O Capitalismo contemporâneo e o debate sobre a alternativa
No transcurso da década de 90, dois elementos fundamentais condicionaram a elaboração teórica e o debate sobre a estratégia e a tática da esquerda: em primeiro lugar, o impacto político e ideológico da queda da União Soviética e outros estados socialistas da Europa – que ainda mantêm na ordem-do-dia a necessidade de se realizar um balanço integral da experiência histórica do socialismo – e, em segundo lugar, a subseqüente avalanche universal de uma onda de mitos sobre a "capacidade regeneradora" do sistema capitalista, o "poderio indisputável" do imperialismo e a consumação de uma "mudança civilizadora" (tecnológica, econômica, social e política) que impossibilita a transformação revolucionária da sociedade. NA CAUSA da queda da URSS, há dois temas que chamaram a atenção de todos os seres humanos com acesso aos meios de comunicação: um é o processo objetivo e inexorável, a aceleração do movimento histórico – descoberto e analisado por Marx e Engels – em direção à universalização das relações humanas, que no momento atual é chamado de "globalização" ou "mundialização"; categorias que – por erro, desconhecimento ou omissão – com freqüência são identificadas como um movimento iniciado nos últimos trinta anos, enquanto que o outro, o neoliberalismo, é uma doutrina concebida para legitimar o individualismo e a desigualdade em uma etapa de crise do modo capitalista de produção, na qual os monopólios transnacionais e os Estados imperialistas com os quais estão fundidos são obrigados a recorrer a uma concentração extrema e acelerada da propriedade e da riqueza, independentemente dos custos sociais que isso possa provocar.
Existem duas vertentes principais de ideólogos do "capitalismo eterno": a que prognostica uma progressiva homogeneização econômica e social do mundo; e a que reconhece o alargamento da lacuna entre as potências imperialistas e os países subdesenvolvidos – junto com a polarização econômica, política e social que é produzida no interior de cada país. Sem dúvida, ambas coincidem na necessidade de que todas as nações aceitem os "ditames" da "globalização", no primeiro caso, porque eventualmente isso conduzirá à bonança geral e, no segundo, porque constitui a única fórmula de tentar "sair" da faixa da humanidade que será excluída do desenvolvimento e do bem-estar, ainda que reconheçam que muitos "ficarão pelo caminho", apesar de terem levado ao pé da letra a receita da "globalização".
o capitalismo se encontra numa etapa prolongada de crescimento ou está em meio a uma crise de seu modo de produção?
À medida que as idéias dominantes são as idéias da classe dominante e como o movimento para a universalização política e econômica é produzido sob o tacão do capitalismo ou seja, sob o controle e em função dos interesses dos monopólios transnacionais e dos governos das potências imperialistas -, com demasiada freqüência se aceita que a forma capitalista em que atualmente é desenvolvido este processo é a única possível, mito reforçado pela maior parte da literatura disponível e pela saturação da propaganda imperialista.
Se os meios de difusão que nos bombardeiam de maneira sistemática são propriedade dos promotores e dos beneficiários da ideologia neoliberal, até que ponto nossa própria visão da metamorfose do mundo contemporâneo – deste mundo que é preciso conhecer para transformá-lo – está influenciada por pressupostos "científicos" sobre os quais se sustentam os dogmas neoliberais?
Até que ponto confundimos e misturamos o caráter inexorável e civilizador do avanço da humanidade rumo à universalização, com a forma especificamente capitalista em que esse processo transcorre na atualidade? Até que ponto a abertura e a desregulamentação econômica unilateral dos países do chamado Terceiro Mundo são um resultado da tendência histórica natural e até que ponto são impostas pelos centros do poder imperialista que se beneficiam delas? Até que ponto partimos de premissas falsas em nossas análises e debates, sobre o "que se pode" e o "que não se pode" fazer num mundo globalizado? Em que medida, pois, estes dogmas condicionam e limitam nossos debates sobre o programa, a estratégia e a tática da esquerda? Será que não ignoramos o fato de que a formação econômico-social capitalista já ultrapassou sua época de progresso e que atualmente se encontra numa fase decadente e vegetativa?
Um dos fundamentos da tese "capitalismo eterno" é que em virtude da chamada revolução científico-tecnológica, o modo de produção capitalista encontrou a fórmula para solucionar ou ao menos para disfarçar a perpetuação, a explosão de suas contradições antagônicas – entre elas a crise de superprodução – das quais se depreende que a transformação revolucionária da sociedade não somente seria impossível como também desnecessária. Outro ideologema em voga é que a ciência e a tecnologia adquiriram vida e racionalidade ou irracionalidade próprias, ou seja, que o desenvolvimento científico e tecnológico se converteu na mola propulsora da humanidade, cujos ditames são inapeláveis, tanto para os exploradores quanto para os explorados igualmente, do que resultam as mudanças sociais que invalidam toda a experiência histórica das lutas populares – tanto reivindicatórias quanto políticas – fato que nos faz ignorar que a inovação técnico-científica é regida pelas leis do capital e que – ao contrário da noção geralmente aceita – de que quanto mais acelerado e profundo é seu desenvolvimento, mais são aguçados os antagonismos do modo de produção capitalista, em particular a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e o estancamento das relações de produção.
