A crise e seus desdobramentos

EM MEADOS de 1998, a Volkswagen e a General Motors cancelavam horas extras e sábados adicionais de produção, no ABC.

Com os pátios abarrotados de carros, a Volks estudava as opções que lhe fossem mais convenientes na sua relação com os operários. Como já fora instituído o banco de horas, passava a cogitar de reduzir um dia da produção por semana, computando a diferença não trabalhada para repô-Ia aos sábados, numa conjuntura melhor. Outra alternativa seria diminuir a jornada de trabalho, com o tempo excedente igualmente depositado no banco de horas. Os dois mecanismos já haviam sido utilizados quando da queda de vendas resultante do pacote fiscal adotado pelo governo no final de 1997. Pelo mesmo motivo (estoques altos) a Ford e a Fiat decidiam interromper a produção, entrando mais de 15 mil funcionários em férias compulsórias.

O presidente da Anfavea (Associação Nacional de Fabricantes de Veículos Automotores) viajava para Brasília a fim de solicitar a redução de impostos sobre o preço dos veículos, tentando, assim, ativar as vendas afetadas pela recessão; na verdade, nem as promoções estavam surtindo o efeito de atrair clientes. É nesse quadro que o governo principia a intensificar sua campanha visando a implementar a reforma trabalhista. Já em janeiro de 1998, fora criado pela lei n.O 9.6010 contrato de trabalho por prazo determinado, que ainda concedia ao empresário a vantagem da redução no pagamento de encargos. O pressuposto era o de que, com tais facilidades, o desemprego diminuísse, o que evidentemente não ocorreu.

Um novo passo foi dado no dia 6 de agosto, quando governo encaminhou ao Congresso uma medida provisória que regulamentava o trabalho em tempo parcial, além de seis projetos de lei sobre questões trabalhistas. Ao mesmo tempo em que anunciava o fim da Era Vargas, o presidente da República, juntamente com o ministro do Trabalho Edward Amadeo, se 'preparava para futuramente tentar golpear os direitos e garantias inscritos na Consolidação das Leis do Trabalho e na Constituição de 1988.

Esse pacote, apresentado com o rótulo de "anti-desemprego", defrontou-se com um repúdio generalizado. O empresariado condicionava as contratações à retomada do crescimento econômico. Os trabalhadores se insurgiam especialmente contra a proposta da suspensão do contrato de trabalho em até cinco meses; parecia-lhes que a medida redundaria em mera antecipação de um desemprego próximo, embora nas estatísticas o trabalhador continuasse "empregado".

Impávido, o ministro Amadeo continuava sua campanha em prol da precarização trabalhista. Por essa época, numa população economicamente ativa (PEA) de 70 milhões de pessoas, apenas 21 milhões de trabalhadores possuíam carteira assinada.

Em 15 de agosto, o ministro publicava um artigo intitulado Consensos da reforma trabalhista, no qual afirmava haver "convergência sobre o fim da representação classista bem como da uni cidade e contribuição sindical". (1)

Referia-se a um seminário promovido pelo Ministério no dia 10, sobre esses temas, cujos participantes haviam aprovado: o fim da unicidade sindical; a extinção da contribuição sindical compulsória; a revisão do poder normativo da Justiça do Trabalho; e o fim da representação classista.

Embora certamente ciente das dificuldades dos sindicatos para manter-se com os exclusivos recursos provenientes das mensalidades de seus associados, sentenciava, para melhor fragilizá-los: "Com liberdade sindical e contribuições voluntárias será assegurada a representação mais genuína dos interesses das bases. Os sindicatos devem prestar serviços a seus associados e legitimar-se, até financeiramente, pela qualidade dos serviços prestados".

Quanto ao poder normativo da Justiça do Trabalho, informava que se impunha a sua revisão, deixando que as partes se entendessem.

A figura dos juízes classistas teria sido unanimemente reputada como anacrônica e deveria desaparecer.
a ministro ainda anunciava que o resultado mais importante da reforma da legislação trabalhista seria a possibilidade de preservar empregos por meio da negociação coletiva. "Do acordo nasce o compromisso – base para a preservação de empregos, bem como o crescimento da produtividade e dos salários". Eufórico, concluía: "Em conseqüência, tenho certeza de que está aberto o caminho para uma reforma histórica das relações trabalhistas no Brasil."

