A greve das universidades paulistas, que terminou no dia 16 de junho de 2000, parando a academia durante 52 dias, impõe a reflexão sobre os rumos da educação no país, principalmente, do ensino superior. Ela revela a precariedade e os problemas enfrentados não só pelas três universidades públicas de São Paulo (USP, Unesp, Unicamp), mas também por outras instituições públicas de ensino superior brasileiras, estaduais e federais.

Contra a intenção do governo federal, de privatizar essas instituições, professores, estudantes e funcionários levantaram alto a bandeira da "defesa do ensino público, gratuito e de qualidade". Mas qual universidade se defende nessa luta? O governo federal não admite a existência da crise, e exibe indicadores que – diz o Ministério da Educação – revelam um aumento nas vagas na rede pública, maior qualificação dos professores e aumento no volume de pesquisas em andamento.

Contra esses números, a comunidade acadêmica apresenta seus orçamentos cada vez menores, salários que não correspondem ao nível de formação profissional, crescimento nos gastos com aposentadorias, dificuldades essas diagnosticadas no relatório A presença da universidade pública, elaborado pela Comissão de Defesa da Universidade Pública, instituída junto ao 1nstituto de Estudos Avançados, da USP,formada por uma extensa lista de professores universitários, e coordenada pelo professor Alfredo Bosi. O relatório mostra que, com um terço das 1,8 milhões de vagas no ensino superior, as universidades públicas têm dois terços dos professores com doutorado e mais de 80% dos professores em tempo integral. Além disso, a esmagadora maioria dos cursos de mestrado (87,1%) e de doutorado (89,2%) são oferecidos por universidades públicas. De 3.918 grupos de excelência 1 e I1 identificados pelo CNPq, 78,3% são de universidades públicas e 5,2% de entidades públicas isoladas. Em 162 auxilios aprovados no Programa de Apoio aos Núcleos de Excelência (Pronex), 82,1 % foram para grupos de universidades públicas e 135 para institutos públicos de pesquisa.

O texto que aqui publicamos, de Marilena Chaui, é contribuição para essa reflexão necessária e urgente..

Desde seu surgimento (no século XIII europeu), a universidade sempre foi uma instituição social, isto é, uma ação social, uma prática social fundada no reconhecimento público de sua legitimidade e de suas atribuições, num princípio de diferenciação que lhe confere autonomia perante outras instituições sociais, e estruturada por ordenamentos, regras, normas e valores de reconhecimento e legitimidade internos a ela. A legitimidade da universidade moderna fundou-se na conquista da idéia de autonomia do saber em face da religião e do Estado, portanto, na idéia de um conhecimento guiado por sua própria lógica, por necessidades imanentes a ele, tanto do ponto de vista de sua invenção ou descoberta como de sua transmissão. Por isso mesmo, a universidade européia tomou-se inseparável das idéias de formação, reflexão, criação e crítica. Com as lutas sociais e políticas dos últimos séculos, com a conquista da educação e da cultura como direitos, a universidade tomou-se também uma instituição social inseparável da idéia de democracia e de democratização do saber, seja para reativar essa idéia, seja para opor-se a ela, a instituição universitária não pôde furtar-se à referência à democracia como idéia reguladora, nem pôde furtar-se a responder, afirmativa ou negativamente, ao ideal socialista.

Numa palavra, por ser uma instituição social, a universidade não pôde colocar-se à margem da luta de classes nem das questões ideológicas que, sabemos, são sua questão própria, pois cabe-lhe indagar (ou fugir da questão) qual o lugar das idéias no processo da produção material da sociedade.
Ora, que significa passar da condição de instituição social à de organização social?

A universidade funcional é voltada para a formação da mão-de-obra qualificada para servir ao capital
Uma organização difere de uma instituição porque se define por uma outra prática social, qual seja, a de sua instrumentalidade: está referida ao conjunto de meios particulares para obtenção de objetivo particular. Não está referida a ações articuladas às idéias de reconhecimento externo e interno, de legitimidade .interna e externa, mas a operações definidas como estratégias balizadas pelas idéias de eficácia e de sucesso no emprego de determinados meios para alcançar objetivo particular que a define. É regida pelas idéias de gestão, planejamento, previsão, controle e êxito. Não lhe compete discutir ou questionar sua própria existência, sua função, seu lugar no interior da luta de classes, pois isso que para a instituição social universitária é crucial, é para a organização, um dado de fato. Ela sabe (ou julga saber) por que, para que e onde existe.

