No início da década de 1950, a Unesco e a Universidade de Colúmbia, dos EUA, patrocinaram uma série de pesquisas sobre relações raciais, efetuadas por estudiosos brasileiros, em Recife, na Bahia, no Rio de Janeiro e em São Paulo – onde antes da iniciativa da Unesco, a USP e a revista Anhembi, dirigida por Paulo Duarte, já haviam iniciado projeto semelhante, promovendo pesquisas no sul do Brasil, envolvendo vários pesquisadores da USP sob direção de Roger Bastide e Florestan Fernandes, destacando-se entre eles Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Renato Jardim Moreira, Maria Isaura Pereira de Queiróz. Quando Alfred Metraux veio a São Paulo buscar colaboração de especialistas brasileiros para o projeto da Unesco, "os dois planos foram fundidos e unificados" (Bastide/Femandes: 1971; Azevedo: 1966).

ESTE EMPREENDIMENTO intelectual, da USP e da Unesco, está na origem do que, mais tarde, ficou conhecido nas ciências sociais brasileiras como Escola de São Paulo. Ele ajudou a consolidar aquele grupo de pesquisadores paulistas, levando-os à investigação de um amplo leque de temas ligados à questão da modernização capitalista do Brasil e da superação do atraso, fazendo com que, com o tempo, ganhassem a hegemonia nas ciências sociais em nosso país.
Este grupo de professores se distinguia de seus colegas das demais universidades e de centros de pesquisas (como o ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros) pelos temas que estudavam, pela incorporação teórica da contribuição de correntes dominantes no pensamento social na Europa e nos EUA (a sociologia inspirada em Max Weber, Émile Durkheim, Karl Manheim, funcionalistas americanos como Robert Merton, só para citar alguns nomes), e por uma maior ligação com os centros de estudo no exterior, que, na USP, foi conseqüência da presença de professores estrangeiros, principalmente franceses, contratados na época da fundação da universidade, nos anos 30.

Além da ciência social européia e americana, os professores estrangeiros trouxeram também para a USP as práticas acadêmicas dos centros da Europa e EUA. Nesse sentido, os professores paulistas eram mais cosmopolitas do que seus colegas dos demais estados (pécaut: 1990), e o pensamento social que então se firmava entre eles minimizava, de forma acentuada as preocupações nacionais e populares das demais instituições brasileiras, como o ISEB, em busca de um universalismo expresso na inspiração teórica, nas práticas acadêmicas e na forma de tratar os temas investigados e encarar a relação do cientista social com o país e suas complexidades e, principalmente, com os grandes centros estrangeiros que inspiravam a renovação do pensamento social que a Escola de São Paulo promovia.

Este contexto em que o pensamento aulista, uspiano, se formou, condicionou a temática por ele abrangida e seus desdobramentos. Por influência francesa, principalmente, a atividade científica foi rigorosamente separada da militância política, sendo a ciência social proclamada como neutra perante a luta social e política. Seus temas privilegiaram a investigação da transição, no Brasil agrário, escravista, colonial e oligárquico; moderno era o Brasil capitalista, burguês, que se firmava principalmente depois da Segunda Guerra Mundial. Nesse sentido, moderno era o Brasil das classes sociais, que superava as velhas estruturas das castas e dos estamentos; onde o patrimonialismo da colônia e do império era derrotado pela ordem social competitiva; onde a herança ibérica, fator de atraso, era suplantada pelo individualismo anglo-saxão, fator de progresso. Eram radicalmente contra o getulismo, encarando-o como populista e demagógico, da mesma forma como a elite paulista, para quem a intervenção estatal na economia, seja para fomentar o desenvolvimento, regular a ação do capital ou regulamentar as relações trabalhistas, eram interferências inaceitáveis na livre ação do mercado.

Também como a elite paulista, encaravam o nacional-populismo de Getúlio, e depois de João Goulart, como sinônimo de atraso. Se no Rio de Janeiro “o papel do intelectual implica uma intervenção direta no campo político e a reivindicação de uma representatividade popular e nacional", como diz Pécaut, em São Paulo ele remete "antes à inserção num meio específico de inter-reconhecimento e à referência a normas gerais do trabalho teórico. Em um caso, o intelectual realiza seu trabalho com a perspectiva de elaboração de um saber guiado pela 'realidade brasileira' e deriva muitas vezes, portanto, para a idéia de uma 'ciência nacional'. No outro, exige o universalismo e situa-se deliberadamente no campo das ciências sociais internacionais" (Pécaut: 1990).