No dia seguinte, 16 de agosto, Amadeo voltava ao tema, desta vez através de um artigo intitulado Para preservar bons empregos. (2)

Tratava-se agora especialmente de explicar e louvar a proposta específica da suspensão do contrato de trabalho, que teria como principal objetivo "evitar o trauma da demissão e preservar o vínculo empregatício em empresas com problemas temporários".
Caso o empregador não fosse capaz de reativar o contrato ao final da suspensão, o empregado receberia todas as verbas rescisórias previstas na legislação e também o valor de uma multa (de um salário ou mais) paga pelo empregador.

Mas o procedimento da suspensão do contrato de trabalho, ressaltava o ministro, também seria benéfico para o empregador, "na medida em que preserva as relações no ambiente de trabalho, e reduz os custos de demissão e de admissão".
Em suma, a esse mascaramento mais barato ou adiamento da demissão para ocasião mais oportuna, o ministro chamava de "preservação de bons empregos".
E toda essa campanha flexibilizante se desenvolvia enquanto os jornais noticiavam em manchete que os demitidos lotavam o centro de São Paulo em busca de emprego, procurando os painéis em que eram anunciadas as eventuais vagas.

Em resposta ao artigo de Amadeo publicado no dia 15, o então recém-eleito presidente do Tribunal Regional do Trabalho, Floriano Vaz da Silva, que assumiria dentro de um mês, alertava contra a destruição dos valores existentes (o anúncio do "fim da Era Vargas") ao invés de se proceder a um aprimoramento. (3)

Apontava, por exemplo, que o próprio contrato de trabalho temporário, com redução de encargos, já estava praticamente esquecido, tal a sua ineficácia.

Com clareza, o juiz Vaz da Silva demonstrava como a completa extinção do poder normativo da Justiça do Trabalho era algo extremamente maléfico. "Em todos os países do mundo existem instrumentos análogos ao poder normativo. Em alguns, o poder Executivo cumpre essa função. Em outros, o Judiciário. Seria o cúmulo o Brasil, que já tem uma boa estrutura e poderia aperfeiçoá-la, destruir tudo e não colocar nada no lugar."

E por que simplesmente extinguir a figura do juiz classista?

Simultaneamente, as entidades operárias se mobilizavam. No dia 18 à tarde, no centro da capital paulista, a CUT realizava uma manifestação contra o pacote governamental que, pretensamente destinado ao combate ao desemprego, tinha como carro-chefe a implantação da semana de 25 horas, ou seja, uma mini-jornada, acoplada a um mini-salário e a mini-férias.
O protesto focalizava especialmente a proposta da suspensão temporária do trabalho. O governo, criticavam os trabalhadores, depois de criar sem qualquer resultado positivo o emprego temporário em janeiro, agora instituía o desemprego temporário!

No mesmo dia fora realizada, pela manhã, passeata de metalúrgicos da Ford e da Mercedes-Benz pela rodovia Anchieta (São Bernardo do Campo). Ao saírem da rodovia, os manifestantes seguiram em direção ao Paço Municipal de São Bernardo, onde se encontraram com trabalhadores da Volkswagen e da Scania.

O caso é que a ameaça de demissões preocupava e os operários do ABC se empenhavam na busca de soluções. Representantes de sindicatos de trabalhadores, prefeituras, fabricantes tanto de veículos quanto de autopeças, reunidos na Câmara Regional do ABC, acabaram se comprometendo a apresentar conjuntamente um esquema interessante para todas as partes.

E considerando a tendência ao deslocamento para outras regiões a fim de escapar do que se chamava de custo-ABC, que estaria pretensamente afugentando as novas montadoras que chegavam ao Brasil, o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC tomou a iniciativa de propor uma negociação. Assim, por exemplo, no setor da saúde, se promoveriam parcerias para baixar custos de benefícios como assistência médica, transporte e alimentação, através da participação do poder público municipal. Como contrapartida, as empresas também destinariam recursos a essas parcerias. Em suma, evocava-se a memória das câmaras setoriais de alguns anos atrás.

Contudo, a contraproposta das montadoras adotou uma direção bem discrepante das expectativas do Sindicato. Percebendo que o que estava em jogo era primordialmente a manutenção do quadro de trabalhadores, as empresas ofereceram em troca algo que redundava numa redução indireta de salários.

A primeira proposta da Anfavea à CUT foi o repasse total, para os salários, dos custos de alimentação, plano de saúde, transporte, o que significava um desconto de 10%.

