O impacto das políticas neoliberais na organização das cidades
A globalização tem um impacto fulminante no problema da urbanização. Segundo Paul Singer e Celso Furtado, o mundo não só acelera o seu processo de urbanização, mas a vida urbana está mais próxima de todos em qualquer lugar do Planeta, independente de estarmos na cidade ou não. Observa-se assim uma situação de urbanização quase completa nas regiões mais desenvolvidas do capitalismo e um dos problemas que se coloca é a possibilidade ou não do planejamento nas cidades.
O LADO benéfico da globalização é questionado num trabalho da própria ONU, que mostra a concentração de riqueza, em que apenas quatro senhores no mundo dispõem da riqueza superior ao PIE de 31 nações. Entre eles está o dono da Microsoft. Outro levantamento mostra que se os 400 mais ricos do mundo dedicassem 4% da sua riqueza ao longo de 20 anos investindo em habitação, saneamento e educação, a humanidade teria resolvido esses problemas sediados nas cidades e áreas urbanas. O significado do discurso ideológico da globalização é o impacto dessa concentração brutal da riqueza mundial.
Como resultado desse acúmulo de riqueza fantástico, num país continental como o Brasil, temos o exemplo de São Paulo, e região, que concentra a riqueza nacional. Outra evidência é o fato do país ser obrigado a mandar mais de 50% da riqueza produzida anualmente para os grandes centros do mundo, os grandes centros financeiros. É uma brutalidade imensurável, o povo é obrigado a trabalhar o ano todo e o resultado do esforço de toda a nação, já superconcentrado internamente, – pois a nossa é a maior concentração de renda do mundo – é massivamente desviado.
Isso agrava sobremaneira os problemas urbanos e estamos assistindo, hoje, à barbárie. Ao chegarmos aos 6 bilhões de habitantes no mundo, desse total 2 bilhões sequer servem para ser explorados. Para mostrar a gravidade da concentração da riqueza imperante no sistema capitalista contemporâneo, com a chamada globalização e o "fim da história", surgem teses defendendo que a população do mundo tem de parar de crescer. O professor Milton Santos diz que não, pois o mundo com o conhecimento acumulado hoje na área da ciência, da biotecnologia, da produção de riqueza, suportaria tranqüilamente 150 bilhões de seres humanos. O maior problema é o sistema político, econômico e social. Ou seja, o sistema capitalista é que impede que se possa atender às necessidades dos seres humanos com o mínimo de dignidade.
Celso Furtado, considerando que a globalização vai engolir o Brasil, chegou a declarar que o nível do comprometimento do país no ritmo que FHC vem impondo desde 1994, em pouco tempo levará a que o endividamento externo e interno brasileiro absorva toda a riqueza produzida.
Nos exemplos das cidades brasileiras mais fortes economicamente, a produção de riquezas também vai agregando em tomo de si os principais problemas, a exemplo da violência urbana. As professoras Raquel Rolnik e Ermínia Maricato têm tratado o tema. Os dados entre 1989 e 98 mostram que foram assassinadas mais de 60 mil pessoas no Rio de Janeiro e em São Paulo. Nos primeiros seis meses de 1999, foram assassinadas 6 mil pessoas no município de São Paulo e sua região metropolitana
O Estado brasileiro, ao longo do tempo, tratou de enfrentar de diversas formas os problemas urbanos. Um dos mecanismos foi o de liquidar parte de direitos dos trabalhadores brasileiros, fazendo nascer o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Chegamos em 1998 a acumular no FGTS recursos da ordem de 13 bilhões de reais. Em 98 ainda havia um mínimo de paridade com a lógica monetarista do governo Fernando Henrique – tínhamos lá 13 bilhões acumulados no FGTS.
Conselho Monetário Nacional decidiu então contingenciar os recursos desse Fundo destinados à aplicação em saneamento, problemas sanitários, em tratamento do lixo, ampliação da rede de água, construção de novas moradias etc. Contigenciaram-se, assim, recursos destinados a atender a população brasileira em áreas fundamentais que representam a maior parte dos problemas urbanos. Para os sistemas de transportes, hoje praticamente não existem recursos e financiamentos razoáveis.
Ao mesmo tempo o governo brasileiro é capaz de dar empréstimos vultosos para a privatização das empresas estatais ou para empreendimentos como a construção de montadoras de automóveis. Ou seja, o Estado brasileiro dispõe de bilhões para financiar a venda de empresas estatais e impede que os recursos vinculados sejam efetivamente usados para a sua finalidade principal. Os governos municipais e estaduais estão impedidos de usar o dinheiro público por um ato do Conselho Monetário Nacional, vindo do FMl, que obrigou o Conselho a bloquear o uso desses recursos que, ao contrário de serem aplicados nas áreas urbanas de nosso país, estão sendo destinados para as negociações da dívida brasileira.
