O real após a desvalorização
A crise cambial que culminou com a desvalorização do Real, em janeiro de 1999, e a posterior mudança na política cambial, embora tenha alterado os instrumentos de política econômica, não mudou a essência da estratégia econômica adotada pelo Brasil desde o início da década de 90.
A CRISE da desvalorização pôs fim ao Plano Real, tal como ele foi concebido – com base em uma âncora cambial com a taxa de câmbio do dólar assumidamente administrada. Mas a estratégia adotada no início da década de financiar a abertura das contas externas mediante a captação de investimento direto e empréstimos, ou seja, pelo aumento do passivo externo, permaneceu [ver gráfico, na página 7].
Continua a abertura da conta de capital, mas a condução da política econômica mudou, adotando-se uma política cambial flexível e uma política monetária nominalmente referenciada às metas inflacionárias. Ao contrário das políticas cambial e monetária anteriores, formalmente vinculadas à defesa de uma taxa de câmbio estável com o dólar e atratividade para o capital externo, a nova política tem por objetivo apenas atingir uma certa meta anual de inflação. Formalmente a taxa de juros passa a ser fixada tendo em vista essa meta inflacionária e não a sustentação da taxa de câmbio Real/dólar.
Embora a nova política de meta inflacionária se conceda os méritos de ter conseguido baixar significativamente as taxas de juros básicas, ainda é cedo para saber se não houve apenas uma mudança formal, pois o país não voltou a enfrentar nenhuma situação de crise e de fuga de divisas como aconteceu com as crises asiática e russa em 1997 e 1998. Mesmo com a política anterior de âncora cambial, sempre era possível, em períodos de afluxo de divisas, diminuir as taxas de juros.
A questão da dependência
Em uma sociedade dependente, a questão do financiamento externo, que representa a permanência de sua articulação com o sistema capitalista mundial, assume para as suas classes dirigentes uma importância central. Após a crise da dívida de 1982, quando as demais formas de financiamento externo por empréstimos foram inviabilizadas, esse financiamento só pode ser feito pela consecução de grandes superávits comerciais. O ressurgimento de liquidez no mercado internacional, ao final da década de 80, trouxe de novo a possibilidade de importar capitais. Renovou-se então a estratégia de financiamento pelo aumento do passivo externo (investimentos + empréstimos), agora vinculado à adoção de liberalização comercial e à conta de capital. Essa nova estratégia terminou por gerar um novo consenso das elites brasileiras, cristalizado no plano de estabilização do Real.
É interessante notar que o papel dos financiamentos e empréstimos de médio e longo prazos durante os anos 90 – diferentemente da década de 70 – não foi suficiente sequer para financiar o próprio serviço da dívida (armortizações + juros). O fluxo líquido do endividamento (empréstimos menos serviço) permaneceu negativo a maior parte do período, mesmo após a volta do Brasil ao sistema financeiro internacional com a renegociação da dívida em 1994, só tendo papel relevante no financiamento externo nos anos de 1997 e 1998, mas o seu total foi negativo [ver tabela sobre o fluxo da dívida, na página 8]. Assim, todo o financiamento líquido conseguido no período veio mesmo dos investimentos diretos, e em portfólio, e dos capitais de curto prazo.
Mas a mudança da conjuntura internacional acontecida em 1994 criou um ambiente desfavorável ao financiamento dos crescentes déficits externos dos países dependentes, aumentando a instabilidade e os custos de captação. A própria política cambial, sustentada em altas taxas de juros, deprimiu o nível de crescimento, causou forte desequilíbrio na balança comercial sem gerar, como se esperava, um crescimento na produtividade interna que compensasse completamente tais perdas. O resultado foi a crise cambial de janeiro de 1999.
