Conservar a Esperança – Entrevista com Henri Alleg
O senhor escreveu recentemente um livro, O grande salto atrás, (1) de reportagem e análise sobre a Rússia atual. Quais as causas mais profundas da queda do socialismo?
HenriAlleg – Pode se falar em enormes dificuldades encontradas na construção da União Soviética, primeiramente, das que vinham do exterior, em seguida, das questões internas – embora estejam dialeticamente ligadas.
Não é inútil lembrar – mesmo que se tratem de coisas que nós, revolucionários, conhecemos, mas que estão hoje esquecidas ou passadas para segundo plano – da situação extremamente difícil em que surgiu a União Soviética. Mal a revolução triunfara, houve uma verdadeira uuião de todos os países capitalistas para esmagá-Ia. Viu-se, então, a Europa capitalista inteira – com o apoio e a participação dos Estados Unidos e do Japão – fazer guerra à Revolução socialista. Evidentemente, para o jovem país que se erguia, criou-se uma situação terrível do ponto de vista econômico, já que o que existia e havia sido deixado pelo regime czarista foi destruído pelos exércitos "brancos", ou melhor, os exércitos estrangeiros. No plano político, isso reforçou a idéia de que era uma batalha fatal entre o capitalismo, que queria estrangular a revolução, e o socialismo. Conseqüentemente, era preciso para os comunistas solidificar o máximo de forças para poder continuar a revolução. A possibilidade de vencer e de construir o socialismo dividiu as pessoas dentro do próprio Comitê Central do Partido. Algumas diziam ser possível construir o socialismo num único país, e outros, particularmente os trotsquistas, diziam não sê-lo, mesmo num país tão grande quanto o antigo Império russo.
É sempre necessário lembrar que nem por um único dia a União Soviética pôde ter relações "normais" com os outros países não socialistas. Assim que a I Guerra Mundial terminou, começou a guerra e o bloqueio contra a jovem revolução que nascia. Foi preciso construir e fazer tudo num país quase destruído, sem quadros, sem recursos intelectuais. Uma tarefa gigantesca, que muitos imaginaram impossível. O escritor inglês George Wells, especialista em ficção que teve o privilégio de discutir com Lênin, ficou impressionado com o dirigente bolchevique e opinou que Lênin era um sonhador por pensar em eletrificar, fazer estradas, ferrovias num país atrasado, de analfabetos … Fazer o que Lênin acabara de dizer, mesmo a Wells, uma pessoa aberta às idéias, parecia algo tão descomunal! Os governos dos outros países também não acreditavam. Construir o socialismo num país tão atrasado e ladeado de inimigos parecia uma aposta impossível de ser sustentada. É preciso pensar nisso. A direção do Partido Comunista da URSS, com homens como Lênin, em condições de terríveis adversidades começou a criar as bases, primeiramente materiais e de defesa do país, para a construção da nova sociedade.
Assim que esta começava a ver o dia, pois finalmente se diz que a guerra civil terminou em 1922/23 – o que não é verdade, pois lutou-se até 1935/ 36 com os brancos na Ásia -, num espaço de tempo exíguo de menos de 20 anos, constituíram um país capaz de derrotar o mais poderoso exército de todos os tempos, o exército hitleriano. Isso teve enorme peso nos acontecimentos seguintes. A II Guerra Mundial, mesmo venci da pela União Soviética, gerou milhares de cidades destruídas e infinitas perdas materiais à nova sociedade. Aproximadamente 3/4 dos quadros se perdeu, haviam sido enviadas ao front da guerra as pessoas formadas – nessa época a palavra-de-ordem era "os comunistas na primeira fileira". Ideológica, política e materialmente, tudo tinha sido direcionado à guerra – e a União Soviética saiu dessa guerra enfraquecida materialmente.
No plano ideológico, as questões relacionadas com o desenvolvimento da União Soviética e das idéias comunistas no mundo tomaram certo impulso após a II Guerra. Parecia que o socialismo tinha vencido o lado mais reacionário do capitalismo. E o fato de a União Soviética existir estimulava em todos os países oprimidos pelo colonialismo-imperialismo o movimento de libertação. É claro que a revolução chinesa também desempenhou um papel extraordinariamente importante no quadro mundial.