Outro aspecto importante está ligado à batalha que o povo brasileiro vem travando há muitos anos pela reforma urbana. Além de estar exigindo medidas legais, leis municipais, estaduais, federais, o povo vem tentando fazer a reforma urbana – que tem sido envolvida de muita violência. Para garantir direitos mínimos a um pedaço de chão para morar, levantar um barraco, às vezes na margem dos córregos, ocupando terra, a população enfrenta a polícia e os proprietários. É uma luta até mais renhida que a batalha da reforma agrária, embora não tenha o mesmo impacto na mídia.
O governo federal não discute o problema do déficit de 5,5 milhões de moradias como um problema nacional; o problema do fornecimento de água tratada para o conjunto da população brasileira como um problema de saúde pública vital; nem mesmo o problema do esgotamento sanitário – questão gritante de saúde pública; ou os lixões espalhados pelo Brasil. Ainda são tratados como um problema municipal – o município que se vire, que cobre mais uma taxa do lixo, do esgoto, pois esse é um problema eminentemente local e que não exige portanto liberação de Fundo de Garantia ou outra forma para sua solução.
A população, a seu modo e diante das suas necessidades, foi fazendo a reforma urbana possível, que significou em grande parte das regiões urbanas brasileiras, das metrópoles principalmente, a ocupação de áreas que consideramos como de preservação ambiental.
Na década de 80 o problema urbano é pouco citado do ponto de vista legal. Anteriormente tivemos o Plano Diretor; depois, planos que trataram da questão urbana No período do governo Goulart tivemos mecanismos e fóruns nacionais para tratar desse assunto. Com a ditadura militar implementou-se a criação do BNH, para tentar resolver esse dilema habitacional. Não se conseguiu, pois das 27 milhões de habitações que foram construídas no Brasil nesse período, o BNH foi responsável pela construção de apenas 7 milhões.
Foi nesse sentido que a Confederação Nacional de Associações de Moradores, CONAM, foi à Assembléia Nacional Constituinte com muitas emendas populares, num esforço coletivo da sociedade brasileira – milhões de assinaturas, com a participação ativa do Instituto dos Arquitetos do Brasil, da Associação dos Geógrafos, da FASE Nacional, e várias entidades sindicais – para fazer com que constasse na nova Constituição brasileira o Capítulo do Desenvolvimento Urbano, que colocou o Plano Diretor como um grande instrumento para debate na municipalidade através da Câmara de Vereadores. Quem vai decidir sobre o Plano Diretor são os vereadores. Os planos diretores recentes têm sido alvo de grande debate na maioria dos municípios brasileiros, com a ação do movimento social organizado. Tem fervilhado o debate sobre as questões da cidade, o que começou a exigir a lei federal de regulamentação desse Capítulo na Constituição Federal.
Foi assim que surgiu o projeto do Estatuto da Cidade (ver Princípios 56), que já vinha sendo tratado desde antes da Constituição e que se transformou num projeto de lei, de autoria do senador Pompeu de Souza, que foi o primeiro a ser aprovado: agrupando assim, outros 17 projetos que tratavam da regulamentação do capítulo da questão urbana na Constituição. O projeto do ex-senador Pompeu de Souza (PL 5.788/90) está na Comissão do Desenvolvimento Urbano e Interior da Câmara dos Deputados (hoje já aprovado).
A questão crucial da reforma urbana e também da reforma agrária é o problema da propriedade. As cidades se transformaram em reféns do instrumento mais explosivo do capital imobiliário que ganhou dimensão nos anos 80. É preciso enfrentar o capital que dispõe da cidade no seu conjunto e das vantagens enormes que vão surgindo com os empreendimentos. Uma cidade que consegue ter 100% de água, por exemplo, representa uma vantagem espetacular que o poder públi-co – toda a cidade – ofereceu, e a cidade pagou; mas só que uns poucos especuladores vão ganhar – com engordas de glebas, por onde passam esses empreendimentos. O setor não colocou nenhum centavo, mas pode auferir rendas fabulosas daquele pedaço de chão. É uma mais-valia coletiva que a cidade oferece a esses especuladores imobiliários, porque é fruto do esforço de todos, transmitido pelo poder público, em serviços e benefícios que a cidade toda aufere a partir de pressões e contrapressões da sociedade. Essas glebas de engorda nas médias e grandes cidades, e até mesmo nas pequenas, passam a ser instrumentos espetaculares nas mãos de meia dúzia de capitalistas do setor imobiliário.