Muito mais perspicaz e pertinente do que falar de "solução" ou "conjuração" das contradições antagônicas do capital parece ser o questionamento acerca de se o sistema atual da produção capitalista caminha rumo a um período relativamente extenso, durante o qual poderá atenuar (nunca solucionar) essas contradições ou se, pelo contrário, estas tendem a se agravar. A importância e a atualidade da avaliação que realizamos sobre esse tema se baseia no que afirma Marx, "(em uma fase de) … prosperidade geral, na qual as forças produtivas da sociedade burguesa se desenvolvem com toda a exuberância possível, não se pode sequer falar em uma verdadeira revolução. Tal revolução somente pode se dar nos períodos em que estes dois fatores, as modernas forças produtivas e as formas burguesas de produção incorrem em contradição mútua." (1)
A partir desta afirmação depreende-se que, se o capitalismo, através do desenvolvimento científico e tecnológico, encontrou a forma de abrir uma nova e prolongada fase de progresso e expansão da economia mundial, sem a necessidade de atravessar mais uma grande crise ou de recorrer a uma guerra devastadora, a esquerda e os movimentos populares serão obrigados a adaptar sua estratégia e sua tática a essa realidade, não só mediante a elaboração de um programa mínimo para curto e médio prazos, mas também com uma projeção de muito maior alcance. Mas vejamos, qual foi a trajetória do sistema capitalista na segunda metade do século XX? O capitalismo contemporâneo se encontra no limiar de uma nova etapa prolongada de crescimento expansivo, ou está em meio a uma crise integral, aguda e acelerada de seu modo de produção?
Do "Estado de bem-estar" ao neoliberalismo: a decomposição do capitalismo contemporâneo.
A tese de que a vitória ou a superioridade do capitalismo sobre o socialismo se baseia na premissa que confunde o sistema capitalista com o chamado Estado de Bem-Estar que funcionou na Europa Ocidental a partir do final de Segunda Guerra Mundial é duplamente fraudulenta: em primeiro lugar, porque sugere que as condições econômicas e políticas características desses período são estáticas e, mais ainda, que tendem a melhorar, ainda que seja só para um grupo reduzido de nações privilegiadas e, em segundo lugar, porque se esquecem de que o capitalismo é um sistema mundial e, portanto, seu desempenho não pode ser medido somente pela opulência das nações de desenvolvimento máximo, mas pelas conseqüências de seu modo de produção para o conjunto da população nele abrangida.
Para compreender a metamorfose do capitalismo contemporâneo, é preciso partir da já mencionada contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e as relações de produção, ou seja, a que surge da capacidade que o sistema capitalista tem de produzir mais mercadorias do que as que pode vender, o que resulta na crise de superprodução de mercadorias que ao mesmo tempo é uma crise de subconsumo. Essa contradição foi "resolvida" em três oportunidades na primeira metade do século XX, mediante a destruição em massa das forças produtivas excedentes ocasionada: 1) pela I Guerra Mundial; 2) pela Grande Depressão de 1929 – 1933; e 3) pela 11 Guerra Mundial. As duas guerras mundiais foram, ao mesmo tempo, cenários de outros processo históricos que alteraram e condicionaram a atuação do imperialismo em meio à I Guerra surge a União
Soviética – materialização do projeto alternativo ao sistema de produção capitalista – e, no início da II Guerra o socialismo se converte em um sistema composto por vários países que irradia influência em direção ao resto do mundo.