Mas, ao mesmo tempo, esse desenvolvimento e essa força no exterior era causa de dificuldades e de enfraquecimento interno da União Soviética, porque as somas para ajudar os outros povos não iam para a construção de coisas dentro do próprio país. Houve problemas internos que se acumularam sobre as dificuldades criadas pelo mundo capitalista exterior, com a guerra fria, com a idéia de que poderia haver uma III guerra mundial contra a União Soviética. Jamais, mesmo até o último momento, o Estado Soviético esteve completamente tranqüilo, sempre houve a pressão e ameaça dos países imperialistas.
Há também outras razões para a queda da União Soviética. A necessidade de armamento e de defesa impediu ao regime dar tudo o que o socialismo poderia dar ao seu povo. Os norte-americanos gastavam bilhões de dólares em armamentos, era preciso que a União Soviética também gastasse o suficiente para ter a possibilidade de se defender. Até o período de Kruschev essas questões não eram muito perceptíveis internamente. Havia dificuldades, lutava-se, não era tudo como se queria, mas o Partido Comunista tinha a confiança das massas, e pensava-se que se estava avançando. Em seguida, as coisas começaram a mudar e os que iam à União Soviética percebiam, mas não tiravam conclusões; pensavam que era uma fase que passaria. Falando com os soviéticos, os comunistas, percebíamos haver cada vez mais uma distância entre a massa e o Partido – e mesmo dentro do Partido, entre os que dirigiam e os militantes. A democracia no interior do Partido, a possibilidade de participação dos membros em fazer a política, foi pouco a pouco esvaziada. Parece-me, que, em um momento anterior, em circunstâncias históricas totalmente particulares, o Partido era dirigido de maneira quase militar e, pouco a pouco, mesmo em circunstâncias que teriam permitido um alargamento da discussão política, isso não foi revertido. Dentro do Partido, uma das razões fundamentais do retrocesso foi a perda da democracia no sentido verdadeiramente comunista do termo, isto é, chegou-se a uma situação em que se esperava tudo do alto, da direção. Quando a situação piorou, pessoas como Gorbachev tomaram uma direção contrária aos interesses do Partido e do socialismo, e mesmo as pessoas que se opunham não diziam nada, pois esperavam as diretivas do alto. Mas como é possível que tenhamos chegado a uma situação em que pessoas que não estavam absolutamente interessadas na construção do socialismo assumiram postos de direção? No Ocidente, historiadores e políticos anticomunistas que condenam irrestritamente a URSS pregaram a idéia de que se o regime soviético desmoronou, isso se deu de dentro para fora, porque todo o povo soviético queria se livrar desse regime.
Há correntes de opinião e forças políticas que dizem não ter existido socialismo na URSS, que era um regime de monstruosidades, de crimes, que negam todas as vitórias e conquistas do socialismo …
Henri Alleg -Monstruosidade, mesmo, é dizer tal coisa. Quaisquer que tenham sido os defeitos profundos do sistema, não podemos negar suas realizações. Segundo esses "especialistas", o povo soviético não queria mais o socialismo, queria outro regime; e os 1 00 povos da União Soviética, não apenas o russo, queriam sair dessa União Soviética e ser independentes. Mas as coisas não são tão simples. São duas visões completamente falsas. Podemos prová10 com muitos exemplos, mas darei apenas duas referências. Primeiro, quando Gorbachev fez a glasnost e a perestroika, e até mesmo Yeltsin, quando lhes perguntavam o que queriam fazer, sempre respondiam: não queremos menos socialismo, queremos que o socialismo seja renovado. Diziam isso porque sabiam que se fossem confrontar diretamente o povo soviético, a imensa maioria se recusaria a segui-los, com a exceção de um punhado de pessoas. A maioria das pessoas mesmo passivas, sabiam o que o regime soviético, o socialismo, lhes tinha proporcionado. Que eram filhos de camponeses, de analfabetos, e que tinham se tomado um povo avançado. Para mostrar a que ponto a psicologia não é simples, um escritor dissidente que partiu para a Alemanha escreveu a propósito da reação do povo soviético, dos russos, em relação a Stálin, disse: "minha família era de kulaks e minha mãe uma pobre camponesa. Ela sofreu muito: tinha duas vacas e lhe tomaram, a reforma no campo tomou seu pedaço de terra, depois lhe disseram que tinha de ir embora … ". Mas ele disse também que, quando sua mãe morreu, tinha sobre a mesa, ao lado da cama, a foto de Stálin. E dizia, quando lhe falavam do passado: "sim, sofremos muito, mas tenho três filhos e uma filha – um é general, outro cirurgião, e outro é professor. Se não tivesse havido o regime de Stálin, meus filhos seriam camponeses iletrados como o pai, o avô". Conseqüentemente, é absurdo crer que o povo soviético, no seu conjunto, pudesse esquecer isso, causa das referências constantes de Gorbachev à defesa do socialismo.