O artigo 7° do projeto trata da questão do IPTU progressivo no tempo e de uma série de instrumentos para coibir a existência de glebas que não cumpram sua função social. Isso foi colocado no substitutivo do Estatuto, mas sabemos que vamos enfrentar resistências na votação de um texto como esse. O próprio Fórum Nacional de Reforma Urbana, que tem mediado o debate na Câmara dos Deputados ao longo dos últimos 10 anos, tem buscado um ponto de consenso entre as diversas correntes. Os dois substitutivos anteriores tanto da Comissão de Economia quanto da Comissão de Meio Ambiente eram substitutivos acordados entre o movimento social organizado, associações de moradores, IAB, FASE e o capital especulativo urbano. O capital imobiliário esteve presente em todas essas negociações.
Embora fosse minoria nesse Fórum, sempre deixou claro o seu peso na Câmara dos Deputados. Por isso, as resistências que iremos enfrentar na votação do substitutivo (Estatuto da Cidade) só poderão ser eliminadas se também contarmos com uma pressão significativa do movimento social.
Alguns pontos são centrais no substitutivo: garantir a regulamentação do art. 182 da CF; garantir os instrumentos de penalidade para a subutilização de áreas consideradas fundamentais para moradia, principalmente, nas cidades; dar velocidade às ações de usucapião. Criamos uma série de outros instrumentos, muitos deles já em pleno uso por algumas administrações. Outro capítulo trata da gestão democrática, porque as cidades em geral não aprovaram uma legislação regulamentando plebiscito e referendo. Esses dois instrumentos foram
colocados como importantes para serem utilizados pelos gestores públicos municipais.
Surge então uma questão chave: será possível melhorar a vida nas cidades só com estes instrumentos diante do governo neoliberal no plano nacional?
Se for possível ampliar tais mecanismos de participação que são mais próximos do município, onde a pressão é mais sensível, com instrumentos mais eficazes e próximos da cidade, no município, se não permite solucionar esse dilema nacional, pelo menos é possível ancorar algumas reivindicações do movimento popular. Procuramos, assim, fazer avançar a luta pela reforma urbana e enfrentar a especulação desenfreada das políticas neoliberais.
Inácio Arruda é deputado federal pelo PCdoB-CE e ex-presidente da Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior. Este texto reproduz parcialmente sua intervenção no 11 Encontro Nacional de Parlamentares do PCdoB, realizado em novembro de 1999 em Brasília,
FLÁVIO VILLAÇA
A globalização não é nada mais do que a mais recente etapa de transformação do capitalismo – o neoliberalismo é a sua face política – e a manifestação econômica dessa última etapa de concentração e expansão do capital transnacional. Há algumas diferenças com relação ao velho imperialismo que merecem destaque.
Uma delas é que hoje não é mais o capital industrial que domina, mas sim o capital financeiro – são os bancos e não a empresa multinacional. Há uma "politização" do capital financeiro internacional, que se traduz no fato desse capital financeiro internacional dominar, ou procurar dominar, diretamente os estados nacionais. Enquanto o velho imperialismo trabalhava mais na esfera econômica pela expansão mundial da empresa produtiva multinacional, o capital financeiro hoje, representado pelo FMI e pelo Banco Mundial, trata diretamente com os governos nacionais. É o FMI que dita as normas de políticas públicas, particularmente política econômica, para México, Indonésia, Brasil… e assume a posição política.
Outra diferença é a ideologia, pois com o fIm da União Soviética e sua experiência socialista, o capitalismo reina inconteste praticamente sem oposição. A oposição existe, sempre existirá, mas está fragilizada e o socialismo atravessa uma crise, que se manifesta de maneira forte no campo intelectual. A ideologia é a idéia dominante produzida pela classe dominante para facilitar a dominação, que hoje chamamos de marketing e que visa dar à sociedade uma imagem dos fatos. Diz-se que o que interessa é a imagem dos fatos e não os fatos realmente como são – e a ideologia, então, é essa imagem.
A classe dominante universal, no caso multinacional, produz uma imagem positiva da globalização – tida em parte como inofensiva, tem seus problemas mas é inevitável, veio para fIcar, não adianta lutar contra. Já o velho imperialismo tinha uma imagem negativa e a classe dominante não falava dele – quem falava era a esquerda. Hoje, não, todo mundo fala de globalização com a maior tranqüilidade.