Nascia assim uma nova interpretação do Brasil, derivada da iniciativa da elite paulista que, desde a fundação da Escola Paulista de Sociologia e Política, e da USP, na década de 1930, buscava criar uma nova ideologia e uma nova elite, adequadas a seus interesses e à sua interpretação do mundo. Uma interpretação contraditória, inovadora sob muitos aspectos, elitista sob outros. Nas décadas seguintes, seus principais protagonistas, Florestan Fernandes, Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso, seguiram caminhos teóricos e intelectuais diferenciados e assumiram posições políticas opostas e, sob muitos aspectos, inconciliáveis.

A Escola de São Paulo não se limita, evidentemente, a estes autores mais notórios. Ela inclui também uma série de outros professores, com obras influentes e inovadoras em vários aspectos da história de nosso país. Cabe destacar, entre eles, nomes como Emilia Viotti da Costa, historiadora marxista que, cassada pelo Ato Institucional n° 5, em 1969, foi para os EUA, onde leciona na Universidade de Yale, autora do clássico Da senzala à colônia, um notável estudo da transição do fim do escravismo na região cafeeira e da luta política e ideológica pela abolição. Ou Maria Silva de Carvalho Franco, cujo Homens livres na ordem escravocrata é um estudo pioneiro do povo pobre brasileiro sob o escravismo. Sob inspiração weberiana e caiopradiana, ela filia-se à linhagem que interpreta o passado escravista e colonial como capitalista, e vê a escravidão como uma instituição, e não um modo de produção, cujo sentido era dado pelas determinações do capitalismo que dominava a nível mundial (Franco: 1984).

Outro influente historiador é Fernando Novaes, cujo Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial é um influente estudo, também inspirado em Caio Prado Jr, das décadas finais da colonização portuguesa no Brasil, do sentido da colonização e a determinação da dinâmica interna da vida econômica, política e social do Brasil colonial pelas injunções da conjuntura internacional. Cabe citar, ainda, autores como Juarez Brandão Lopes (estudioso da urbanização no Brasil), Francisco Weffort (que especializou-se no estudo do populismo e de organizações sindicais), Leôncio Martins Rodrigues (especialista em sindicalismo), o filósofo José Arthur Gianotti, os historiadores da literatura Antônio Cândido e Robert Schwarz, entre tantos outros, muitos dos quais participaram dos chamados Seminários Marx do final da década de 1950, e em 1969, da criação do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), formado por professores cassados pelo AI-5 e intelectuais de oposição à ditadura militar e que, nos anos 70 e 80, foi um influente centro de elaboração teórica e interpretação da realidade brasileira.

Cosmopolita e universalista, a USP ligou-se a temas e práticas acadêmicas, contra as preocupações nacionais e populares de outras instituições brasileiras, como o /SEB, por exemplo
Escravidão e cidadania
"Florestan Fernandes é o autor de uma nova interpretação do Brasil", diz Octavio Ianni (Ianni: 1986). Ele é, sem dúvida, o principal nome da chamada Escola de São Paulo e, como intelectual, síntese das limitações e qualidades dessa corrente do pensamento social brasileiro.

Luminar da universidade brasileira cuja formação escolar teve início nos populares "cursos de madureza", devido a sua origem muito humilde, Florestan conheceu de perto a realidade que muitos de seus alunos enxergavam apenas a partir de seus gabinetes. Falar do povo brasileiro, para Florestan, não era uma atitude intelectual, teórica, mas sim o relato de uma experiência pessoal que, mais tarde, definiu sua própria condição de cientista social. "Eu nunca teria sido o sociólogo em que me converti sem o meu passado", sem "as duras lições da vida". "Iniciei a minha aprendizagem 'sociológica' aos seis anos, quando precisei ganhar a vida como se fosse um adulto", penetrando assim "no conhecimento do que é a convivência humana e a sociedade" (Ianni: 1986).

Muitas vezes olhado de forma oblíqua por setores "modernos" da esquerda, Florestan Fernandes foi um intelectual que, crítico do êxtase colonial que contamina parcelas extensas do pensamento brasileiro, formulou uma síntese original para explicar o Brasil, sem abandonar suas convicções socialistas ou considerar o marxismo como "coisa do passado", distinguindo-se ao contrário como crítico do pensamento de direita que, hoje, aparece com o rótulo de "neoliberal". Como intelectual comprometido com as lutas de seu tempo, evoluiu, aliás, das posições reformistas dos anos 50 e 60 para a defesa da revolução proletária, e para a crítica radical da sociologia como "ciência da ordem" – posições avançadas e progressistas que, em 1969, provocaram sua aposentadoria compulsória pelo AI-5, afastando-o da USP.