A segunda, a propósito das nações.
Acredita-se que esses povos – do Cazaquistão, da Bielorússia, do Azerbaijão etc -, em analogia com o colonialismo, conseguiram se libertar. Isso é absolutamente falso também. E a melhor demonstração que podemos fazer é que, quando Yeltsin chegou ao poder, todos os países da antiga União Soviética já tinham tido um referendo, organizado por Gorbachev. A pergunta era: "você quer conservar a União Soviética?", isto é, "você quer conservar o socialismo?". A resposta foi de quase 78 % de Sim, apesar da formidável pressão e campanha feitas pela imprensa ocidental. Apesar de tudo isso, quase 78% votaram contra a dissolução da União Soviética, que foi consumada à maneira dos gangsters num golpe: Yeltsin fez um acordo com o novo presidente da Bielorússia e o da Ucrânia, se encontraram quase clandestinamente numa floresta na Bielorússia – um disse "vou me retirar da União Soviética", os outros também e assim ela foi dissolvida!
Falei do enfraquecimento do Partido, de suas ligações com as massas populares e, no seu interior, do enfraquecimento das ligações entre a direção e a base. Mesmo que isso não se manifestasse abertamente na época de Stálin, creio que já havia diferenças. Desenvolvia-se dentro da União Soviética uma camada que não tinha interesses ligados à consolidação do socialismo, que ficaria melhor em um regime que lhes permitiria adquirir bens e possibilidades maiores que as de um país socialista. Mesmo sendo russos e patriotas, queriam uma parte maior na repartição das riquezas do país. Pouco a pouco, pessoas abandonavam o entusiasmo e devoção própria dos comunistas, isto é, de pensar em todo mundo antes de pensar em si. Na medida em que se abandona o ideal do engajamento comunista e o Partido não faz direito o seu papel, cria-se uma situação em que todas essas pessoas vão se reunir, pouco a pouco, e dizer: "esse regime não nos dá a liberdade de movimento". Portanto, havia uma camada que tinha interesse na derrubada do socialismo. Abriram-se as portas para a recriação ultra-rápida das camadas que podiam se tomar exploradores, e permitiu-se o que um norte-americano chamou de "maior assalto da história".
E qual é a responsabilidade das direções?
Henri Alleg – É evidente que a ditadura do proletariado, absolutamente necessária numa época, deve ter se desviado em certo momento, tomando-se a autoridade de alguns homens – mesmo revolucionários com grandes méritos,
por exemplo, Stálin. A sociedade vivia sob punhos rígidos, e parecia que se não houvesse isso, em certo momento histórico, talvez a União Soviética não se consolidaria. Mas essa situação permitiu a criação de direções nas quais os quadros não eram bem escolhidos. No fim, quando vemos homens como Gorbachev e Yeltsin, membros do Bureau Político percebemos que algo estava errado. Por causa da falta de democracia viva no interior do Partido, os escolhidos muitas vezes o eram por que tinham certas qualidades, por exemplo, de organização – parece que Yeltsin era um excelente organizador. Mas do ponto de vista político e da de-voção revolucionária à causa comunista … O fato das direções não serem realmente direções políticas com pessoas escolhidas e com a confiança da base, e sim pessoas que têm qualidades, digamos, práticas, criou uma situação de fraqueza ideológica e de fraqueza na prática política, o que permitiu esse revertério que parece não ter nenhuma resistência. O Partido tinha tomado a forma de uma direção que parecia poderosa mas que, interiormente, no plano ideológico, estava fragilizado.