Isso é um dos efeitos perversos desse império tranqüilo do capital multinacional fInanceiro e dos Estados Unidos. Sem oposição, aparece como sendo eterno, e, se é eterno, a História não interessa – a história diz respeito exatamente à mudança, aos movimentos do capitalismo e da oposição a ele. E o fim da História decreta o fim do futuro e da esperança. É sintomático que se viva J.10 mundo de hoje só com referências ao passado: um mundo pós-socialista, pós-marxista, pós-industrial, pós-moderno; não temos futuro. Essa é a outra característica da globalização.
Por outro lado, se a globalização não é senão a mais recente manifestação da expansão do capitalismo, seus efeitos, inclusive sobre a cidade, não são assim novidade. Claro que aos novos o desemprego atinge níveis nunca antes manifestados, mas há uma coisa que permanece: a produção da desigualdade – a produção do abismo entre os mais ricos e os mais pobres tem se destacado.
O Brasil é o país de maior desnível de distribuição de renda do mundo. Mas há muito mais que isso, há o desnível cultural e o político, que provoca então o fortalecimento das forças do atraso. Essa manifestação do neoliberalismo, da globalização, no sentido de continuar produzindo o abismo entre ricos e pobres, particularmente no Brasil, é o traço comum desde o velho imperialismo nos últimos 150 anos de capitalismo.
Nesse percurso se estabelece a ponte com os nossos problemas urbanos, pois a rigor, eles, nestes tempos de globalização, continuam sendo aqueles decorrentes dos grandes desníveis de riqueza e de renda que há no Brasil. Deve-se, assim, invocar a História para penetrar ne campo dos temas do planejamento urbano, particularmente do Plano Diretor, e depois o Estatuto da Cidade.
Uma rápida história diz respeito a como a classe dominante tem lidado com os problemas urbanos, e como isso desemboca no chamado Plano Diretor de que trata o artigo 182 da Constituição atual e muito do que está no projeto do Estatuto da Cidade. Esses problemas, podem ser resumidos em aspectos muito simples: habitação, transporte, saneamento e meio ambiente.
A década de 1910 é o período que marca o início da consciência popular dos problemas urbanos. A classe dominante até essa época não se preocupava, pois não precisava lidar com eles, que vão continuar se acumulando. Nossa classe dominante vai continuar despreocupada até a década de 30 mais ou menos, quando então a reação da classe operária, as greves, embora não ainda por questões urbanas, demonstram que a classe dominada começa a se manifestar na sociedade brasileira. A nossa burguesia fica então na obrigação de dar resposta aos problemas urbanos que começam a se agravar.
A sociedade inicia a se debruçar sobre os problemas urbanos como transporte, habitação, saneamento. A elite responde com o Plano Diretor por volta das décadas de 30 e 40, e desde então tem procurado iludir a classe dominada com tal plano – com a idéia de que o caos urbano não é decorrente da injustiça, da desigualdade de renda ou da pobreza, e sim da falta de planejamento. O primeiro plano a propor leis foi o plano de um francês para o Rio de Janeiro exatamente na década de 30, pois os planos antigos eram só de obras de embelezamento. Este tipo de esforço continuou.
Na década de 1980 as massas populares se aglutinam em tomo dos grandes temas das cidades e têm propostas como a emenda popular em tomo da reforma urbana. Os movimentos populares por habitação e terra urbana crescem e há pressão sobre os nossos legisladores para aprovar questões fundamentais da reforma urbana. Porém, as forças reacionárias ligadas ao capital imobiliário acabam encaixando um artigo em lugar daqueles referentes à reforma urbana na CF de 1988. Esse artigo coloca novamente, depois de 50 anos, o Plano Diretor como a grande arma para se enfrentar os problemas urbanos.
As respostas a essa determinação da nossa Constituição, de que as nossas cidades com mais de 20 mil habitantes estão obrigadas a ter Plano Diretor, se deram por tentativas de renovação do Plano Diretor em várias cidades brasileiras administradas por forças progressistas, e nenhuma delas conseguiu sucesso. Os planos diretores aprovados a partir das décadas de 70 e 80 são puro discurso, um alinhavar de princípios gerais, nenhum deles com aplicação prática concreta possível. São princípios gerais, mesmo os aprovados (por exemplo em São Paulo) por Câmaras Municipais não representativas. E mesmo esses planos diretores nunca foram usados. Eles não têm o que cumprir porque apenas contém princípios gerais que nunca foram invocados para dirimir qualquer polêmica.
Porém, houve, no final dos anos 80 tentativas de administrações progressistas para elaborar e tentar aprovar planos diretores com dispositivos autoaplicáveis.