O presidente da Federação Nacional dos Metalúrgicos da CUT declarou que isso não seria aceito de modo algum, embora reconhecesse a dificuldade de negociar com as empresas semi-paralisadas em razão da queda de produção e vendas, e sob ameaça de demissões no início de 1999.
As montadoras, então, tomaram a propor uma idéia apresentada (e não aceita) no ano anterior: diminuição no pagamento de horas-extras e do adicional noturno.

Paralelamente, no dia 18 de outubro, o ministro Amadeo publicava um extenso artigo intitulado A reforma trabalhista brasileira. (4) Alegando a defesa do princípio da negociação coletiva e do fortalecimento dos sindicatos, voltava a investir contra a unicidade sindical e o poder normativo da Justiça do Trabalho; e também preconizava vivamente a instituição das comissões de conciliação extrajudiciais, principalmente "para encurtar os espaços entre empregados e empregadores, criando um ambiente favorável à formação de compromissos mais duradouros". Falando dois dias antes a uma platéia de empresários da construção civil, o ministro declarara que as entidades deviam se organizar como desejassem, "seja por empresa (sic) Estado ou nacionalmente". Preconizava a extinção da unicidade sindical (que a seu ver fragmentava o sindicalismo) juntamente com a do imposto sindical. E pretendia chegar a uma proposta final de emenda constitucional, abrindo discussões com setores empresariais e representantes dos sindicatos de trabalhadores.

Enquanto era dessa forma encaminhada a desregulamentação na área trabalhista, a situação de desemprego se tomava cada vez mais angustiante.

A CUT cogitava uma manifestação suprapartidária, envolvendo toda a sociedade, o que abrangia entidades como a própria FIESP, além de integrantes da Câmara Regional do ABC, que incluía empresários de vários ramos. Seria uma união dos sindicalistas e empresários descontentes com a política econômica do governo, que promovia a recessão com os juros altos, o câmbio supervalorizado e a excessiva abertura comercial.

De fato, foi preparado para 13 de novembro um dia inteiro de atividades dentro de uma mobilização chamada Maratona em Defesa do Emprego. A Maratona estava prevista para começar às 5 horas da manhã, com discursos em portas de fábricas. Também haveria debates nas faculdades do ABC, seguidos de caminhadas e carreatas. A partir das 15 horas, haveria painéis com a presença de prefeitos do ABC, do presidente da CUT nacional, de governadores e do presidente da Anfavea. A idéia era estender a mobilização até a noite, com reuniões em escolas e igrejas dos bairros de seis cidades.

Dia 12, a CUT e mais algumas centrais sindicais – União Sindical Independente (USI), Central Geral dos Trabalhadores (CGTB), Central Autônoma dos Trabalhadores (CAT) – três confederações e três federações, fechavam unitariamente uma proposta do movimento sindical de combate à recessão e ao desemprego.

Foi elaborado um documento para ser entregue ao Congresso e ao mjnistro do Trabalho. Nele se propunha a redução da semana de trabalho de 44 horas para 36, sem corte nos salários, além do controle das horas extras. Pretendia-se também a reforma agrária, a suspensão temporária do pagamento da dívida externa e a renegociação da dívida interna, além da centralização e controle do câmbio e redução imediata dos juros para 12% ao ano.
Confronto com a Volks

Mas enquanto a sociedade se mobilizava em defesa do crescimento econômico e do emprego, as montadoras continuavam limitadas ao objetivo de perseguir a competitividade à custa dos direitos dos trabalhadores.

Assim, dois dias antes da Maratona, a Volks promovia uma reunião com os representantes dos sindicatos de suas unidades de São Bernardo do Campo e Taubaté a fim de negociar formas de enfrentar a queda da produção "sem demitir". No dia 9, os operários dessas fábricas haviam entrado em férias coletivas (pela segunda vez no ano) devido aos altos estoques. Na reunião do dia Ii a Volks apresentou a proposta de cortar parte ou a totalidade do ]J0 salário, do abono de férias e da participação nos lucros e resultados dos 26 mil trabalhadores das fábricas de São Bernardo do Campo e Taubaté. Em troca, a carga semanal seria reduzida de cinco para quatro dias. A montadora anunciava também a abertura de um programa de demissões voluntárias para os próximos dias. A idéia era economizar entre 350 e 400 milhões de reais na folha de pagamento durante 1999, ou seja, proceder a uma redução de custos de 20% com o pessoal. A empresa desejava que os sindicalistas presentes à reunião comunicassem a proposta aos trabalhadores quando estes retomassem das férias coletivas no dia 18.