O Plano Real vem fracassando como estratégia de desenvolvimento exatamente por não ter conseguido resolver o problema do financiamento externo de forma estável e a custos compatíveis. Insistindo na estratégia dos inícios dos anos 90, de priorizar a captação externa de capitais a qualquer custo, toma o país cada vez mais vulnerável e economicamente instável. A mudança cambial e a adoção de um grande plano internacional de sustentação financeira (o "Arranjo FMI") modificaram a política econômica anterior, sem, no entanto, mudar sua natureza. O financiamento externo continua tendo por base a elevação do passivo externo, agora aumentando ainda mais o papel do investimento direto (IED), compensando, em parte, a diminuição dos empréstimos e o quase desaparecimento dos capitais de curto prazo, em 1999 [ver gráfico sobre o fluxo de empréstimos e investimentos, na página 9]. Vem sendo comum atualmente tecer loas ao caráter "benigno" do IED em relação aos empréstimos, por não exigirem compromissos de amortização; mas a verdade é que em matéria de fluxo eles são semelhantes, pois os ganhos dos investimentos, sob a forma de lucros e dividendos, geram demandas de.divisas para a sua remessa.
As características específicas desse IED, fortemente vinculado à aquisição de empresas nacionais e em setores não ligados à geração de divisas, aumentam ainda mais o seu ônus sobre as contas externas em curto e em longo prazos. O aumento exponencial das aquisições de empresas nacionais por multinacionais, especialmente a partir de 1997 [como se vê no gráfico acima], assume dimensão inédita, não só pelo volume como pela rapidez do processo. Isso gera uma situação de desnacionalização do aparelho produtivo preocupante e de difícil reversão. A forte concentração dos IED' s no setor de serviços, mostrada na tabela ao lado, uma área que não origina exportações, mas que geram necessidade de divisas para cobrir as remessas com seus lucros, dividendos e royalties.
A recessão surpreendente
As dificuldades do financiamento externo levaram o país a uma recessão em 1999. Por isso a recessão tomou-se necessária e foi adotada como política governamental no âmbito de um acordo trienal com o FMI, que passou a monitorar a economia brasileira. Essa política tem como centro um forte ajuste fiscal, objetivando a consecução de significativos superávits fiscais.
No entanto, as dimensões dessa recessão, relativamente pouco severas, têm sido motivo de surpresa (inclusive para o FMI), e têm servido de argumento ao governo FHC para legitimar o acerto de sua política de 'crescimento sustentável' (ou seja, aquele crescimento compatível com a disposição do mercado financeiro internacional em financiar nosso déficit externo).
Esse comportamento inusitadament e benigno da recessão brasileira, quando comparado ao de outros países, pode ser atribuído a três fatores: a dimensão continental da economia brasileira; a estatização de uma parte relevante dos custos financeiros privados decorrentes da desvalorização; e a manutenção, ainda que menor, dos fluxos financeiros internacionais.
Tendo uma economia de grandes dimensões, o Brasil possui um baixo coeficiente de abertura externa (comércio externo/PIB), o que faz com que um impacto externo líquido contracionista tenha menor poder multiplicador do que acontece em economias menores. Para se ter uma idéia comparativa, do século passado até a crise de 1930, essa abertura chegou a ser igual a um terço; em 1998 essa relação era de 13 %. A dimensão do mercado interno e a presença de uma camada de pequenos e médios capitalistas profundamente imbuídos de uma tradição histórica de crescimento criam um ambiente de iniciativas que promove uma sustentação mínima à produção e ao consumo. Essa diversidade continental, tanto entre "I setores como entre regiões, em 7 diferentes estágios de crescimento e de maturidade sócio-econômicos, cria uma resistência natural que amortece as forças depressivas e cria dificuldades políticas internas à elite governante de impor seu projeto.
De forma diversa ao que aconteceu em outros países que sofreram recentemente crises de desvalorização da moeda nacional, o governo brasileiro tratou de assumir, com certa antecipação, uma grande parte do risco cambial implícito na política cambial então vigente. O medo de uma desvalorização brusca e significativa fez com que investidores e grandes devedores procurassem se proteger com mecanismos de hedge, comprando um seguro para eventuais perdas patrimoniais.