Nesse período, nos anos 80, surge um novo personagem muito importante na cena urbana brasileira: é o capital imobiliário – especificamente aquele capital que tem interesse muito particular na cidade, na localização dos melhoramentos públicos, o que vai ser uma novidade.
Que capital tem interesse na localização dos melhoramentos urbanos? É aquele capital que vai tirar partido da segregação que é um processo que ocorre em toda cidade brasileira média ou maior. A segregação que vai ocorrer na cidade não é por bairro, pois o bairro é segregado uniformemente de uma mesma classe social. A segregação que se desenvolve há muito tempo na sociedade brasileira é por grandes regiões da cidade. Não é uma segregação absoluta e essa grande região da cidade é socialmente misturada. É o advento do capital imobiliário que tem interesse na localização da obra.
Então ele vai querer, por exemplo, túneis e aterro para a zona sul no Rio de Janeiro. Para a empreiteira é indiferente se o aterro é em Niterói, no fundo da Bahia ou na zona sul. Mas para o capital imobiliário não. O capital imobiliário vai surgir como a grande facção do capital interessada na legislação urbanística, em zoneamento e em Plano Diretor. Esses planos que não conseguiram aprovação no início dos anos 90, que foram elaborados por administrações progressistas, colocaram limitações que não eram aceitáveis ao capital imobiliário.
E o capital imobiliário surge então como o grande interessado no chamado planejamento urbano, no zoneamento e no Plano Diretor.
Não é à toa, por exemplo, que na comissão de zoneamento de São Paulo o capital imobiliário tenha uma participação constante, atuante, efetiva, e os seus representantes não mudam quando muda o prefeito. Os representantes do setor são os mesmos há 15 anos e conhecem a legislação urbanística na palma da mão, e em grande parte colaboram para "aperfeiçoar" a legislação urbanística.
Mas toda luta tem suas brechas e a dialética nos diz que há sempre possibilidade de oposição. Se não houver oposição advém a estagnação, não há movimento nem transformação. Então, a própria reação, o próprio conservadorismo, as próprias forças do atraso trazem, pela luta do oposto, o germe do seu próprio combate. O artigo 182 da CF, com todas as restrições, é um artigo que tem um potencial de transformação urbana, de reforma urbana impressionante: dá ao Plano Diretor uma chance de transformação. Porque tal artigo simplesmente diz que é o Plano Diretor quem vai falar sobre a função social da propriedade urbana, o que é algo que chega a surpreender. Não é à toa que há mais de dez anos não se consegue aplicar esse artigo. Talvez a estratégia da direita seja essa de conceder, de protelar, de não viabilizar. Mas parece que o Estatuto da Cidade, que é a lei necessária para viabilizar esse artigo, está para sair.
O conceito de função social do artigo 182 é algo muito nebuloso e tem sido usado para se postergar o uso anti-social da propriedade. Juridicamente é complicado dizer quando se atende ou não a função social, que a propriedade tem de atender a sua função social. Estão invadindo edifícios no centro de São Paulo com base nisso. Os edifícios estão abandonados e a propriedade abandonada não preenche sua função social. Mas pode se entrar na justiça contra as ocupações. Em seguida vem o obstáculo. Diz: "É facultado ao poder público municipal mediante lei específica para a área incluída no Plano Diretor exigir, nos termos da lei federal, que o proprietário do solo urbano não edificado subtilizado, ou não utilizado (é o caso dos edifícios que estão invadindo no centro de São Paulo, são propriedades não utilizadas.) que promova seu adequado aproveitamento, sob pena sucessivamente de … (então vêm aí três tipos de sanções)".
A lei tem, assim, uma grande abertura para posições progressistas.
Por outro lado, é preciso tomar cuidado porque nem sempre as possibilidades oferecidas pelas leis são efetivamente aproveitadas mesmo pelas forças progressistas. Precisamos ficar atentos para a efetiva utilização dessa lei, com potencial revolucionário tão grande, que é possível antecipar batalhas ferozes no âmbito das cidades para aprovar esses planos diretores. Pois se vê uma possibilidade dos planos diretores deixarem de ser peça de retórica, de ser puro discurso para incorporar o controle do uso social da propriedade urbana. lr.:D
Flávio Villaça é arquiteto e Professor de Arquitetura e Urbanismo da USP. Este texto reproduz parcialmente sua intervenção no 2º Encontro Nacional de Parlamentares do PCdoB, realizado em novembro de 1999 em Brasília.
EDIÇÃO 57, MAI/JUN/JUL, 2000, PÁGINAS 69, 70, 71, 72, 73