A instituição social aspira à universidade. A organização sabe que sua eficácia e seu sucesso dependem de sua particularidade. Isto significa que a instituição tem a sociedade como seu princípio e sua referência normativa e valorativa, enquanto a organização, tem apenas a si mesma como referência, num processo de competição com outras quefixaram os mesmos objetivos particulares. Em outras palavras, a instituição se percebe inserida na divisão social e política e busca definir uma universidade (ou imaginária ou desejável) que lhe permita responder às contradições impostas pela divisão. Ao contrário, a organização pretende gerir seu espaço e tempo particulares aceitando como dado bruto sua inserção num dos pólos da divisão social, e seu alvo não é responder às contradições e sim vencer a competição com seus supostos iguais.

Como foi possível passar da idéia da universidade como instituição social à sua definição como organização prestadora de serviços?

A forma atual do capitalismo se caracteriza pela fragmentação de todas as esferas da vida social, partindoda fragmentação da produção, da dispersão espacial e temporal do trabalho, da destruição dos referenciais que balizaram a identidade de classe e as formas da luta de classes. A sociedade aparece como uma rede móvel, instável, efêmera de organizações particulares definidas por estratégias particulares e programas particulares, competindo entre si. A Sociedade e a Natureza são reabsorvidas uma na outra e uma pela outra porque ambas deixaram de um princípio interno de estruturação e diferenciação das ações naturais e humanas para se tornarem, abstratamente, "meio ambiente" perigoso, ameaçador e ameaçado, que deve ser gerido, programado, planejado e controlado por estratégias de intervenção tecnológica e jogos de poder. Por isso mesmo a permanência de sua estrutura interna é muito mais de sua capacidade de adaptar-se celeremente a mudanças rápidas da superfície do "meio ambiente". Donde o interesse pela idéia de flexibilidade, que indica a capacidade adaptativa a mudanças contínuas e inesperadas. A organização pertence à ordem biológica da plasticidade do comportamento adaptativo.

A passagem da universidade da condição de instituição à de organização insere-se nessa mudança geral da sociedade, sob os efeitos da nova forma do capital, e ocorreu em duas fases sucessivas, também acompanhando as sucessivas mudanças do capital. Numa primeira fase, tornou-se universidade funcional; na segunda, universidade operacional.

Universidade funcional era a universidade voltada para a formação rápida de profissionais requisitados com mão-de-obra altamente qualificada para o mercado de trabalho. Adaptando-se às exigências do mercado, a universidade alterou seus currículos, programas e atividades para garantir a inserção profissional dos estudantes no mercado de trabalho. Entre os vários caminhos trilhados, um deles foi decisivo: a chamada parceria com as empresas, na medida em que estas não só asseguravam o emprego futuro aos profissionais universitários e estágios remunerados aos estudantes, como ainda financiavam pesquisas diretamente ligadas a seus interesses.

A universidade operacional, enquanto a universidade clássica estava voltada para o conhecimento e a universidade funcional estava voltada diretamente para o mercado de trabalho, por ser uma organização, está voltada para si mesma enquanto estrutura de gestão e de arbitragem de contratos.

Regida por contratos de gestão, avaliada por índices de produtividade, calculada para ser flexível, a universidade está estruturada por estratégias e programas de eficácia organizacional e, portanto, pela particularidade e instabilidade dos meios e dos objetivos. Definida e estruturada por normas e padrões inteiramente alheios ao conhecimento e à formação intelectual, está pulverizada em micro organizações que ocupam seus docentes e curvam seus estudantes a exigências çxteriores ao trabalho intelectual. A heteronomia da univer~idade autônoma é visível a olho nu: o aumento insano de horas-aula, a diminuição do tempo para mestrados e doutorados, a avaliação pela qualidade de publicações, colóquios e congressos, a multiplicação de comissões e relatórios, etc. Virada para seu próprio umbigo, mas sem saber onde este se encontra, a universidade operacional opera e por isso mesmo não age. Não surpreende, então, que esse operar coopere para sua contínua
A universidade operacional opera, e não age, sofrendo contínua desmoralização pública e degradação interna
Que se entende por docência e pesquisa, na universidade operacional, produtiva e flexível?