Durante o segundo pós-guerra, a economia e a política se combinaram de tal forma que o imperialismo se viu obrigado a estabelecer, especialmente na Europa Ocidental, o "Estado de Bem-Estar". Do ponto de vista econômico, a destruição em massa das forças produtivas ocasionada pela conflagração, abriu um período de duas décadas de crescimento econômico expansivo, virtualmente ininterrupto sem que houvesse a ameaça iminente de uma grande crise de superprodução. Nestas condições, gerou-se o incremento constante da demanda da força de trabalho, o que provocou sua valorização e, por conseguinte, um" elevação nos salários, que por sua vez jogaram um papel fundamental no estímulo à demanda das mercadorias o serviços, ou seja, ampliaram o horizonte do mercado e contribuíram para reprodução do capital. Do ponto do vista político, a expansão do socialismo pela Europa e Ásia obrigava o Capitalismo a uma competição ideológica, que o forçava a mostrar uma fachada "democrática" e de "redistribuição", ou seja, era preciso:
1) estabelecer um sistema de partidos políticos, sindicatos e organizações populares capaz de assimilar o conjunto d:demandas dos diversos setores da sociedade; e 2) desenvolver uma vasta rede de serviços públicos e amplos programas sociais. Além da competição ideológica contra o socialismo em meio à Guerra Fria, a assimilação das demandas sociais e o desenvolvimento dos serviços públicos abrangentes têm também uma fundamentação econômica: em uma fase prolongada e intensa de expansão econômica é lógico que a burguesia encarregue ao Estado – que arrecada os impostos de toda a sociedade – a implantação de programas dirigidos à reprodução de uma força de trabalho cuja demanda se incrementa de maneira constante, pois caso não existissem esses programas, os capitalistas ver-se-iam obrigados a aumentar ainda mais os salários, ou seja, o próprio capital está interessado em que o Estado assuma os custos da capacitação dos trabalhadores, a saúde, a educação de seus filhos, entre outros. Finalmente, em determinada etapa do desenvolvimento do capitalismo, as legislações e as políticas "favoráveis" aos trabalhadores também procuram a concentração do capital, porque, embora os grandes capitais possam pagar salários relativamente mais altos e custear outros benefícios e pensões, as pequenas e médias empresas não podem fazê-Io e isso contribui para sua absorção ou destruição.
No final da década de 70, estando esgotado o período de crescimento expansivo aberto pela II Guerra Mundial, são aguçadas tendências destrutivas do capitalismo, estreitamente ligadas entre si: 1) a superprodução de mercadorias; 2) a superprodução de capitais e 3) a superprodução de população com respeito às demandas do capital. Naquela ocasião, estes males foram agravados pela contradição entre o desenvolvimento da capacidade produtiva alcançada pelas potências industrializadas durante o pós-guerra e o crescimento limitado do mercado mundial, provocado pela mudança de direção dos fluxos de capitais ocorrida durante o período, ou seja, a nova orientação dos capitais que antes eram exportados às colônias e neocolônias e que, no pós-guerra destinavam-se primeiramente, à reconstrução européia (Plano Marshall) e depois, para tirar proveito da bonança relativamente prolongada das potências imperialistas. Dessa forma, com o retomo do fantasma da superprodução às potências imperialistas, a Ásia, a África e a América Latina tomam-se incapazes de assimilar os excedentes das mercadorias e dos capitais que transbordam do chamado Primeiro Mundo, processo que contribui para a explosão da crise da dívida externa.
Na década de 70, apesar da ameaça representada pela superprodução de capitais, mercadorias e população a existência da URSS e da Comunidade Socialista, o poder destrutivo acumulado nas armas nucleares e a criação de um espaço econômico transnacional que enlaça num todo único o capitalismo norte-americano, europeu e japonês, determinam que nenhum dos países imperialistas se atrevesse a recorrer, pela terceira vez à força militar para destruir as forças produtivas excedentes, nem a tentar sequer empreender guerras econômicas que possam fugir do controle. Nessas condições, ante a impossibilidade de compensar a tendência decrescente da taxa de lucros através de um aumento constante da produção, o capitalismo entra numa semirecessão voluntária e permanente e apela para três recursos fundamentais para a valorização do capital, nenhum dos quais é novidade, mas sim suas magnitudes, que determinam mudanças qualitativas no processo de reprodução: a economia do trabalho vivo, a especulação financeira e a autofagia, as quais são válidas para o incremento de capitais individuais, mas não para aumentar o capital social em seu conjunto.
A economia do trabalho vivo, ou seja, o aumento da produtividade do trabalho destinando a extrair uma maior taxa de mais-valia, a que as empresas monopolistas mais concentradas apelam com particular intensidade nos ramos e setores privilegiados da economia mundial – com sua seqüência de aumento do desemprego e diminuição dos salários – se converte em uma arma do capital que se volta contra ele próprio. Na atual situação, em que a tendência natural do capitalismo à exclusão social já não é mais compensada pelo crescimento geral da economia – que mantinha dentro de determinados limites o chamado "exército de reserva" -, a reprodução ampliada do capital se dá às expensas da exclusão da população da relação capital x trabalho, o que se torna um círculo vicioso porque, ao se reduzir a quantidade de operários e a massa salarial, reduz-se também o mercado que o capital necessita para se autovalorizar e, por conseguinte, se vê obrigado a deslocar um número maior de trabalhadores e a reduzir novamente a massa capital salarial, com a qual não faz . Incapaz de deter a tendência decrescente da taxa de lucros, o capitalismo vê-se numa semi-recessão voluntária e permanente outra coisa senão reduzir ainda mais o mercado do qual depende sua subsistência, processo que requer uma explicação teórica que ultrapassa as possibilidades desse trabalho. Se partirmos da premissa marxista de que o capitalista afiança seu domínio sobre a sociedade na medida em que incorpora uma maior população na relação capital x trabalho, podemos concluir que a tendência à exclusão social, que é uma das características fundamentais do capitalismo contemporâneo, aponta para o esgotamento histórico do modo de produção capitalista.
