A eleição de outubro reacende o debate das soluções para a estarrecedora crise vivida pela cidade de São Paulo. Apesar do senso comum, tais soluções não são socialmente neutras. Impõe-se aquilatá-Ias sob a ótica das maiorias sociais, perscrutar mais a fundo sua origem e apontar balizas que permitam retomar o desenvolvimento para São Paulo e norteiem soluções mais favoráveis a esses setores. As forças de compromisso democrático e popular terão enorme responsabilidade em abrir perspectivas novas para a cidade.

São Paulo – crise social e luta popular

De 97 a 99, a crise social que já atingia a capital tomou-se mais grave, mais profunda e ampla. O desemprego é hoje o principal problema, atingindo 20% da população trabalhadora da Grande São Paulo – cerca de 1,8 milhões de pessoas -, e é a causa primária dos demais dramas sociais: a desagregação familiar, o abandono de crianças, a fome, prostituição e violência. Acompanha-se o drama cotidiano de milhares de pessoas que madrugam a pé pela cidade buscando qualquer tipo de ocupação enquanto outros milhares gravitam nas subocupações pelas calçadas da cidade. É o desalento, quando não o desespero, que se vê estampado nos rostos de trabalhadores e jovens impedidos de obter meios de sobrevivência.

A falta de moradia ou a moradia precária nos cortiços, favelas e ocupações na periferia é outra marca predominante das condições de vida na cidade. Frente à gritante insuficiência dos programas habitacionais do governo, 3,5 milhões de pessoas vão se amontoando em construções irregulares, as áreas de mananciais e de risco vão sendo ocupadas e, quando nada mais resta, são os albergues, as calçadas e os viadutos o abrigo dos sem-teto.

O sistema público de saúde na metrópole beira o descalabro. Faltam medicamentos, os centros de saúde e os equipamentos estão sucateados, milhares de leitos desativados, doenças como a dengue reaparecem e nem mesmo um leito para dar à luz está assegurado às mulheres. O PAS revelou-se um fracasso administrativo, tendo levado de roldão a instituição do SUS e sua municipalização, e consumido cerca de 3 bilhões de reais desde que foi criado.

A educação pública trilha uma marcha regressiva. Estima-se em 50 mil as crianças em idade escolar que estão fora da escola. As escolas estão desaparelhadas, a falta de segurança é total. As creches e a educação infantil estão sendo privatizadas ou dependem crescentemente da sustentação dos pais. A prefeitura descumpre acintosamente a obrigação de aplicar 30% do orçamento na educação.
A violência explode por todos os cantos da cidade sob a forma de assaltos, seqüestros, homicídios e chacinas. As principais vítimas têm sido os jovens, até mesmo dentro da sala de aula, e os negros. A falta de educação, de emprego, de acesso ao esporte, à cultura e ao lazer e, principalmente, de espaços democráticos de participação social e política, empurra contingentes cada vez maiores da juventude para a marginalidade, a prostituição e as drogas.

O sucateamento da estrutura urbana, a poluição ambiental, visual e sonora, irrefreadas, vêm tomando a cidade inabitável para contingentes expressivos da população. Neste quadro é gritante o fracasso ou mesmo ausência do poder público, que não consegue enfrentar nem as urgências sociais, muito menos os problemas urbanos estruturais de médio e longo prazo. O flagelo anual das enchentes é emblemático disso.

A prefeitura de São Paulo acumula uma dívida equivalente a uma vez e meia o orçamento anual da cidade. A negociação dela com a União comprometerá parcela de 13 % do orçamento pelas próximas décadas, além de comprometer irresponsavelmente o patrimônio público, como é o caso da tentativa de privatização do saneamento básico e serviço de águas. Com políticas desastrosas, a administração conduziu o sistema de transporte à crise e ao impasse, o serviço de coleta de lixo e limpeza pública em antro de corrupção, e vem tentando impor um arremedo de Plano Diretor que, na verdade, é um plano de ação da especulação imobiliária. A própria estrutura de fiscalização municipal, revela-se agora, está comprometida com extorsão e falcatruas.

A democracia na cidade é terra arrasada. As administrações regionais estão "fechadas ao público", os conselhos populares praticamente não mais existem, a não ser em casos isolados pela persistência dos movimentos sociais. A Câmara Municipal está paralisada por um sem número de denúncias e processos criminais que envolvem vereadores da base governista. A população não tem onde nem com quem reclamar ou reivindicar seus direitos de cidadãos.

De onde provém a crise?