Como justificativa, o vice-presidente de Recursos Humanos da Volks, Fernando Tadeu Perez, argumentava que era preciso adequar a produção ao ritmo de vendas.
Na verdade, o Brasil, que produzira 2 milhões de veículos em 1997, estava para apresentar, em 1998, uma cifra não superior a I milhão e meio; e, mesmo assim, os estoques não se escoavam.
Quanto à Volks, que era a maior montadora do Brasil, saíra de uma produção mensal de 52 mil unidades, para pouco mais de 30 mil; e apesar disso tinha 20 mil carros parados nos pátios e mais 30 mil nas concessionárias.

Segundo Perez, o esquema que propunha reproduzia uma experiência já feita na Alemanha, para adequar os custos à receita. A idéia era garantir um corte de custos em 1999, ano para o qual eram previstas perdas ainda maiores.

Os sindicalistas retrucavam que a realidade do trabalhador brasileiro é diferente da do alemão; entre nós, explicavam, o 13° ou o abono de férias quase sempre são utilizados para cobrir dívidas ou trocar bens indispensáveis como geladeira ou fogão. Lembravam ainda que esse procedimento resultaria, num efeito-cascata, em demissões em outros setores. De qualquer forma, elogiavam a Volks pela "tentativa de evitar demissões" e convidavam os empresários a integrar-se ao movimento que pressionava o governo a corrigir a política econômica responsável pela crise.

Em vez disso, a montadora preferiu revisar seus cálculos para chegar à conclusão de que os cortes propostos eram insuficientes. Nessa linha, fazia saber que mesmo se suprimisse totalmente o 13° salário, o abono de férias e a participação nos lucros e resultados, só conseguiria economizar 113 milhões de reais, ou seja, menos de um terço de sua meta de redução de custos, que era de 390 milhões.

Informado a respeito, Vicente Paulo da Silva, presidente da CUT, reagiu com indignação, qualificando de "maluca" a proposta da Volks de suspender o pagamento dos direitos dos trabalhadores para economizar cerca de 400 milhões em 1999.

A montadora continuava manobrando.
No dia 25 de novembro anunciava em Taubaté a intenção de pagar em dezembro o 13° salário total e a segunda parcela da participação nos lucros e resultados. Por outro lado, através de comunicado, informava manter a proposta já feita de adotar a semana de 4 dias a partir de janeiro de 1999, em troca da redução em benefícios como o 13° salário e o adicional de férias. Além disso, fazia saber que, por motivo da queda de vendas, programara férias coletivas para 20 mil trabalhadores.

Dias depois, tornava a propor a redução da semana de trabalho. Como contrapartida, além de não efetuar reajuste dos salários, pretendia suspender o pagamento do 13°, do abono de férias, da participação nos lucros e resultados, reduzindo ainda o adicional noturno e aumentando o desconto dos funcionários pela assistência médica, vale-refeição e vale-transporte.
E principalmente insistia na informação de que no conjunto das fábricas de São Bernardo do Campo e Taubaté (com 19 mil e 7 mil operários, respectivamente) havia um excedente entre 6 e 7 mil pessoas.
Premidos pelo fantasma da demissão em massa, os operários de Taubaté aceitaram discutir a proposta da montadora.

O mesmo não ocorreu em São Bernardo. No dia 10 de dezembro realizava-se na porta da fábrica uma assembléia que reuniu cerca de 10 mil trabalhadores dos turnos da manhã e da tarde. Metade, segundo o Sindicato, teria votado contra a proposta patronal e metade a favor. O presidente do Sindicato optou, então, pela rejeição, dispondo-se a aguardar a reação da diretoria da empresa e as novas discussões entre os próprios funcionários.

A resposta da direção da montadora foi imediata: ia começar a preparar a lista de demissões na fábrica de São Bernardo do Campo. Reagindo, o presidente do Sindicato, ao mesmo tempo que confirmava estarem as negociações suspensas, declarava que seria organizada uma resistência a qualquer demissão que ocorresse no momento. Por sua vez, a Volks emitia comunicado fixando o dia 11 de dezembro como prazo para que o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC e a comissão de fábrica negociassem a proposta feita pela empresa para reduzir os custos com a folha de pagamento.

