10 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente – Redução da maioridade penal: solução ou demagogia?
No dia 05 de outubro de 1988, após mais 20 anos de ditadura militar, era promulgada a Constituição Federal. Fruto do processo de redemocratização do país e de conseqüente efervescência dos movimentos sociais, a Carta Magna expressou em seu conteúdo reivindicações do movimento popular em seus mais variados setores. Entre os avanços registrados foi significativa a constitucionalização da idade mínima para a imputabilidade penal em 18 anos, assim disposta no artigo 228: "São penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, sujeitos às normas da legislação especial".
AINDA SOB efeito das lutas reivindicatórias pós-ditadura, foi promulgada a Lei n° 8.069, de 13 de julho de 1990, nominada Estatuto da Criança e do Adolescente, fruto de uma intensa luta das entidades ligadas aos Direitos Humanos e à defesa dos direitos da criança e do adolescente. O Estatuto representa uma das legislações mais modernas do mundo no trato da questão e importante avanço no sentido da humanização do trato com o jovem infrator.
Neste ano 2000 o Estatuto completa 10 anos sem nunca ter sido colocado em prática mas, a contrario sensu, ferozmente atacado pelas elites, que tentam através disso e, em especial, com a proposta de redução da maioridade penal, esconder sua total incompetência para sanar as causas da violência crescente em nosso país.
Para caracterizar melhor o problema há de se retomar o histórico de desenvolvimento das legislações referentes ao limite de idade para imputabilidade penal.
É certo que o primeiro registro histórico de trato normativo diferenciado entre "maiores" e "menores", foi aquele instituído em Roma pela Lei das XII Tábuas, de 4S0 a.c., que distinguia os infantes, púberes e impúberes. Essa legislação já previa um
trato diferenciado aos mais jovens que eram punidos sob a máxima: "os pupilos devem ser castigados mais suavemente".
Na legislação nacional a Lei Orçamentária n° 4.242, de 1921, foi a primeira a tratar os mais jovens em situação penal especial. Em 12 de outubro de 1927 passou a vigorar o Código de Menores, tendo o Código Penal de 1940 limitado a menoridade penal em 18 anos. Em plena ditadura militar foi promulgada a Lei n° 6.697 de 1979, instituindo o novo Código de Menores que durou até 1990 com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente que veio superar as limitações daquele.
Quanto à questão do limite para a imputabilidade penal, a legislação brasileira a tratou de forma diferenciada no decorrer do tempo, adotando durante longo período o critério do discernimento, ou critério psicológico, segundo o qual seria necessário averiguar a capacidade do agente de discernir a ilegalidade de sua conduta delituosa, situação esta só estabilizada com a promulgação do Código Penal em 1940 que em seu art. 23 normatizou a idade limite de 18 anos.
Antes de adentrar na discussão política em relação à proposta de redução da maioridade penal, é necessário problematizar alguns aspectos jurídicos relevantes nesse debate.
Sobre o tema foram apresentadas em 1999 duas proposituras: uma do senador Romero Jucá, a Proposta de Emenda Constitucional n° 18 que altera o artigo 228 da Constituição Federal reduzindo a inimputabilidade penal apenas para os menores de 16 anos nos casos de crimes contra a vida ou contra o patrimônio efetuados com violência ou grave ameaça, e outra do senador José Roberto Arruda, Proposta de Emenda Constitucional n° 20 que altera o mesmo artigo 228, reduzindo a maioridade penal para 16 anos, e determinando que em relação àqueles menores de 18 e maiores de 16 prevalecerá o critério da capacidade de discernimento.
Pelo fato de a regra do limite para imputabilidade penal ter sido constitucionalizada pelo artigo 228 da CF/88, não há possibilidade de legislação infraconstitucional tratar da redução, mas mesmo sendo a matéria tratada por meio de Proposta de Emenda Constitucional, é expressiva a corrente doutrinária que entende ser o artigo 228 uma cláusula pétrea e portando imutável mesmo através de Emenda à Constituição. Os que defendem tal entendimento, decerto o mais correto, fundamentam sua posição na regra do parágrafo 4°, inciso IV, do artigo 60 da Constituição Federal de 1988 que veda a possibilidade de Emenda Constitucional tendente a abolir direitos e garantias individuais, argüindo que, a despeito do limite para imputabilidade penal não constar no artigo SO da Constituição, que trata dos direitos e garantias individuais, este artigo caracteriza-se perfeitamente como tal. O que é perfeitamente admissível por força do parágrafo 2°, do art. SO, que informa não ser o rol taxativo, existindo outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição, entre estes o da proteção especial à criança e ao adolescente.
Portanto, numa análise puramente técnico-jurídica resta claro que o artigo 228 da Constituição Federal é uma cláusula pétrea, não podendo ser alterado mesmo por emenda constitucional. É de se registrar que este é o entendimento do Conselho Penitenciário Nacional, manifestado em análise à Proposta de Emenda Constitucional n° 301196 de autoria do Deputado Jair Bolsonaro.
