e ação. A pretexto de democratizar as organizações políticas dos trabalhadores, fala-se muito, hoje em dia, em superar essa herança, em particular o Partido e o Estado chamados leninistas. Isto é, a crítica aponta diretamente para aquilo que é o centro da contribuição mais relevante do líder bolchevique para o movimento revolucionário, a elaboração dos instrumentos para dirigir a revolução (o Partido) e a construção do socialismo no período de transição (o Estado proletário). A alternativa que os críticos propõem é a adoção das instituições democrático-burguesas, seja em relação ao Partido (onde o democratismo se traduz na eliminação do centralismo democrático e na defesa da convivência de diferentes facções em uma mesma organização) ou em relação ao Estado (com seu Parlamento burguês como critério para definição de seu caráter democrático). Os críticos não disfarçam, assim, sua rendição à democracia burguesa e o abandono das posições revolucionárias capazes de promover transformações profundas na sociedade e na vida.
No momento em que se discutem as alternativas para a crise do neoliberalismo, a reafirmação da herança leninista é, mais do que tudo, a reafirmação do caminho socialista, revolucionário, contra as mazelas do capitalismo.
Comissão Editorial.
EDIÇÃO 56, FEV/MAR/ABR, 2000, PÁGINAS 3, 4, 5