Mestre de toda uma geração de cientistas sociais – entre eles o sociólogo e presidente Fernando Henrique Cardoso, Octavio lanni, Gabriel Cohn, Eunice R. Durham etc – procurando conciliar Karl Marx, Max Weber, e os funcionalistas americanos, ele inovou o conhecimento da escravidão e da abolição, e das transformações de classe que esses processos históricos significaram; sua interpretação da revolução burguesa no Brasil rompe com as visões clássicas, inspiradas nas revoluções americana e européias, e busca compreender como sua especificidade é condicionada pelas características da luta de classes em nosso país e das relações de nossa sociedade, e dos setores hegemônicos das classes dominantes, com a conjuntura internacional e seus agentes. Apontou assim para uma vertente analítica que rompeu com o rígido dependentismo anterior, em que a vida colonial era determinada, unilateralmente, pela dominação externa. Abriu caminho, assim, para uma compreensão mais complexa em que as pressões externas combinavam-se com a dinâmica interna na colônia, no contexto da luta de classes que tinha uma expressão interna à formação social brasileira, e outra externa, decorrente da articulação da colônia com a economia e a conjuntura mundiais.

Rompendo com suas posições reformistas iniciais, Florestan evolui para a compreensão da revolução proletária como saída para a crise brasileira
No estudo da escravidão e da abolição, Florestan rompe já nos primeiros estudos com a tese das relações cordiais entre senhores e escravos. As interpretações tradicionais do escravismo descreviam um mundo idílico, mítico, onde as relações de classe entre os universos dos senhores e dos escravos teriam sido amenas, doces e cordiais.

O mito do escravismo patriarcal, à Gilberto Freyre, eludia o conflito e a contradição, afirmando a ação benevolente do patriarca, uma versão da história sem luta de classes, que encarava os conflitos como contra-aculturativos (Moura: 1988). Esse mito foi reduzido a pó com a ajuda de Florestan Fernandes que, nos estudos sobre a escravidão, mostrou como a crueza e a violência que regiam as relações sociais estavam presentes não só nas eventuais relações pessoais, cotidianas, entre senhores e escravos, mas fundamentalmente na força bruta necessária para dar coesão e estabilidade a todo a ordem social, assentada "sobre um vulcão", na qual o escravo era simultaneamente "um inimigo doméstico e um inimigo público". Na visão do passado escravista que Florestan ajudava a consolidar, a questão da violência e da opressão estava presente no próprio coração da ordem social. (Florestan: 1976), onde se mantém mesmo décadas depois do fim da escravidão. Foi a violência das relações entre aquelas duas classes antagônicas, contraditórias e opostas, que instituiu o "padrão muito característico do modo pelo qual os grupos e classes dominantes, anos e séculos depois, lidam com a maioria do povo" (Ianni: 1986).

O trajeto que transformou o escravo em cidadão foi também o caminho percorrido pelo escravo para fora, para a margem, do sistema produtivo, expulso para as camadas mais humildes e subalternas da sociedade brasileira. De escravo a pária, seria mais correto dizer. O escravo, o africano, foi transformado em "negro", e o racismo implícito do escravismo transformou-se em ideologia para explicar a degradação e miséria dos ex-escravos como conseqüência de sua própria inferioridade racial. Para Florestan, a análise da situação deste segmento da população, o mais humilde e ultrajado, permite compreender a transformação vivida pela sociedade brasileira entre a desagregação do escravismo e a emergência e consolidação do modo de produção capitalista (que, weberianamente, chama de ordem social competitiva, ou sociedade de classes).

Assim, Florestan encaminha-se para compreender o "estilo especial de revolução burguesa" aqui ocorrido (Fernandes: 1975), seu caráter autocrático, elitista e antidemocrático. Ela desdobra-se, para ele, em um vasto painel que vai da Independência, vista como "a primeira grande revolução social que se operou no Brasil", até a emergência de um modelo "autocrático-burguês" cuja melhor expressão foi a ditadura militar iniciada em 1964, num quadro em que a revolução burguesa "frustrada", de sociedades de desenvolvimento capitalista retardatário (como a Itália, por exemplo), transforma-se em "revolução dentro da ordem", tão cara aos setores esclarecidos do conservadorismo brasileiro, concebida como solução "ao alcance das mãos dos poderosos, a 'reforma dos que podem e dos que sabem'!" (Fernandes: 1986) e que degenera, no seu limite, numa "espécie de contra-revolução permanente" (Ianni: 1986).