Adentrando na análise mais política do tema, temos de reconhecer que é profundo o apelo da proposta de redução da maioridade penal perante a sociedade, em especial, os próprios jovens, massacrados pela mídia e amedrontados pela onda de violência crescente. A sociedade tem caído no canto da sereia de uma proposta demagógica e irresponsável. Para enfrentarmos o debate com os defensores da redução é fundamental desmistificarmos algumas questões.
Entre os defensores da redução podemos distinguir dois segmentos: o primeiro, formado pelos ingênuos e desinformados que desconhecem os termos do Estatuto e insurgem-se contra o que não conhecem; e o segundo formado por aproveitadores de toda ordem desde a grande burguesia e o governo federal- que buscam esconder os reais motivos do crescimento alarmante dos índices de violência -, até os oportunistas de plantão que, valendo-se da situação de desespero do povo diante da criminalidade, travestem-se de justiceiros e adotam um discurso com um viés neonazista latente.
O argumento com mais apelo é aquele que afirma que os menores de 18 anos não são punidos pelos crimes que cometem, o que não é verdade (1). Os adolescentes não ficam impunes pelos crimes que cometem, pois são imputáveis perante o Estatuto que prevê medidas sócio-educativas que podem ser: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; regime de semiliberdade e privação da liberdade. Sendo assim, podemos dizer que os menores de 18 anos têm responsabilidade estatutária juvenil, através de medidas sócio-educativas, enquanto os maiores têm responsabilidade penal, através da pena, o que na prática significa dizer que um menor que comete um homicídio, por exemplo, vai ser responsabilizado e punido com a privação de sua liberdade, como o maior, apenas não irá para uma penitenciária e sim para um centro de recuperação.
Insistem, ainda, os defensores da redução que se os jovens podem casar, votar e querem dirigir, por que não poderiam responder pelos seus crimes. É necessário esclarecer que até 21 anos os jovens só podem casar com autorização dos pais, por força do artigo 185 do Código Civil Brasileiro. Quanto ao voto aos 16 anos é facultativo e expressa uma conquista da
"Se o Código Penal, válido para os maiores de idade, impedisse crimes ninguém iria cometê-los depois do 18° aniversário" juventude garantida com muita luta, enquanto a imputabilidade é compulsória. Em relação a dirigir, os adolescentes não podem e se pudessem a grande maioria não usufruiria do direito, visto que no Brasil automóvel ainda é um bem para poucos, ou seja, seria Carteira de Habilitação para os filhos dos ricos e cadeia para os filhos dos pobres.
Estranha-se o fato de não haver, por parte dos defensores da redução da maioridade penal, qualquer movimentação no sentido de reduzir a maioridade civil, fato perfeitamente explicável quando se envolve questão de direito sucessório e de patrimônio, no que a burguesia não tem o menor interesse de colocar em risco suas riquezas.
É também esclarecedor o dado de que 66% dos jovens responsabilizados na forma do Estatuto cometeram crimes contra o patrimônio, o que demonstra a clara face das elites de buscar não a recuperação de jovens infratores e sim, única e exclusivamente, a proteção de seu patrimônio, conquistado à custa da fome e da miséria do povo. (2)
Outro argumento com grande apelo em todos os setores da sociedade é afirmar que as crianças e os adolescentes são utilizados como braço dos maiores para a execução de crimes. É estranho que nesses casos os maiores não sejam punidos como co-autores ou em concurso de crimes como prevê o Código Penal. Ademais, reduzir a maioridade penal com esse objetivo só causaria a redução da faixa etária dos que são aliciados para o crime, que só o são porque os marginais estão substituindo o Estado e garantindo proteção e amparo àqueles que os governos abandonam, com sua política de exclusão.
Desmistificado o discurso que fundamenta a redução da maioridade, é necessário problematizar o porquê da imputabilidade se dar aos 18 anos e que critérios são adotados pelos que defendem a idade de 16 anos.
A despeito do senso comum crer que a idade de 18 anos foi definida com base em um critério biopsicológico, ou seja, a capacidade de discemimento, a definição da imputabilidade penal é uma questão de política criminal, social e educacional, que diz respeito à possibilidade de recuperação, à expectativa de vida, a condições sociais e também a aspectos psicológicos.
Foi o Seminário Europeu das Nações Unidas sobre o Bem-Estar Social, promovido pela ONU e realizado em 1949 em Paris que indicou a idade de 18 anos como parâmetro para os países da América Latina, Estados Unidos e Europa. (3)
Há de se entender que o Estatuto da Criança e do Adolescente aboliu o efeito intimidatório e punitivo, substituindo-o por oportunizar e facilitar o desenvolvimento físico, mental, moral e social dos jovens infratores, visando à sua recuperação. O efeito concreto dessa mudança foi a substituição das penas do antigo Código de Menores por medidas sócioeducativas, previstas pelo Estatuto.
A saída para o problema da delinqüência juvenil certamente não está relacionada à maior ou menor rigidez das punições aplicadas, até porque os que defendem que os maiores de 16 anos respondam pelos seus crimes na forma do Código Penal se esquecem que esse é o mesmo Código hoje aplicado aos maiores sem dar soluções satisfatórias. Nas palavras do presidente da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, Jairo Fonseca: "Se o Código Penal, válido para os maiores de idade, impedisse crimes, ninguém iria cometê-los depois do 18° aniversário".