No dia 7 de dezembro os metalúrgicos da Volks, em assembléia, apresentavam sua contraproposta.
Concordavam em abrir-mão do reajuste salarial, remetendo para 1999, quando a produção se normalizasse, as negociações sobre a reposição da inflação de 1998, o eventual aumento real e o pagamento da participação nos lucros e resultados. Aceitavam ainda começar o ano trabalhando apenas quatro dias por semana, desde que não houvesse descontos nos salários vigentes nem corte de benefícios e supressão de direitos, como 130 salário e abono de férias.
Essa alternativa trazia prejuízos aos metalúrgicos, mas a proposta da montadora era pior. E, assim, imediatamente após a assembléia, o presidente do Sindicato retomava as negociações com a direção da empresa.

Foi então que, sempre brandindo a ameaça das cerca de 7 mil demissões, a montadora conseguiu o desfecho que já vinha encaminhando durante o mês de pesadelo a que submetera os operários. Em assembléia realizada no triste dia 10 de dezembro de 1998, era quebrado o princípio pelo qual a CUT não aceitava redução de salários: os trabalhadores concordavam com a diminuição temporária da remuneração em 15%, em troca da manutenção do emprego. Ninguém se inscreveu para combater publicamente a proposta, talo atordoamento produzido pela decisão.

Segundo o acordo, os metalúrgicos trabalhariam apenas quatro dias na semana, até que o mercado melhorasse. Para compensar a perda no ganho mensal, receberiam, como se fosse um abono não incorporado ao salário, a participação nos lucros e resultados parcelada em 12 vezes. Também seria paga a reposição da inflação passada de 2,98%, enquanto durasse a redução dos salários. Mas a incorporação plena desse percentual só ocorreria quando as concorrentes Fiat, General Motors e Ford também concedessem o reajuste.

Pelo mesmo acordo, a montadora poderia reduzir gradualmente o quadro de funcionários através do desligamento de aposentados e demissões voluntárias nos cinco anos subseqüentes. Esse sistema, segundo seus executivos, permitiria que a empresa se reestruturasse sem precisar efetuar cortes em massa daí para a frente. Com a saída gradual de aposentados (previa-se uma cifra de 1.300 em dezembro de 1999) e pacotes de demissões voluntárias que seriam abertos três meses por ano, a Volks pretendia fechar número substancial de postos de trabalho em cinco anos, "sem traumas", listas de demissões ou "terror na fábrica". Fernando Tadeu Perez esperava assim reforçar a imagem da Volks perante o consumidor, como uma empresa que tratava "com respeito" seus trabalhadores …

Enquanto as vendas estivessem baixas, o turno da noite seria suspenso na fábrica, com remanejamento para o dia, o que economizava 25% em salários, ao se evitar o pagamento de adicionais. No total, a Volks calculava para 1999 uma economia de 200 milhões com a folha de pagamento.

O acordo teria a validade de dois anos. Nada constava explicitamente sobre garantia de emprego. Mas segundo Tadeu Perez, as demissões voluntárias, a saída dos aposentados, tudo fora pensado para evitar cortes "por um bom tempo".

Em seguida a esse desfecho, os metalúrgicos entravam em férias coletivas até o dia 11 de janeiro, pelo tempo de cerca de um mês, portanto.

Eufórico, o vice-presidente de Recursos Humanos da Volks concedia entrevista à imprensa festejando o acordo de redução de salários. (5)

A negociação, sentenciava ele, "deve basear-se em concessões de ambos os lados". E expunha a sua versão do episódio.

Segundo o executivo, ocorrera que, a partir de janeiro de 1999, os 26 mil trabalhadores das fábricas de São Bernardo do Campo e Taubaté teriam sua carga de trabalho diminuída e, conseqüentemente, os salários reduzidos em 15%. Mas esse sacrifício, afirmava, ia garantir cerca de 7 mil postos de trabalho. Para a montadora, é verdade, havia uma economia de 200 milhões de reais na folha de pagamento. Porém, essa importância era inferior à que seria obtida com o corte de pessoal e sua adoção apenas revelava a disposição da empresa de cumprir "seu papel social ao não promover demissões em massa".