Impossibilitado de concluir o ciclo de sua reprodução ampliada dentro da esfera produtiva, o capital recorre à especulação financeira, ou seja, multiplica os títulos de valores e centraliza o controle sobre a massa monetária mundial. Nessas condições, a reprodução se realiza sob fortes estímulos artificiais e com uma tendência crescente à crise geral da produção, colocando em prática um mecanismo de acúmulo de contradições, cujas manifestações mais evidentes são uma recessão muito prolongada e a explosão das crises financeiras. O predomínio da especulação sobre a produção revela o grau de parasitismo e decomposição do imperialismo, pois se converte no recurso fundamental pelo qual os monopólios transnacionais mais concentrados expropriam o trabalho do resto da sociedade, que não é formada só pelos operários, camponeses e demais setores sociais subordinados mas, de uma maneira crescente e acelerada pelos próprios capitalistas.
A tendência ao esgotamento dos espaços produtivos nos quais se realiza a reprodução do capital obriga às chamadas megafusões, porque somente os monopólios transnacionais mais concentrados são capazes de disputar segmentos do mercado, o que se dá mediante a absorção ou destruição de uma gigantesca massa de capitais menores, do que se depreende que o capitalismo contemporâneo se reproduz de maneira autofágica.
Tendência a excluir a população da relação fundamental do sistema capitalista (a relação capital x trabalho); domínio do capital fictício sobre o capital produtivo e reprodução dos monopólios transnacionais por meio da autofagia do modo de produção capitalista. Ainda que possamos mencionar muitos mais, bastam esses elementos para afirmar que o capitalismo contemporâneo está muito distante da ante-sala da situação descrita por Marx como uma etapa de "prosperidade geral", na qual as forças produtivas desenvolver-se-ão "tão exuberantemente quanto possível".
A função da doutrina neoliberal é legitimar e estabelecer pautas que contornem o agravamento da polarização política, econômica e social em escala mundial
Com a super saturação dos mercados de bens, capital e força de trabalho, no decorrer da década de 70 torna-se evidente o esgotamento das condições econômicas que sustentavam o "Estado de Bem-estar". Já durante o pós-guerra, o incremento do salário fora o motor da economia, mediante o estímulo à demanda, agora está sucumbida a necessidade de aumentar a taxa de mais-valia. Paralelamente, ao diminuir a demanda da mercadoria força de trabalho e reduzir seu valor. os capitalistas já não tinham "generosos" programas sociais, mas necessitam que tais recursos sejam transferidos para o setor privado, através de cortes impositivos, privatizações, créditos e subsídios.
Dessa maneira são criadas as condições econômicas e, em certa medida, as condições políticas para a passagem do "Estado de Bem-estar" ao neoliberalismo. Assim, não é antes do final de década de 80 e princípios dos anos 90, com o desaparecimento da Comunidade Socialista Européia e o desmembramento da URSS. que o neoliberalismo alcança sua cúspide como doutrina totalitária e avassaladora, virtualmente em escala mundial.
Embora seja correto afirmar que o capitalismo neoliberal é o capitalismo dos nossos dias, é conveniente enfatizar a diferença entre, um lado, a metamorfose pela qual passa o capitalismo contemporâneo – que é uma conseqüência inevitável do grau de parasitismo e decomposição alcançado pelo modo de produção capitalista o que determina que sua própria existência dependa da continuidade e aceleração do processo de concentração transnacional da riqueza, da produção. da propriedade e do poder político e, por outro, o papel que joga o neoliberalismo como doutrina cuja função é legitimar e estabelecer pautas que regem o agravamento da polarização política, econômica e social em escala mundial. A importância de desvendar ambos os elementos baseia-se no fato de que, se o neoliberalismo fosse só uma "má política", ou uma "política econômica fracassada", a "solução" dos problemas do capitalismo contemporâneo só dependeria de uma "mudança política" e esse modo de produção poderia voltar a ser "democrático" e "redistributivo", como foi durante o pós-guerra e em um reduzido número de países desenvolvidos. Em essência, sob este ou outro nome, em suas variantes mais "ortodoxas" ou "heterodoxas", o neoliberalismo é a política necessária para a reprodução do capital financeiro transnacional nesta etapa senil do capitalismo.