Assinalando a necessidade de estudar a dinâmica interna da colônia, Florestan indicou como, na Independência, a manutenção de formas de produção e estruturas coloniais resultou da combinação dessa dinâmica interna com as imposições da dominação estrangeira – as pressões "de dentro", dos grupos dominantes na economia e na sociedade, e "de fora", a expansão dos países industriais e dos dinamismos do mercado mundial. Um quadro que permitiu, à elite escravista e latifundiária, subordinar o processo emancipacionista a seus interesses, e , a partir da década de 1850, à emergência e expansão do capitalismo dependente no Brasil (Fernandes: 1976). As classes dominantes na América Latina e os grupos externos, conclui, tem interesse na manutenção da dependência e do subdesenvolvimento, que "são um bom negócio para os dois lados" (Fernandes: 1973). O processo revolucionário da Independência foi assim solapado.

O estatuto colonial foi superado como estado jurídico-político, mas seu substrato material, social e moral, foi mantido, perpetuando-se e servindo de suporte à construção de uma sociedade nacional (Fernandes: 1975).

Outra etapa da revolução burguesa foi a Abolição, resultado da intensa luta anti-escravista das décadas anteriores e também do desenvolvimento capitalista crescente desde 1850. Neste particular, a influência weberiana levou Florestan a chancelar o equívoco que atribui um papel decisivo à elite paulista na Abolição: a implantação da lógica capitalista teria transformado o fazendeiro em empresário, e o fim do escravismo teria sido imposto pela racionalidade capitalista que levou à transformação do escravo em trabalhador livre assalariado.

A nítida inspiração weberiana se revela, em Florestan, em categorias como estado patrimonial (usada para caracterizar o estado português da época dos descobrimentos), casta e estamento (para descrever a classe dos senhores de terras e escravos, o funcionalismo público, ou a classe dos escravos), a própria ordem social competitiva como sinônimo de capitalismo, (Florestan: 1976), ou quando fala em "móveis capitalistas do comportamento econômico", "introduzidos no Brasil juntamente com a colonização". A elas, somam-se várias categorias do marxismo (classe social, luta de classes, revolução, revolução burguesa, revolução proletária, socialismo, o estado como instrumento de dominação da burguesia, modo de produção, a denúncia da dominação imperialista como fator de freio do progresso nacional, etc) . (Florestan: 1976a).

Fiel à influência de Caio Prado Ir. e Celso Furtado, concordava com a impossibilidade da acumulação de capital durante o período colonial; ela ocorreu depois da Independência, quando os "móveis capitalistas" iniciais voltaram à tona e puderam expandir-se com relativa intensidade (Florestan: 1975) e "o modo de produção escravista" pode então preencher "as funções de fator de acumulação originária de capital" (Florestan: 1976).

Apesar disso, ele não se alinha entre aqueles que rotularam o passado como capitalista. Ao contrário, para ele, a produção colonial não era capitalista, mas "um sistema de produção colonial, estruturado e dinamicamente adaptado à natureza e às funções das colônias de exportação", onde a escravidão colonial e mercantil era "pré-capitalista" (Florestan: 1973 e 1976).

Ao longo de sua carreira de professor, cientista social, escritor e militante socialista, Florestan evoluiu das posições reformistas iniciais para uma visão declaradamente revolucionária de nossa história. Inicialmente, contribuiu para a compreensão de que só se pode ter uma autêntica história do povo brasileiro partindo do relato do drama e dos impasses vividos aqui pelos indígenas; escravos e, depois da abolição, ex -escravos; mestiços; pelo drama cotidiano dos pobres em geral, do campo e da cidade, que ao longo dos séculos formaram a base da sociedade brasileira, sem direitos ou, como se diz hoje, cidadania. E que, no século XX, junta-se à história da classe operária, dos trabalhadores do campo, e dos demais trabalhadores assalariados.