Como não havia no setor privado quem bancasse tal risco, o governo brasileiro providenciou tal mecanismo de seguro, através da emissão maciça de títulos públicos dolarizados (vinculados à variação da taxa cambial do dólar) [ver tabela abaixo] e a um forte comprometimento do Banco Central no mercado de dólar, principalmente assumindo contratos de venda futura de dólar à cotação iguais ou próximas às que vigoravam em janeiro e fevereiro de 1999 (no chamado mercado futuro). (1)
Esses instrumentos estatizaram as perdas financeiras e patrimoniais privadas (imediatas ou futuras) dos grandes capitais, evitando uma retração dos investidores internacionais em relação ao 'risco Brasil' e evitando o risco sistêmico de uma inadimplência generalizada no sistema financeiro doméstico. A assunção desse prejuízo privado têm estimativas diversas, mas seguramente não foi inferior a 80 bilhões de reais (cerca de 8% do PID), agravando ainda mais o desequiIIbrio fiscal.
Também, ao contrário da situação criada após a crise de 1982, não houve até o momento um colapso dos fluxos de financiamento externo. Embora tenha havido queda no volume de empréstimos em 1999 e um aumento das amortizações, o crescimento do IED, no período, aumentou, compensando em par-
te essa perda de recursos [ver gráfico sobre fluxo de empréstimos na página 9]. A manutenção do fluxo externo pode ser atribuída a fatores variados, sendo o principal deles as circunstâncias próprias do sistema financeiro internacional, bem menos afetado do que em 1982. Outros fatores foram internos: a relativa estabilidade e força do sistema financeiro doméstico, que não se desarticulou como aconteceu em outros países, e a capacidade política do governo FHC de administrar a crise e de infundir confiança nos investidores externos. Para esses fatores internos existirem foi crucial a estatização dos riscos financeiros privados, citada anteriormente.
A continuidade da instabilidade
O desenvolvimento da economia nacional no horizonte previsível e politicamente relevante até 2002 – continua vinculado às circunstâncias da limitação da estratégia adotada de financiamento externo e da conjuntura internacional. Como qualquer crescimento implica em aumento do déficit externo, seja no comércio seja pelo aumento das remessas de lucros, e enquanto as exportações cresçam sofrivelmente, isso criará problemas ao precário esquema de financiamento externo, freando, em seguida, a economia. Mesmo que haja um crescimento significativo em um ano, ele será logo seguido de recessão, determinando um crescimento médio medíocre. Como a manutenção da estratégia de financiamento das contas externas continuará – pelo menos em médio prazo – bastante prejudicada por uma conjuntura internacional de fluxos financeiros instáveis e de alto custo, e como não se pode supor – também em médio prazo – nenhuma mudança significativa nessa estratégia, é de se esperar que a economia continue limitada a um quadro de tendência à estagnação e à instabilidade. Isso delimita um nível bastante baixo de crescimento possível (o 'crescimento sustentável') e a manutenção da quase nula autonomia na condução da política econômica por parte do governo nacional.
O recente agravamento do quadro internacional, com a seqüência de elevações das taxas de juros do IED norteamericano, vem ensombrecer ainda mais o futuro de médio prazo da economia brasileira. Determinada por necessidades ligadas à defesa do ciclo de reprodução do capital internacional, a elevação da taxa de juros dos EUA tende a criar uma conjuntura internacional semelhante à de 1994, quando a subida ininterrupta dos juros determinou um ciclo de instabilidade e insolvência de economias da periferia que começou no México e acabou no Leste asiático. I
Lecio Morais é economista e assessor da bancada do Partido Comunista do BrasiI na Câmara dos Deputados.
Nota
(1) O Banco Central havia vendido no mercado futuro, antes do dia 10 de janeiro de 1999, cerca de Ii bilhões de dólares à cotação próxima de R$ 1,21.
Referência bibliográfica
Lacerda, Antônio Corrêa. "Notas sobre a característica e o perfil do fluxo recente de investimentos diretos estrangeiros na economia brasileira". Anais do V Encontro da Sociedade Brasileira de Economia Política. Fortaleza: 2000.
EDIÇÃO 58, AGO/SET/OUT, 2000, PÁGINAS 6, 7, 8, 9, 10