Em suas origens, o neoliberalismo foi uma reelaboração da teoria clássica destinada a adequá-lo ao desenvolvimento experimentado pela sociedade capitalista, com o objetivo de promover o individualismo e a desigualdade, como princípios para a reconstrução da Europa – e da Grã-Bretanha em particular – na etapa posterior à 11 Guerra Mundial. O texto original Caminho da servidão, escrito por Friederich Hayek em 1944, é uma defesa da concentração do capital dirigida a enfrentar as demandas populares, no que ele antecipava como sendo um difícil reajuste pós-bélico. Certamente como Hayek não era marxista, não poderia prever que, depois dos momentos iniciais da reconstrução, a destruição das forças produtivas provocada pela guerra abria uma etapa de auge e não de crise do capitalismo monopolista de Estado nas condições do pós-guerra. Por conseguinte, não é por acaso que durante um longo período o neoliberalismo se mantivera confinado aos círculos de políticos e economistas ultraconservadores, até que a volta da crise recriou o cenário previsto por Hayek que, na década de 70, desenvolveu as idéias gerais que havia esboçado três décadas antes (2) em Lei, legislação e liberdade.
Após duas décadas de neoliberalismo, cujos efeitos sócio-econômicos nem é preciso lembrar, o problema que hoje agonia o imperialismo é como compensar o efeito desestabilizador do processo de concentração transnacional da riqueza e do poder político do qual depende sua reprodução e, por conseguinte, sua própria subsistência. À medida que as contradições sócio-econômicas se agravam e cresce a tendência à instabilidade social e política no mundo, diversas correntes políticas e ideológicas trabalham, já há alguns anos em conformidade com um paradigma "pós-neoliberal": o modo de produção capitalista precisaria encontrar um ponto de equilíbrio entre a concentração transnacional da riqueza e a revitalização parcial de alguns programas sociais compensatórios.
O debate sobre "a alternativa"
O debate sobre o que se convencionou chamar de "a alternativa" – muitas vezes com a definição específica de "alternativa ao neoliberalismo" – se desenvolve sob a influência da crise ideológica e política dos núcleos centrais que foram chamados para preservar, desenvolver e colocar em prática as idéias das correntes históricas fundamentais do movimento operário e popular, o comunismo e a social-democracia. No movimento comunista, a crise conduziu ao desaparecimento físico da URSS – identificada como depositária de sua herança e precursora de seu projeto de construção de uma sociedade superior – embora que na social-democracia a crise se manifesta na formalização do abandono de todo o vestígio da vocação transformadora, protagonizado pela maioria dos principais partidos europeus que controlam a produção teórica e dominam o funcionamento da In-ternacional Socialista.
O impacto provocado pelo desaparecimento da União Soviética e dos Estados Socialistas da Europa é nefasto, porque o imperialismo ficou sem seu adversário fundamental e o movimento revolucionário sem "sua retaguarda estratégica". Com relação ao plano subjetivo, o impacto é também muito negativo porque, por um lado, permitiu encobrir o grau de profundidade da crise integral do modo capitalista de produção e, por outro, desacreditar tanto o ideal comunista com o qual- correta ou incorretamente – esses países encontravam-se associados, como a teoria marxista-leninista, único instrumento válido para a compreensão do capitalismo contemporâneo e o desenvolvimento da estratégia e tática da esquerda. Essa derrota, sem similar na história, foi de tal envergadura que poderia perfeitamente ter provocado o refluxo de várias décadas das lutas populares. Qual será a gravidade da crise do capitalismo, que pôde desfrutar de menos de uma década de hegemonia ideológica absoluta e os povos já começam a procurar de novo "a alternativa"?
Na ofensiva para desacreditar a idéia de transformação revolucionária da sociedade e imersa na busca de um paradigma capitalista "neoliberal" encontra-se a maioria dos partidos social-democratas europeus. Esta atuação da coluna cervical da social-democracia em função dos interesses do imperialismo – tão evidente na agressão da OTAN contra a Iugoslávia, em momentos em que os partidos membros da Internacional Socialista governam na maior parte dos países da União Européia – não é nenhuma novidade.