Delinqüência juvenil está relacionada à fome, miséria, desemprego, falta de oportunidades, de esporte cultura e lazer, além da forte influência do consumismo pregado pelo sistema capitalista que só valoriza o jovem pelo que tem ou como se veste. Exemplo disso é o crescente aumento do número de furtos de tênis de marca, bonés e outros acessórios juvenis, aos quais significativa parcela da juventude não tem acesso.
A saída para a delinqüência juvenil está na efetiva aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente, está na melhoria e ampliação da rede educacional pública em todos os níveis, está na garantia de espaços democráticos para a prática de esportes, no acesso à cultura e ao lazer e principalmente na garantia de emprego para a juventude.
Um trabalho do Tribunal de Justiça da Bahia assim se posicionou sobre o Estatuto:
"A cultura punitiva brasileira é a expressão da ideologia dominante do sufoco dos mais pobres, já plenamente realizado na vida econômica mas que se quer estendido ao direito. AFEBEM é o exemplo terrível do quadro mais cruel que é o sistema penitenciário brasileiro. A sociedade da exclusão pensa em vingança contra os excluídos. Profissionais da justiça solapam o Estatuto da Criança e do Adolescente e enganam com suas palavras e conceitos que emanam dos altos postos que ocupam. Cada homem, em sua fragilidade, é responsabilizado pelo seu próprio destino, e antes mesmo que atinja a maturidade. Os adolescentes são vistos do mesmo modo por todos aqueles que, preventivamente e a posteriori, querem que o infrator esteja fora do convívio social, e se possível de forma definitiva". (4)
Nesses 10 anos do Estatuto temos pouco a comemorar, são raras as experiências de aplicação efetiva de seus preceitos, e é comum a aplicação de medidas sócio-educativas como pena, com as autoridades utilizando-se da humilhação, do desconforto, e não raro do estigma, no trato com os menores infratores. Destarte, por outro lado, podemos comemorar a existência de um arcabouço legal para amparar a luta dos que desejam um tratamento mais democrático e educativo para os menores infratores.
A criançada e os adolescentes precisam de bola, de escola, de tablado e, principalmente, de emprego para os seus pais – e não de cadeia. I
Marcelo Ramos é advogado e ex-membro da direção nacional da União da Juventude Socialista (UJS)
Notas
(l) o jornal A Crítica do dia 18.06.2000, o de maior circulação no Amazonas, no Caderno "Papo Cabeça", endereçado à juventude, em matéria sobre a redução da maioridade penal, inicia o texto afirmando que no Brasil os menores de 18 anos não respondem pelos crimes que cometem, claramente induzindo os leitores à idéia de que o Estatuto é um instrumento de impunidade.
(2) Trata-se do Perfil dos menores encarcerados lW Brasil elaborado pela Anistia Internacional. Documentário "BRASIL. AQUÍ NADlE DUERME TRANQUILO. Violaciones de derechos humanos contra detenidos y presos", publicado pela Anistia Internacional em 1999. "La edad media de los jóvenes recluidos en instituiciones de menores es de 17 afios. Los menores que cometen un delito cuando tienen menos de 18 afios pueden cumplir una orden de reclusión en un centro para menores hasta cumplir los 21, momento en el que son liberados. Más deI 96 por ciento no han terminado Ia educación básica y, según los informes, más de 15 por ciento son completamente analfabetos. La mayoría de los delicuentes juveniles (el 66 por ciento) han cometido delitos contra Ia propiedad. Sólo el 8,5 por ciento permanecen recluidos por delitos graves como violación o asesinato, mientras que el total de los que se encuentran bajo custodia por cometer cualquiera de los delitos contra Ia persona es de poco más de 20 por ciento". (3) Países como Áustria Colômbia México, Peru, Dinamarca, Finlândia, Noruega, Holanda, Tailândia, Argentina, Cuba, Venezuela, Irã, Turquia, Equador, Luxemburgo e República Dominicana, adotam a maioridade penal aos 18 anos. Da legislação comparada conclui-se que 0,5 % dos países adotam o limite de 14 anos; 8% de 15 anos; 13% de 16 anos; 19% de 17 anos; 55% de 18 anos; 0,5% de 19 anos; e 4% de 21 anos. A idade mais baixa é de 14 anos adotada no Haiti e a mais alta de 21 anos adotada no Chile e na Suécia, entre outros. Dados extraídos da Monografia "A delinqüência juvenil seus fatores exógenos e prevenção" do Professor César Barros Leal, da Universidade Federal do Ceará (Rio, AIDE Editora, 1983). (4) A publicação do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia "Crianças e Adolescentes, Medidas Sócio-Educativas e Adoção, dois problema e duas abordagens", manifesta visão avançada sobre o Estatuto e sua aplicação sendo importante instrumento teórico para os que estudam a questão.
EDIÇÃO 58, AGO/SET/OUT, 2000, PÁGINAS 75, 76, 77, 78