Qual sua opinião sobre o papel do XX Congresso do PCUS?
Henri Alleg – Na época, estávamos tão ocupados com nossa própria luta na Argélia – o combate armado e clandestino – que não compreendemos tudo o que continha o famoso Relatório Kruschev no XX Congresso. Depois começamos a refletir sobre essas questões. Primeiramente, sobre o modo leviano como as coisas foram feitas. Mesmo com a revolução socialista vitoriosa, é justo os comunistas indagarem "será que tudo foi feito como deveria?", ainda mais quando há contestações. Se houve coisas ruins, é justo que se discutam os problemas para que os que vêm depois não repitam os erros. Há pessoas hoje que se recusam a fazer a menor crítica a esse período da União Soviética dirigida por Stálin e que, no conjunto, foi vitoriosa a exemplo da luta contra Hitler. A outra posição, infeliz-mente, a de muitos partidos comunistas europeus, alguns se tomaram totalmente social-democratas, começou criticando Stálin e chegou a Lenin, Marx e Engels. No fim das contas, se alinham com posições anticomunistas da burguesia, o que permite fazer a ligação com a social-democracia, que sempre condenou a Revolução Soviética.
Voltando ao relatório de Kruschev, primeiro ele foi extremamente superficial, com coisas ridículas – por exemplo, dizer que Stálin seguia a batalha de Stalingrado por um mapa mundi e que nada entendia de estratégia. Mesmo os inimigos dizem que isso é completamente falso e que ele era um homem prestigioso do ponto de vista da luta armada. É a idéia absurda de reduzir a personalidade de Stálin a nada, quando na verdade tratava-se de uma personalidade extremamente complexa, com aspectos contraditórios, um produto de sua época, com traços de caráter muito duros, e outros, revolucionários. Quando as tropas alemãs invadiram a URSS, ele desempenhou um papel fundamental na mobilização do povo para a luta em defesa da pátria e da revolução. Que em seguida tenha havido coisas ruins, inclusive criminais, isso também é verdade. Mas creio que hoje, 50 anos depois, é preciso que os comunistas tenham uma atitude não epidérmica em relação aos problemas, mas que saibam tirar uma lição, como em relação à Comuna de Paris e às outras revoluções. O essencial é seguir adiante.
Mas o fato é que essas questões dividiram o movimento comunista internacional.
Henri Alleg – Sem dúvida. Formaram-se tendências opostas. Será que alguns estavam totalmente errados e outros tinham toda a razão? Certamente não. Creio que, nessa oposição, hou-ve uma espécie de dialética da polêmica do lado soviético e do lado dos chineses. Todos os erros não estão de um lado ou do outro. No plano ideológico, creio que quando comparo Kruschev em sua atitude em relação à solidariedade do internacionalismo proletário com o que aconteceu depois, com Gorbachev e Yeltsin, é como a noite e o dia. Pois no que nos diz respeito, na Argélia, Kruschev ajudou. Mesmo se havia essa política de coexistência pacífica com os países capitalistas, com a França, Kruschev enviou armas à Argélia. Mas ao mesmo tempo, ele proclamou que "o comunismo estará construído em 1980" e que o Partido não seria mais apenas o da classe operária, mas de todo o povo, que a luta de classes estava terminada na Rússia – orientação seguida depois por Brezhnev. Infelizmente, os acontecimentos posteriores mostraram que as coisas não eram assim. Havia uma orientação, uma opção, que não correspondia a uma visão justa e real.
Há setores do movimento comunista que consideram as orientações emanadas do XX Congresso como a origem de uma transição, de caráter oportunista ou revisionista, que durou cerca de 30 anos e que resultou nesse fenômeno negativo que foi a perestroika de Gorbachev.