Só para recapitular o passado recente, iniciado o período de pós-guerra, a social-democracia permitiu a continuidade e até impulsionou o "Estado de bem-estar", implantado pela Democracia Cristã no alvorecer da reconstrução da Europa Ocidental, esquema que, como já expusemos anteriormente, respondia aos interesses da Guerra Fria. Na medida em que as condições do mundo obrigam o imperialismo a reviver e promover o neoliberalismo em escala universal, durante os anos 80, esse papel passa a corresponder aos partidos social-democratas que governaram a França, a Espanha, Portugal, a Itália e a Grécia. (3) Com a queda da URSS, a social-democracia européia sentiu-se "liberada" da necessidade de competir pela liderança da luta em prol da "superação histórica", ou sequer pela "reforma estrutural" da sociedade capitalista. Assim, aqueles que mantinham o apego formal à teoria de Marx sobre o capitalismo, apressaram-se a declarar seu abandono.
Na medida em que setores do próprio imperialismo se dão conta das conseqüências que tem o alcance da "oscilação do pêndulo" em direção à direita, na atualidade, o núcleo dos principais partidos da social-democracia européia competem entre si, num afã em busca da "Terceira Via" de Tony Blair ou do "Processo Global" de Felipe González, com a pretensão de encontrar uma panacéia capaz de, por um lado, manter a espiral da concentração transnacional da propriedade, da riqueza e do poder político e, por outro, limitar a desestabilização social e política que esse processo provoca de maneira inevitável.
Não se pode descartar que o sistema capitalista esboce uma política "pós-neoliberal" sob qualquer denominação, concebida para evitar a explosão das contradições, mas, nas atuais condições, a menos que se produza uma destruição em massa das forças produtivas – quer seja através de uma nova grande crise econômica ou de uma guerra de grande intensidade
– qualquer esquema que se implante funcionaria, com a diferença do elaborado por Keynes, contra os requisitos do processo de reprodução ampliada do capital. Em outras palavras, a busca de uma paradigma pósneoliberal marcha ao contrário da evidência teórica e empírica existente no mundo de que é impossível manter um esquema de redistribuição social da riqueza, que esteja subordinado a um esquema de reprodução do capital cujo fundamento é a concentração aguda e acelerada.
Em meio à desorientação política e ideológica resultante da queda da União Soviética e de uma conjuntura na qual a ruptura da ordem institucional vigente – e sua substituição imediata por um poder revolucionário alternativo – não é a característica que durante os últimos anos fortaleceu o possibilismo, que é a forma contemporânea dos postulados clássicos da social-democracia, corrente que se estendeu como um dos ingredientes que condicionam os debates sobre "a alternativa", dos quais participa um amplo espectro da esquerda – pelo menos que temos conhecimento – na Europa e na América.
O possibilismo é parte da vulgarização da teoria marxista realizada durante as décadas de 60 e 70 pelas duas vertentes ligadas ao seu desenvolvimento e à aplicação prática, por um lado, o dogmatismo e o manualismo da produção política e ideológica oficialista na URSS e, por outro, as diversas escolas "antidogmáticas" do "marxismo ocidental" que, confundidas e deslumbradas pelo auge do capitalismo de pós-guerra nos países imperialistas: confundiram o "Estado de Bem-estar" transitório e geograficamente limitado com a evolução histórica do modo de produção capitalista; começaram a detectar "erros" e
"buracos negros" na teoria de Marx sobre a crise do capitalismo, a teoria do valor, a luta de classes e outros temas: pretenderam "corrigir" as "limitações" e "insuficiências" do marxismo com á combinação eclética de fragmentos de outras disciplinas; e, alguns terminaram fazendo uma "salada", enquanto outros se encontram hoje agrupados nas fileiras do pós-marxismo.
O possibilismo parte das premissa estabelecidas pelos ideólogos do imperialismo contemporâneo, ou seja, há pseudoteorias sobre a "capacidade regeneradora" do capitalismo, o "poder indisputável" do imperialismo contemporâneo e a consumação de uma "mudança civilizadora" que invalida 2 revolução social, quanto realiza uma interpretação que denigre a história da esquerda e do movimento popular e, subscreve a tese de que o capitalismo é sinônimo de democracia ou, ao menos de que o capitalismo é o sistema social no qual, em uma perspectiva histórica é possível construir a democracia.
O possibilismo baseia seus ataque' contra o socialismo: 1) nos argumentos utilizados pelo imperialismo n2 campanha de descrédito lançada desde o triunfo da Revolução de Outubro de 1917; 2) na amplificação exagerada dos erros e desvios antidemocráticos que realmente foram cometidos no chamado socialismo real ingredientes gratuitos que contribuíram para a perda do prestígio de ideal socialista e para a fragmentação do movimento revolucionário mundial; e 3) na utilização de um "ideal de sociedade" concebido em "condições assépticas de laboratório", fora de tempo e do espaço, para julgar todo, os projetos de construção socialista conhecidos até hoje.