O quadro vivido é produto em primeiro lugar do que podemos chamar "as duas décadas perdidas", que marcam a vida brasileira. As desigualdades sociais são muito antigas em nosso país, mas se aprofundaram a partir dos anos 80, invertendo a mobilidade social ascendente característica da cidade. Primeiro, a crise da dívida a partir de 82, que levou ao quadro hiperinflacionário e recessivo. Depois, nos anos 90, os descaminhos da política neoliberal de arrocho fiscal agravou a crise dos estados e municípios, com pesados reflexos sobre nosso Estado. O economicismo estreito e tacanho levou ao impasse o processo de desenvolvimento nacional e produziu um custo social inaceitável. A cidade de São Paulo paga elevado preço por essa opção. Emblemático disso é a existência de (precárias) frentes de trabalho cosmopolitas, antes reservadas a •áreas da seca no Nordeste.

Uma segunda ordem de fatores se relaciona com a estreiteza política e administrativa das elites, seu ranço antipovo, e de um sistema político corrupto que viceja em São Paulo. Desde 83, quando a administração deixou de ser indicação da ditadura, e com a redemocratização, a população pareceu aceitar uma espécie de gangorra, alternando um suposto "governo que faz", com "governo que cuida do social". A gestão democrática 89-93, a par de seu caráter popular, não mais que arranhou a superfície da vida política e institucional da cidade. Afinal, o malufismo acabou por derrubar São Paulo nestes últimos oito anos. Conduziu a um governo completamente sem credibilidade, e a um poder público sucateado. Esse o resultado da resposta conservadora à situação nacional: irresponsabilidade orçamentária, corrupção desenfreada, obras faraônicas combinadas com o completo desmonte da estrutura pública.

Impasses e desafios

Como substrato para a crise, apresenta-se a ordem de fatores relacionados com a mudança dos padrões de acumulação, com suas pressões próprias no plano econômico, político, demográfico, geográfico, cultural, etc. São Paulo constitui o que se chama uma metrópole global, vivendo problemas comuns a outros grandes centros metropolitanos, processo marcadamente contraditório.

São Paulo viveu impulso descentralizador da indústria e crescimento vertiginoso dos serviços. A tendência apregoada atualmente é a de tornar-se um centro financeiro internacional e sede das grandes companhias mundiais, elo da rede de informação e conhecimento que interliga a economia regional e a global. Com base nisso se retomariam investimentos, reviver-se-ia o centro, se criariam serviços urbanos eficientes em ambiente agradável, se multiplicariam os serviços especializados, se estimularia o turismo de negócios e os centros de entretenimentos e compras. O pólo paulistano estaria assim mantendo sua primazia nacional nesta transição entre o período nacional-desenvolvimentista e o da globalização.

É ilusório considerar que se prepara por esse rumo um novo ciclo de desenvolvimento auto-sustentado, no bojo do qual São Paulo voltaria a encontrar caminhos de afirmação e pujança. A lógica mercantilizante conduz, ao invés do "renascimento" apregoado por FHC, a uma espécie de decadência em câmara lenta para a vida da cidade e sua população. Tal processo não conduzirá espontaneamente à regeneração de São Paulo nem é socialmente neutro. A "dinâmica global" não tem potencial estruturante. Tal como se apresenta hoje, só tem agravado o apartheid social: as elites e classes médias abastadas se entrincheiram em condomínios fechados de alta segurança, em carros blindados, em centros de negócios e entretenimento sofisticados, de onde só saem para os aeroportos; à massa dos milhões de trabalhadores e desempregados paulistanos é reservado o martírio do transporte ruim e do trânsito insano, a moradia em periferias cada vez mais degradadas e violentas, a disputa por uma vaga na escola ou um posto de trabalho, de baixa qualificação e remuneração.

Entretanto, e esse é o primeiro desafio com que se defronta o bloco popular, não pode bastar às forças populares um projeto de mera "inversão de prioridades sociais", na realidade orçamentária de hoje, se isso não estiver acoplado ao esforço por viabilizar potencialidades econômicas que desenvolvam a cidade. É verdade que se abre uma série de novas possibilidades e vocações que São Paulo pode aproveitar – o novo papel do setor de serviços, o potencial na área tecnológica, cultural e acadêmica, a infraestrutura já instalada, etc. O que cabe discutir é que este caminho só terá êxito nos marcos de um autêntico projeto de desenvolvimento nacional e soberano e se colocar como questão fundamental a elevação da qualidade de vida de todos os cidadãos, a recuperação dos espaços públicos, a democratização do poder público, o investimento maciço de recursos nos bairros populares e em programas de geração de renda e empregos. Por isso, as políticas sociais compensatórias (renda mínima associada ao plano de educação, banco do povo, além das propostas históricas do movimento de educação e saúde) só terão papel se articuladas ao desenvolvimento de uma economia política de regeneração para aproveitar inventivamente novas oportunidades, direcionar vocações econômicas, preservar fatores de diferenciação, estimulando a retomada de desenvolvimento equilibrado para a cidade.