Henri Alleg – Sim e não. Sim, porque efetivamente algumas das teses tomavam como certo que o progresso do socialismo, do movimento de libertação nacional, da luta da classe operaria dos países desenvolvidos estava forçosamente avançando. Conseqüentemente, nessa situação a força do socialismo era tal que podia se permitir abrir as portas e não mais ficar nas posições dos princípios de antigamente. Por exemplo, considerou-se que se podia abrir mão da ditadura do proletariado e do papel proeminente do Partido Comunista como partido da classe operária, o que era uma análise falsa. Não, ao mesmo tempo, porque é falso pensar que a partir do XX Congresso tudo na URSS seguia essa linha.
Na atualidade, depois da derrota do socialismo na União Soviética e no Leste europeu, surgiram novas abordagens sobre o conceito de transição do capitalismo ao socialismo. Como você as considera?
Henri Alleg – Na minha opinião essa é a questão mais difícil. Quando estive na China, estava se trabalhando com a idéia de que para reforçar a economia socialista, ainda fraca no mundo, é necessário apelar não apenas às técnicas, mas também, se for possível, às finanças e eventualmente à possibilidade de participar do mercado capitalista. É sedutor, mas será que não é perigoso? Tive oportunidade de discutir com camaradas chineses e lhes perguntei se não achavam que a existência de camadas de pessoas ricas não constituiria um perigo porque, se são fortes no plano econômico, poderão se reforçar no plano político. Eles responderam: "estamos atentos e muito conscientes disso, porque não queremos o que aconteceu com a União Soviética. "
Não se pode ter a pretensão de dizer se eles têm ou não razão ou estão errados. O nível de vida dos chineses – de todos os chineses, mesmo das pessoas que moram no campo – aumentou consideravelmente. Evidentemente, se vêem obrigados a enfrentar algumas contradições não superadas até hoje. Na época em que estive lá (2), 90% da produção estava nas mãos do Estado. Agora ouvi dizer que é 80%, talvez mais, talvez menos. O problema é que a partir do momento em que o setor privado entra, não é mais possível haver fábricas que, mesmo deficitárias, sejam mantidas pelo Estado. Há uma questão de rentabilidade a partir do momento em que se abre para o mercado. Portanto, os problemas são enormes. Os números são evidentemente fantásticos, há dezenas de milhões de trabalhadores que saem das fábricas porque estas são fechadas. Eles se esforçam para que essas pessoas não se tornem sem-teto, moradores de rua. É mesmo uma situação extremamente difícil. Mas não digo, como o fazem algumas pessoas mais apressadas, que não é mais um país socialista. Não. Acho que é uma batalha extremamente complicada. No mundo de hoje é necessário fazer uma análise realista da situação, mantendo a direção do Partido Comunista. A questão é: "será possível?".
Como você avalia as conseqüências da queda da União Soviética?
Henri AlIeg – Os dirigentes chineses consideram que foi uma catástrofe, mas não dizem: "Vocês estão vendo? Nós tínhamos razão!". Acreditei que iríamos ouvir discursos assim por lá, mas isso não ocorreu. Ao contrário, eles dizem "é preciso que não nos aconteça o que ocorreu com a União Soviética". Consideram que foi uma catástrofe para o mundo socialista, para as aspirações socialistas, mesmo com as acusações, de chauvinismo, que foram feitas. No plano prático, ouvi: "tínhamos milhares de construções sino-soviéticas e de repente os quadros soviéticos, mesmo com o coração partido porque queriam continuar a empreitada, tiveram de ir embora".