A docência é entendida como transmissão rápida de conhecimentos, consignados em manuais de fácil leitura para os estudantes, de preferência ricos em ilustrações e com duplicata em CD. O recrutamento de professores é feito sem levar em consideração se dominam ou não o campo de conhecimento de sua disciplina e as relações entre ela e outras afins – o professor é contratado ou por se um pesquisador promissor que se dedica a algo muito especializado, ou porque, não tendo vocação para a pesquisa, aceita ser escorchado e arrochado por contratos de trabalho temporários e precários, ou melhor, "flexíveis". A docência é pensada como habilitação rápida para graduados, que precisam entrar rapidamente no mercado de trabalho do qual serão expulsos em poucos anos, pois tomam-se, em pouco tempo, jovens obsoletos e descartáveis; ou como correia de transmissão entre pesquisadores e treino para novos pesquisadores. Transmissão e adestramento. Desapareceu, portanto, a marca essencial da docência: a formação.

A docência é formadora quando aceita que seu ponto de partida é a assimetria entre professor e aluno e seu ponto de chegada, a simetria entre ambos. Para que esse processo se realize, é preciso afastar a ideologia do "diálogo", do professor popular e querido porque "dialoga" com seus estudantes. Acredito que a verdadeira docência é aquela em que o professor cria as condições do diálogo do estudante com o saber, e não com ele. Em outras palavras, há docência quando o professor não se interpõe entre o aluno e o saber, não se oferece como substituto, imediato e fácil dos conhecimento, vedando o acesso ao conhecimento. Merleau-Ponty, numa bela passagem da Fenomenologia da percepção escreve que o bom professor não é aquele que diz "faça como eu" e sim, "faça comigo"; como o professor de natação que não ensina a nadar na areia, com gestos abstratos, mas lança-se n' água com o aluno e deixa-o conviver com ela, ser acolhido e repelido por ela para que, com ela (e não com ele) aprenda a nadar. A docência formadora, creio, é a que diz "faça comigo" para que, ao fim e ao cabo, ali onde havia um professor e um aluno, haja dois professores.

A desvalorização da docência teria significado, compensatoriamente, a valorização excessiva da pesquisa? Teria esta assumido o lugar formador que antes cabia à docência?

Ora, o que é a pesquisa na universidade operacional?
À fragmentação econômica, social e política, imposta pela nova forma do capitalismo, corresponde uma ideologia autonomeada pós-moderna. Essa nomenclatura pretende marcar a ruptura com as idéias clássicas e ilustradas, que fizeram a modernidade. Para essa ideologia, a razão, a verdade e a história são mitos totalitários; o espaço e o tempo são sucessão efêmera e volátil de imagens velozes e a compressão dos lugares e instantes na irrealidade virtual, que apaga todo contato com o espaço-tempo enquanto estrutura do mundo; a subjetividade não é a reflexão, mas a intimidade narcísica, e a objetividade não é o conhecimento do que é exterior e diverso de estratégias montadas sobre jogos de linguagem, que representam jogos de pensamento. A história do saber aparece como troca periódica de jogos de linguagem e de pensamento, isto é, como invenção e abandono de "paradigmas", sem que o conhecimento jamais toque a própria realidade. O que pode ser a pesquisa numa universidade operacional sob ideologia pós-moderna? O que há de ser a pesquisa quando razão, verdade, história são tidas por mitos, espaço e tempo e se tomaram a superfície achatada de sucessão de imagens, pensamentos e linguagem, se tomaram jogos, constructos contigentes cujo valor é apenas estratégico?