Só o bloco popular pode encabeçar um projeto desse tipo hoje em São Paulo. Para tanto, ele precisa superar um segundo desafio, articulado ao anterior. Trata-se dos constrangimentos orçamentários criados pela política do governo federal, desde o FSE/FEF, consolidados com o DRU e a Lei de Responsabilidade Fiscal. O bloco popular não pode advogar o voluntarismo que julga possível a irresponsabilidade orçamentária pura e simples. Mas tampouco pode prostrar-se numa espécie de racionalismo minimalista ou então de administração da crise, humanizando-a com políticas sociais compensatórias. Estes elementos precisarão se combinar com uma postura firme do poder municipal, que pode necessitar rever os acordos de pagamento das dívidas, mobilizando a opinião pública e articulando as forças dos novos prefeitos a ser eleitos em outubro no Estado, no rumo de reforçar uma alternativa antineoliberal global para o país.

Por onde começar?

É preciso recivilizar São Paulo, para tomá-la de fato uma cidade boa para se viver e conviver, trabalhar e divertir-se, integrando as maiorias sociais às oportunidades que ela pode oferecer, saneando e preservando o meio ambiente. Isso é tarefa para mais de uma década. Exige largueza de perspectivas para criar um bloco político amplo e coeso, compromissado com as camadas populares, aliado a amplos setores médios interessados nos destinos da cidade, com um projeto de curto, médio e longo prazo. O eixo é democratizar e investir na qualidade de vida como fator de promoção de desenvolvimento social e humano, o que por si mesmo pressupõe retomar o desenvolvimento econômico na cidade.

As soluções começam pela política. Pela recuperação da política como espaço privilegiado do conflito social, mediado por um poder público forte e por intensa participação da população, aí incluída a iniciativa privada. Em uma palavra, pela profunda democratização do poder público e sua descentralização.

É preciso também encontrar novas soluções para a integração dos esforços públicos. Problemas de uma megalópole como São Paulo não serão resolvidos apenas na esfera do município, como é notório na esfera do transporte, saúde e habitação entre outros. Aliás, não se pode esquecer que a crise, tendo por centro as administrações municipais, contaram com a omissão ativa do governo estadual e federal. Por isso, é preciso integrar soluções tanto em nível vertical (União, Estado e Município interagindo na realidade da maior área metropolitana do Hemisfério Sul), quanto horizontal (saúde, educação, saneamento, habitação, etc), numa nova filosofia de administração.

Isso exigirá modificar a institucionalidade vigente, redefinir funções administrativas, esferas de responsabilidade, partilha da dotação orçamentária, etc. Portanto, não é medida a ser implantada de afogadilho. Deveremos discuti-Ia amplamente com a população organizada.

Democratização

A descentralização da administração visa promover intensa participação social na solução dos problemas, comprometer amplos setores com a identificação-solução-controle dos problemas da cidade, fundar um novo padrão de relacionamento da população com a esfera pública. A implantação de subprefeituras e de conselhos distritais eleitos, amplos e participativos, é o eixo da proposta. O orçamento participativo integra esse mesmo esforço. Afinal, o que se quer reconhecer é que nenhum problema de São Paulo pode ser equacionado mantida a atual impermeabilidade à participação, que se limita à eleição de um prefeito e 55 vereadores.

A profunda democratização anda de mãos dadas com o fortalecimento (diríamos: imposição real) do poder público em toda a acepção da palavra. Notadamente nos setores da saúde, educação, transporte, habitação e urbanização em geral, o poder público é insubstituível para estruturar, normatizar, fiscalizar. É fator de desenvolvimento: nenhuma ordem de mercado o substituirá com vantagens se se quer de fato regenerar São Paulo.

É preciso considerar a hipótese de que o bloco popular poderá abrir um novo ciclo político duradouro na cidade. Isso nos exige um projeto estratégico, construído passo a passo segundo a correlação de forças e nossa plataforma. É o caminho para construir uma hegemonia de forças avançadas na cidade.
Os que hoje estão dispersos no movimento social serão postos em tensão para perseguir esses objetivos. Há uma enorme massa crítica humana para dar sustentação a esse esforço, em todas as áreas técnicas, que tirada do limbo a que foi relegada trará a São Paulo, certamente, novas perspectivas.

Nesse percurso, o bloco popular não deve perder de vista que conquistar a administração não pode ser um fim em si mesmo, nem propriamente um instrumento de mera acumulação de forças eleitoral, para todos aqueles que, como nós, seguem reivindicando um ideário socialista, renovado. Será sim um instrumento a mais de conscientização e mobilização do povo, de sua educação política e aglutinação, pela experiência própria, para o enfrentamento histórico da grande onda regressiva do neoliberalismo e abrir caminho a um novo projeto nacional, cujos eixos são a defesa da soberania, da democracia e do trabalho.

Walter Sorrentino, médico, e Nádia Campeão, engenheira agrônoma, são dirigentes do PCdoB-SP

EDIÇÃO 56, FEV/MAR/ABR, 2000, PÁGINAS 52, 53, 54, 55