Canudos: o medo dos proprietários
Canudos: cartas para o Barão é um interessante e rico livro organizado por Consuelo Novais Sampaio (doutora em História pela The Johns Hopkins University e membro da Academia de Letras da Bahia), que reúne 70 cartas recebidas pelo Barão de Jeremoabo – Cícero Dantas Martins -, figura histórica da política brasileira, que atuou nos agitados anos da campanha de Canudos.
As cartas abrangem o período de 1874 a 1897 e são acompanhadas de notas e dados biográficos, o que facilita o entendimento do contexto, da reconstrução do processo histórico das primeiras décadas republicanas e, de modo especial, dos acontecimentos relacionados a Canudos, além de permitir a análise do pensamento dos membros da elite política local. ,
Constam no livro dois ensaios, um de Alvaro Dantas de Carvalho Jr., descendente do barão, intitulado "Canudos: A Posição do Barão de Jeremoabo", no qual elabora uma biografia de seu trisavô situando-o no contexto em que se passou a guerra de Canudos. O outro "Canudos: A Construção do Medo", de Consuelo Novais, organizadora da obra.
Ela sustenta que "a questão de Canudos se agravou em relação direta ao acirramento da disputa pelo poder entre grupos oligárquicos, tanto no plano nacional quanto no estadual e municipal", salientando que "os anos que corresponderam à guerra de Canudos (18931897) foram de grande instabilidade política no Brasil, e na Bahia em especial. Os membros da elite política baiana estavam muito envolvidos na luta por cargos na Administração Pública, no Legislativo e no Judiciário, que então se organizavam. Questiúnculas partidárias e de interesse pessoal não lhes permitia desviar a atenção para uma multidão de romeiros que haviam decidido acampar em Belo Monte. Foi a disputa pelo poder, na Bahia e na Capital Federal, que conferiu a Canudos dimensão nacional".
N a capital federal, "jacobinos e florianistas afinados com o vice-presidente em exercício, Manuel Vitorino, conspiravam pelo não-retorno do presidente Prudente de Morais ao poder. Como último recurso deram concretude ao fantasma da restauração monárquica, manipulando a figura carismática de Antônio Conselheiro. Ao reassumir apressadamente seu posto, no mesmo dia em que o coronel Moreira César caía fulminado ( … ) Prudente de Morais valeu-se do mesmo recurso e convocou todas as forças do país para aniquilar Canudos".
Na Bahia, "o Conselheiro foi manipulado, tanto pela facção vianista quanto pela gonçalvista. A primeira, afinada com o governador Rodrigues Lima, julgava, pelo menos até a terceira expedição, que Antônio Conselheiro e seus seguidores poderiam ser elementos de desestabi1ização, no quase inexpugnável (3° distrito) reduto eleitoral dos seus rivais gonça1vistas. Para os membros dessa facção, a alteração da ordem pública que os conse1heiristas poderiam causar-lhes seria conveniente, na medida em que lhes permitiria recorrer ao art. 6° da Constituição Nacional e pedir intervenção de forças federais no Estado – único artifício que, no contexto político oligárquico, lhes possibilitaria recuperar o poder".
Em sua análise, Consue10, também ressalta que embora Antônio Conselheiro pregasse o respeito total à propriedade privada, o medo que os fazendeiros da região tinham de que sua fazendas fossem invadidas e destruídas fora imenso. "A grande propriedade fundiária foi, assim, fator importantíssimo na mobi1ização contra Canudos e na aceitação dos resultados devastadores dos combates que então se travaram. Inclusive na imolação de muitos sobreviventes."
Neste ensaio a autora conclui que "a guerra de Canudos não foi apenas mais um capítulo da história do Brasil. Ela revela com precisão a grande distância que, neste país, sempre separou – e no limiar do século XXI, ainda separa – o 'povo miúdo', a população pobre e miserável, das classes dominantes. Em todos os níveis de tomada de decisão, o movimento conse1heirista foi manipulado para a satisfação de interesses pessoais e de grupos políticos em luta pelo poder." Lembra ainda que, "Canudos não foi esquecido. Enquanto perdurarem as condições infra-estruturais que impedem o acesso do sertanejo à terra e estabelecem distâncias inconcebíveis entre os que têm demais e os que nada têm, o homem do sertão estará pronto a seguir aquele que aponte o caminho da esperança e da redenção final."
Antônia Rangel
EDIÇÃO 58, AGO/SET/OUT, 2000, PÁGINAS 79