Para o possibilismo, a "democracia entendida como o aperfeiçoamento li liberalismo burguês, através das reformas constitucionais e das leis eleitorais, o combate à fraude, a verificação eleitoral internacional e outros aspectos políticos e jurídicos nacionais que fortaleça o respeito à preferência dos eleitores, constitui o objetivo supremo a alcançar, a partir do qual, sem uma transformação radical das relações capitalistas de produção estarão estabelecidas automática e definitivamente as condições para resolver os problemas políticos, econômicos, sociais e ecológicos que agoniam os povos. Através da "democracia", os eleitores e seus eleitos serão capazes de conjurar as pressões das grandes potências, neutralizar a ação nociva das empresas transnacionais, rebater o poder das elites tradicionais dominantes e avançar em direção ao desenvolvimento econômico e social sustentável, com justiça e igualdade.
Poderia parecer que o capitalismo é o cenário no qual, mediante a "democracia" possibilista, podem ser cumpridas as tarefas ainda inacabadas da revolução social, como seria, por exemplo, a erradicação de todo o vestígio de discriminação racial, de gênero, de nacionalidade, religiosa, etária e de condição física ou mental, ou o aperfeiçoamento constante da democracia participativa e representativa, ou a satisfação das necessidades materiais e espirituais, mais complexas e específicas, de indivíduos ou grupos, que surgem como resultado natural do desenvolvimento político, econômico, social e cultural da própria revolução.
O dilema, para o imperialismo, é compensar a concentração transnacional da riqueza e do poder político de que depende sua reprodução
Em contraposição com a "severidade" com que "julga" a obra inacabada dos processos de construção socialista, o possibilismo fecha os olhos para o fato de que a "democracia", a que se aspira como objetivo supremo dentro da sociedade capitalista, encontra-se em contradição com o fato de que – devido à necessidade vital de concentrar riqueza e excluir a população em uma magnitude e velocidade sem precedentes – o modo de produção capitalista se vê atualmente obrigado a adotar o conteúdo mais antidemocrático de sua história, não só do ponto de vista econômico e social, mas também pelo esvaziamento dos sistemas políticos nacionais, em virtude do que seu funcionamento depende cada dia menos dos mecanismos de participação e representação cidadã – aos quais se rende um culto crescentemente formal (pluripartidarismo, candidatos, eleições, "liberdade de imprensa", eliminação de fraude etc.) – enquanto o poder político real se desloca em direção aos centros imperialistas, que o exercem diretamente mediante a aquisição de funções – legislativas, executivas e judiciárias – do Estado imperialista transnacional e por meio de organismos supranacionais sob o seu controle, como o Fundo Monetário internacional (FMI), o Banco Mundial, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), entre outros.
No extremo oposto ao possibilismo acerca da "alternativa" se encontram os redutos do voluntarismo, que tem o mérito de manter seu apego à idéia da revolução, mas se mostra incapaz de captar o caráter dialético da teoria marxista e, por conseguinte, deixa de lado o fato de que a conquista do poder político não é um ato que depende exclusiva ou fundamentalmente da vontade dos revolucionários. Lênin – a quem com muita freqüência se acusa de haver tido um pensamento dogmático a esse respeito – reitera em suas obras que, para que se possa produzir uma revolução não basta que "os de baixo" não desejem continuar sendo dominados, mas é indispensável que "os de cima" tenham perdido toda a capacidade de exercer sua dominação. (4) Lênin reconhece a existência de diversas formas de luta que correspondem a uma diversidade de situações concretas, mas também compreende que a atividade fundamental de um partido revolucionário seja orientada em função dessa realidade. (5)
Se partirmos de uma perspectiva leninista, fica impossível desconhecer tudo o que, durante a última década, a esquerda e o movimento popular conquistaram em numerosos países capitalista da Europa, da Ásia, da África e da América Latina, pela combinação da conquista de espaços institucionais em governos, legislativo e órgãos dos poderes estaduais e municipais e a acumulação social e política reunida na luta contra o neoliberalismo.
A acumulação política e social constitui, efetivamente, a forma de luta fundamental que – com exceção das situações regionais e nacionais nas quais a crise do capitalismo alcança suas expressões mais críticas – corresponde à situação conjuntural, na qual, de maneira crescente "os de baixo" não querem continuar sendo dominados e explorados, mas "os de cima" ainda podem manter seu domínio e exploração. Não obstante, o horizonte histórico da esquerda está determinado pelo fato de que as únicas possibilidades que se apresentam ante a humanidade são a destruição do planeta como conseqüência da explosão das contradições antagônicas insolúveis do modo de produção capitalista, ou a substituição deste último por uma sociedade superior, aquela que Karl Marx batizou com o nome de comunista.