Depois, estudando as relações de classe que determinaram e limitaram os momentos de ruptura de nossa história (a Independência, a Abolição, a República, a revolução de 1930, a ditadura militar de 1964, a Nova República de 1985), Florestan contribuiu para desvendar o segredo das nossas revoluções que não se completam, descrevendo como os setores das classes dominantes envolvidos na modernização tiveram papel acentuado na condução daqueles movimentos, na determinação de seus limites e na criação de situações institucionais novas favoráveis à defesa de seus interesses e de seu predomínio, criando a peculiar situação histórica de nações como a nossa em que o arcaico, o velho, nunca é plenamente superado, mas sobrevive ao lado do novo que emerge nas rupturas, constituindo assim o principal freio para a efeti va democratização e modernização destas sociedades.

Ajudou também a descobrir e esclarecer o papel da dominação estrangeira que, ao aliar-se com setores estratégicos das classes dominantes de países como o nosso, reforçam seu próprio domínio neocolonial e imperialista e reiteram o domínio de oligarquias cujas raízes perdem-se no passado colonial. Destaca, assim, o caráter político e conservador da modernização feita sob influência e patrocínio dos EUA. Ela interessa para as elites conservadoras brasileiras pois "é a única alternativa, para as classes dominantes, para enfrentar a 'subversão' e 'comunismo'." (Fernandes: 1973).

Embora nunca tenha abdicado daquela característica mistura de funcionalismo, weberianismo e marxismo que marca sua obra desde o início, ao longo dos anos Florestan acentuou a componente marxista de seu pensamento chegando a, num livro publicado em 1980, declarar seu desencanto com a sociologia e denunciar sua perversão pela profissionalização: "o sociólogo profissional converteu-se numa pessoa que luta mais para sobreviver e ganhar a vida – enfim, para preservar e reforçar a sua condiçãozinha de classe média – do que pela verdade inerente da natureza científica e, portanto, revolucionária da explicação sociológica" (Fernandes: 1980).

Avançando nessa linha, em 1985 faz análises premonitórias da atuação de intelectuais e políticos, "antigas vítimas da ditadura, lutadores de proa na década dos sessenta ou no início dos setenta e grandes esperanças do radicalismo democrático e do socialismo", que se tomaram "campeões da normalização institucional", e "quadros intelectuais da 'recuperação econômica' . De sacerdotes da burguesia, deram um salto notável que os revelou como coveiros das aspirações socialistas e comunistas dos grupos mais organizados do proletariado e do radicalismo larvar das massas destituídas" (artigos publicados na Folha de S. Paulo, 11 de maço de 1985 e 27 de abril de 1986, citados in Ianni: 1986).

Entre a dominação e a revolução, a corrente principal da sociologia fugiu desta e tornou-se instrumento de defesa da ordem. Um caminho inverso ao percorrido por Florestan Fernandes que evoluiu para a compreensão da revolução proletária como saída para os impasses atuais. Na frágil e limitada democracia, em sociedades como a nossa, a revolução burguesa não se conclui pois as "classes burguesas não se propõe as tarefas históricas construtivas que estão na base das duas revoluções, a nacional e a democrática", cabendo aos próprios trabalhadores a definição do "eixo de uma revolução burguesa que a própria burguesia não pode levar até o fundo, e até o fim", sendo preciso "educar politicamente os proletários para distinguir a sua revolução da revolução burguesa, e para querer algo coletivamente: a transformação socialista da sociedade" (Fernandes: 1981).

Ao longo de sua carreira, e principalmente depois de ter sido afastado da universidade brasileira pela violência da ditadura militar de 1964, Florestan Fernandes uniu de forma crescente, e cada vez mais coerente, militância política e atividade científica, afastando-se da tradição de neutralidade científica que esteve na origem da formação da Escola de São Paulo, e da qual ele foi um dos principais protagonistas.

Seus dois alunos mais notáveis, Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso, seguiram trajetórias diferentes. Octávio Ianni, cujos primeiros trabalhos são (entre estes três autores) aqueles mais marcadamente marxistas, manteve-se também como um pensador radical, socialista, evoluindo para uma compreensão contraditória e complexa da realidade globalizada de nossos dias e dos dilemas que ela coloca para o socialismo e para a luta de classes. Fernando Henrique, ao contrário, acentuou cada vez mais a componente weberiana de seu pensamento e, unindo a militância intelectual à luta política, evoluiu do campo democrático e progressista para uma posição acentuadamente conservadora, tomando-se – como presidente da República – um campeão do neoliberalismo e dos aspectos mais retrógrados da chamada globalização. A apresentação de sua trajetória e obras será o tema da continuação desta série.

* José Cartas Ruy é jornalista.

Bibliografia

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EDIÇÃO 57, MAI/JUN/JUL, 2000, PÁGINAS 16, 17, 18, 19, 20, 21