Mencionava também a reposição da inflação passada de 2,98%, concedida como abono. Lembrava que a intenção da empresa no início era não dar nenhum reajuste, diante da crise e da falta de caixa. Mas, em nome de um acordo histórico, decidira fazer essa concessão. Em última análise, ponderava, todos continuavam ganhando 1 00% do salário mensal anterior – e empregados! Em suma, a Volks estaria praticando a modernização das relações trabalhistas!

Mas – e quanto à segurança no emprego? Resposta:
"O que não temos neste acordo nem os sindicalistas queriam, é aquela estabilidade total e suprema que acabou arruinando o Leste Europeu (sic). Nós temos um mecanismo garantindo para a nossa comunidade que, mantido esse mercado mesmo reduzido, não teremos nenhum sobressalto, nenhuma demissão em massa. É evidente que se houver outra crise e em vez de produzirmos 30 mil veículos por mês tivermos de produzir 20 mil, vamos ter de conversar novamente (grifo nosso). Mas nenhum de nós trabalha com essa perspectiva".

Mais uma vez louvava a preocupação social da empresa, ao mesmo tempo que esnobava (e humilhava) a nossa Detroit, o ABC. "Se fôssemos pensar somente do ponto de vista técnico e financeiro, o ideal seria fechar o complexo de São Bernardo do Campo (sic) e abrir outro, para ter as vantagens das novas empresas que estão chegando". Mas também acenava: "Nossos motores são produzidos na fábrica de São Carlos e a pré-montagem comprada do México e da Alemanha. Se houver viabilidade técnica e econômica talvez se passe a fabricar essa pré-montagem na fábrica da Anchieta".

Na CUT, a redução de salários negociada pelo sindicato do ABC levantou uma polêmica envolvendo todas as correntes políticas da Central. Na prática, tratava-se de vincular a remuneração do empregado ao desempenho da empresa. O próprio vice-presidente da CUT e presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo, confirmava que o acordo com a Volks criara um inegável constrangimento.
Defrontado com proposta análoga, embora referente a uma empresa bem menor, o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Campinas, também da CUT, declarou que não a aceitaria de forma alguma. "Aquilo foi uma rendição, não um acordo, e desmontou toda a estratégia da Central de resistência à política do governo de retirar direitos dos trabalhadores".

Mais conciliador, o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Manaus, embora não condenasse o acordo do ABC, declarou que "desejava evitar isso na sua base". Contudo, estranhou que o Sindicato do ABC não houvesse exigido estabilidade por pelo menos um ano, em troca da redução de salários. Aliás, lembrava, o próprio Vice-Presidente de Recursos Humanos da Volks deixara claro que se a produção caísse ainda mais, haveria nova negociação sobre empregos.

Houve críticas também por parte do presidente do Sindicato de São José dos Campos.
De qualquer forma, em reunião posterior, os sindicalistas da CUT votaram a favor da resolução que reafirmava o princípio cutista de preservar direitos. Não se estava desautorizando a opção do presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. A CUT apenas reafirmava aos filiados a orientação de não aceitar redução de salários.

Já o setor patronal comemorava. Empresas de consultoria falavam abertamente em mudar a legislação trabalhista para permitir maior flexibilidade. Na opinião de um desses consultores, o acordo da Volks mostrava que os empregados estavam cada vez mais interessados em se alinhar à estratégia de negócio da empresa, "que precisa ser competitiva". Quanto à Anfavea em particular, Pinheiro Neto, seu presidente, exultava com a maturidade alcançada pelas relações entre capital e trabalho. "Há dois anos era impensável levar para as negociações uma proposta como a da Volks". (A segunda parte será publicada no próximo número)

Paula Beiguelman é professora associada da USP e autora do livro Os companheiros de São Paulo, Por que Lima Barreto, entre outros.

* o presente texto faz parte de um estudo mais amplo, com o mesmo título, ainda em fase de elaboração.

Notas

(I) v. O Estado de S. Paulo, edição de 15 de agosto de 1998. (2) V. Folha de S. Paulo, edição de 16 de agosto de 1998.
(3) V. O Estado de S. Paulo, edição de 16 de agosto de 1998. (4) V. O Estado de S. Paulo, edição de 18 de outubro de 1998. (5) V. O Estado de S. Paulo, edição de 14 de dezembro de 1998.

EDIÇÃO 58, AGO/SET/OUT, 2000, PÁGINAS 50, 51, 52, 53, 54, 55