N o que diz respeito aos países do Terceiro Mundo, primeiramente, os revolucionários, ainda que não comunistas, apoiavam-se na ajuda prática, técnica e financeira da União Soviética para não ceder ao imperialismo. Deram-se conta de que não têm mais essa possibilidade. Do ponto de vista da resistência desses povos ao imperialismo, mesmo para os que não eram comunistas ou que eram anticomunistas, também foi uma catástrofe. Então quando se ouve, infelizmente, na França, comunistas dizendo: "estou feliz que a União Soviética não exista mais, pois ela criou uma má imagem do comunismo que nós queremos", sempre respondo: "como podemos ouvir comunistas dizendo tais coisas, quando ouvimos feudais milionários do Golfo árabe dizer: "para nós, foi uma desgraça!"? Quer dizer, mesmo sendo anticomunistas, achavam positivo haver esse contrapeso que impedia aos norte-americanos, aos imperialistas, fazer tudo o que quisessem. Quantas vezes, ao pensar em todas as guerras atuais, inclusive na Iugoslávia e no Iraque, se ainda houvesse a União Soviética, é pouco provável que os imperialistas tivessem podido fazer o que fizeram. Como perspectiva, evidentemente, o fim da União Soviética age sobre os movimentos comunistas na destruição, por desânimo, por social-democratização, por abandono dos pontos de vista marxistas.
Isso continua? Já se passaram dez anos …
Henri AlIeg – Constatamos que há também reações muito estreitas, sectárias de pensar que só os comunistas marxistas-Ieninistas estão certos, há aqui e ali a resistência de grupúsculos extremamente sectários. Há ainda o renascimento de partidos trotsquistas, que praticamente não existiam e que ganharam uma certa força sobre uma base teórica muito rápida e simplista: "dissemos que Stálin ia conduzir o país à ruína, Trotsky tinha dito que não era possível construir o socialismo num único país". As conseqüências da ação desses grupos são negativas, pois impedem a reflexão dos comunistas e a união das forças revolucionárias reais em torno do Partido Comunista. Na França, por exemplo, há um grupo trotsquista que pregou a abstenção quando ocorreu o referendo de Maastrich. Se não tivessem pregado a abstenção, se tivessem apoiado a posição correta, a França teria rejeitado o Tratado de Maastrich, pois a luta entre os que eram favoráveis e os que eram contra, naquele momento estava equilibrada. E sobre que bases? Sobre bases pretensamente ideológicas e que representam uma velha idéia trotsquista de que a questão nacional não se reveste de interesse.
Evidentemente, a queda da União Soviética é a causa indireta da desagregação. São suas conseqüências no plano teórico, no plano prático, o desânimo de um grande número de lutadores. Será que as coisas poderiam ter ocorrido de maneira diferente? Acho que sim, não estava escrito na História, – contrariamente ao que dizem os inimigos do comunismo – que a União Soviética iria desaparecer.
Não era inevitável…
Henri Alleg – Não, não era inevitável! Mas, evidentemente, os erros no interior da União Soviética e as pressões do imperialismo, no exterior, se conjugaram e, pouco a pouco, o complô de gangsters das
novas camadas que se criaram tornaram a resistência ideológica e política muito frágil.
A consequência do fim da URSS é o desânimo, a socialdemocratização, o abandono do socialismo e do marxismo Esse quadro criado pela derrota do socialismo teria aberto espaço para a chamada Terceira Via?
Henri AlIeg – Na verdade, estou um pouco surpreso com essa expressão, porque a Terceira Via era compreendida, não faz muito, como uma via intermediária entre o socialismo e o capitalismo. "Queremos o socialismo mas não tal como foi construído nos países socialistas", diziam. Isso pareceu um absurdo para os marxistas. O socialismo é a supressão da exploração da classe burguesa e a tomada, pelas massas populares e pelos trabalhadores, não apenas do poder político mas também da direção econômica. Então, dizer que vamos encontrar algo entre os dois é estranho. A própria idéia que falamos há pouco, na China, não é para permitir ao capitalismo se impor, é para reforçar, dentro da perspectiva do socialismo estabelecido, o próprio socialismo.