O triunfo do comunismo ocorrerá somente pela intensificação extrema das contradições que, efetivamente também podem conduzir ao fim da civilização humana, e também pela ação consciente e organizada dos povos. É racional pensar hoje em dia que a ação consciente e organizada dos povos seja capaz de destruir o imperialismo? Sim, ainda que em prazos que não possamos precisar, porque tanto a crise econômica quanto a guerra têm o potencial, por um lado, de abrir espaço para que se amplie a vida do sistema de produção capitalista e, por outro, de criar uma nova situação revolucionária e, ainda neste último caso, segundo as palavras de Lênin: " … nenhum socialista, nunca, nem em parte alguma, garantiu que hão de ser precisamente a guerra atual (e não a seguinte) e a situação revolucionária atual (e não a de amanhã) as que originarão a revolução." (6)
Contribuição da representação do Partido Comunista de Cuba ao debate do documento central do IX Encontro do Fórum de São Paulo, realizado em Manágua, Nicarágua, de 19 a 21 de fevereiro de 2000 Tradução de Maria Helena D'Eugenio.
Notas
(1) "As lutas de classes na França de 1848 a 1850", Obras Escolhidas, em três volumes, Editorial Progresso,
Moscou, 1973, vol. 1, p. 296
(2) A diferença entre o neoliberalismo clássico e a doutrina de Hayek é que o primeiro advogava que o Estado se abstivesse de intervir na economia e na sociedade, enquanto que a segunda propunha que se interviesse, de modo a estabelecer regras que beneficiassem a competição em caráter geral, não a indivíduos ou grupos específicos. Em essência, é uma ideologia cuja função é legitimar o fato de que há ganhadores e perdedores dentro da sociedade. Em outras palavras, Hayek proclama que o Estado pode intervir na economia e na sociedade de modo a garantir as condições que favoreçam aos ganhadores, mas não para mudar a sorte dos perdedores.
(3) Segundo Perry Anderson, "a experiência social-democrata foi uma tentativa de criar a equivalência no sul da Europa, daquilo que havia sido a social-democracia do pós-guerra no norte Europeu em seus anos dourados. Porém, o projeto fracassou e, já em 1982 e 1983, o governo socialista na França se viu forçado pelos mercados financeiros internacionais a mudar seu curso e reorientar-se para fazer uma política muito mais próxima da ortodoxia neoliberal, com prioridade para a estabilidade monetária, a contenção orçamentária, as concessões fiscais aos capitalistas e o abandono
do pleno emprego. Ao final da década, o nível de desemprego na França era mais alto do que na Inglaterra dos conservadores. Na Espanha, o governo González jamais tratou de realizar uma política keynesiana ou de redistribuição. Ao contrário, desde o início de seu regime, mostrou-se firmemente monetarista em sua política: grande amigo do capital financeiro, favorável por princípio à privatização e sereno quando o desemprego na Espanha alcançou o
recorde europeu de 20% da população ativa."(Perry Anderson, O avanço do neoliberalismo e suas lições para a esquerda, em: Renán Veja ( Editor). Marx e o Século XXI. Uma defesa da história e o socialismo, Edições Pensamento Críticos, Santafé de Bogotá, 1977, pp. 335-359).
(4) A lei fundamental da revolução confirmada por todas as revoluções e, em particular, pelas três revoluções russas do século XX, consiste no seguinte: para a revolução não basta que as massas exploradas e oprimidas tenham consciência da impossibilidade de continuar vivendo como vivem e exijam mudanças; para a revolução é necessário que os exploradores não possam continuar vivendo e governando como vivem e governam. Só quando "os de baixo" não querem e os "de cima" não podem continuar vivendo da forma antiga, só então a revolução pode triunfar." Vladimir Ilich Lênin:
Esquerdismo, doença infantil do comunismo, em O .C. , vol. 41, pg. 72. (5) Quando as condições objetivas convertem a luta parlamentar na principal forma de luta, é inevitável que se acentuem os traços do aparato para a luta parlamentar no partido. Pelo contrário, quando as condições objetivas originam a luta de massas em forma de greves políticas de massas, o partido do proletariado deve dispor de "aparatos" especiais, não similares aos parlamentares. Um partido organizado do proletariado que reconhecesse a existência de condições para as insurreições populares e não cuidasse de criar o aparato correspondente, seria um partido de charlatães intelectuais. Vladimir Ilich Lênin. A Crise do Menchevismo, em O . C. , vol. 14, p. 168
(6) Vladimir Ilich Lênin. A Bancarrota da II Internacional, em O . C. , vol. 26,p.232
EDIÇÃO 57, MAI/JUN/JUL, 2000, PÁGINAS 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52