Numa organização, uma "pesquisa" é uma estratégia de intervenção e de controle de meios ou instrumentos para a consecução de um objetivo delimitado. Em outras palavras, uma "pesquisa" é um survey de problemas, dificuldades e obstáculos para a realização do objetivo, e um cálculo de meios para soluções parciais e locais para problemas e obstáculos locais. Pesquisa, ali, não é conhecimento de alguma coisa mas posse de instrumentos para intervir e controlar alguma coisa. Por isso mesmo, numa organização não há tempo para reflexão, a crítica, o exame de conhecimentos instituídos, sua mudança ou sua superação. Numa organização, a atividade cognitiva não tem como nem por que realizar-se. Em contrapartida, no jogo estratégico da competição no mercado, a organização se mantém e se afirma se for capaz de propor áreas de problemas, dificuldades, obstáculos sempre novos, o que é feito pela fragmentação de antigos problemas em novíssimos micro-problemas sobre os quais o controle parece ser cada vez maior. A fragmentação, condição de sobrevida da organização, toma-se real e propõe a especialização como estratégia principal.

Compreende-se, então, o que vem acontecendo com a pesquisa na universidade operacional brasileira. Começa-se dizendo que uma pesquisa não tem como realizar-se por um único pesquisador, mas este precisa estar associado a outros que tratam de diferentes aspectos do mesmo problema (entenda-se: problema e não questão). Para que haja associação dos pesquisadores, define-se uma "linha de pesquisa" e, a seguir, passa-se a receber estudantes que se associam à "linha de pesquisa", cada um deles, como na antiga fábrica fordista, posto na linha de montagem, contribuindo com alguma pecinha muito especializada para a fabricação do artefato. Como tem-se dado a definição da "linha de pesquisa"? De duas maneiras principais: 1) ou pelo ajuntamento de docentes-pesquisadores que trabalham numa mesma disciplina e foram informados de que, se formarem um grupo, núcleo ou centro, terão subvenções (contratos de gestão) para seus trabalhos; 2) ou porque um notável consegue uma "parceria" com uma empresa que encomenda uma "pesquisa", isto é, uma estratégia de intervenção e de controle sobre alguma coisa. Em outras palavras, as "linhas de pesquisa" são, de um lado, maneiras de conseguir subvenção, recurso e complemento salarial, e, de outro, exprimem a idéia organizacional da "pesquisa" como delimitação estratégica de um campo de intervenção e de controle.

É evidente que a avaliação desse trabalho só pode ser feita em termos compreensíveis para uma organização, isto é, termos de custo benefício, pautada pela idéia da produtividade, que avalia em quanto tempo, com que custo e quanto foi produzido. E é evidente também que os responsáveis pela "linha de pesquisa" não sejam pesquisadores e sim gestores de contratos e programas e que saibam ser "flexíveis" para mudar o curso da "pesquisa" quando assim for necessário.

Em suma, se por pesquisa entendemos a investigação de algo que nos lança na interrogação, que nos pede reflexão, crítica, enfrentamento com o instituído, descoberta, invenção e criação; se por pesquisa entendermos o trabalho do pensamento e da linguagem para pensar e dizer o que ainda não foi pensando nem dito; se por pesquisa entendermos uma visão compreensiva de totalidade e sínteses abertas que suscitam a interrogação e a busca; se por pesquisa entendermos uma ação civilizatória contra a barbárie social e política, então, é evidente que não há pesquisa na universidade operacional.
Essa universidade não forma e não cria pensamento, despoja a linguagem de sentido, densidade e mistério, destrói a curiosidade e a admiração que levam à descoberta do novo, anula toda pretensão de transformação histórica como ação consciente dos seres humanos em condições materialmente determinadas. ~

Marilena Chaui é professora do departamento de Filosofia da USP, escritora e ex-secretária municipal de Cultura de São Paulo. Este artigo foi publicado originalmente na revista Sinpro-Rio/Cultural, outubro de 1999.

EDIÇÃO 58, AGO/SET/OUT, 2000, PÁGINAS 67, 68, 69, 70