Conseqüentemente, a expressão Terceira Via não quer mais dizer isso, a partir do momento em que se vêem todos os que enterraram a União Soviética e os países socialistas dizerem: "só há uma via, é a via do capitalismo". Então se pode dizer: "mas há, em cada um dos países capitalistas, pessoas que não concordam com o capitalismo e que, conseqüentemente, pregam uma Terceira Via". Se formos empregar uma expressão nesse sentido, não se trata de uma Terceira Via, e sim da adaptação ao capitalismo. E é interessante ver, por exemplo, os social-democratas explicarem que é preciso lutar pela melhoria das condições de vida, para permitir que os trabalhadores e as massas populares participem mais. Mas acrescentam imediatamente: "sim, mas isso não é possível, agora". No fim das contas, o que propõem é a gestão, pela social-democracia, dos negócios da burguesia e do capitalismo. Não sei o que é isso que se chama Terceira Via, mas sei que não é uma via contra o capitalismo. É uma adaptação do capitalismo para tomá-Io mais atraente àqueles que, hoje, são desencorajados a crer no socialismo, mas que também não podem aceitar as injustiças do mundo de hoje.
Que caminho trilhar para reconstruir a verdadeira esquerda?
Henri AlIeg – Temos uma longa e dura batalha pela frente, não apenas na França, mas no mundo inteiro. Os comunistas devem, primeiramente, refletir e se reagrupar. Tal batalha deve ser de maneira muito aberta, mas, primeiramente, entre comunistas. Digo isso porque na França há também um fenômeno de tentativa de "entrismo" dos trotsquistas. Há um grupo que compreende todo mundo: socialistas, comunistas, trotsquistas, anarquistas. Em segundo lugar, creio que não devemos nos fechar em abstrações ou em cenáculos fechados. O reagrupamento e a luta dos comunistas por um verdadeiro Partido Comunista só pode se dar na ação com as massas, com os trabalhadores. Conseqüentemente, é preciso que os comunistas não discutam a perder de vista somente sobre o passado e não percam de vista o fato de que há uma luta em curso – é nela que vamos avançar. Portanto, é sobre essa base, trabalhando fortemente com as massas populares, com os trabalhadores, com os sindicatos, contra os reformistas e contra a supressão da soberania da França, que poderemos reformar um verdadeiro partido. Não é fácil, porque não podemos, hoje, dizer: "em 1917 é que havia o verdadeiro Partido, o Partido Bolchevique, vamos fazer como eles". Não estamos mais em 1917, precisamos levar em conta as coisas de hoje, mas não liquidando tudo o que é verdadeiro. Não pode haver movimento revolucionário se não houver uma teoria revolucionaria, e não pode haver vitória revolucionária se não houver um partido revolucionário. Tudo isso continua completamente verdadeiro e podemos trabalhar com todos os que estão de acordo com essas idéias. Mas não vamos trabalhar com os que dizem "o socialismo morreu, ultrapassemos o capitalismo", é impossível. Há muitas idéias falsas e há camaradas que sequer sabem o significado de certas palavras do leninismo. É preciso reintegrar na luta revolucionaria as posições que foram testadas e que são verdadeiras.
Um personagem real de seu livro diz que é "um conservador da esperança". É também o seu caso?
Henri Alleg – Hoje se considera que tudo o que é novo é bom. É como nos grandes magazines, se compra algo novo achando que é bom e depois se percebe que o produto antigo era melhor. Ridicularizam-se os camaradas, jovens ou velhos, que falam de comunismo, de revolução, de luta contra o imperialismo. Sou conservador disso, e esse personagem, do qual falei em meu livro, diz:
"É assim que nos chamam, nos chamam de conservadores. Mas digo que somos os conservadores da esperança! E como dizia alguém antes, 'o comunismo é a esperança do mundo' , portanto, penso que conservamos a esperança."
José Reinaldo Carvalho é jornalista e secretário de Relações Internacionais do PCdoB. Degravação e tradução de Lúcia Leal Ferreira
Notas
(1) O grande salto atrás, Lisboa, Ed. AvanteL (Disponível na Editora Anita Garibaldi em São Paulo. Fone: 11 2891331 e e-mail: [email protected])
(2) Em 1993. Dessa visita resultou o livro O século do dragão de reportagem sobre a experiência de construção do socialismo na China.
EDIÇÃO 57, MAI/JUN/JUL, 2000, PÁGINAS 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68