O economista Celso Furtado completou 80 anos no último dia 26 de julho. A Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) antecipou a homenagem de aniversário e realizou nos dias 8 e 9 de junho o seminário Celso Furtado – a Sudene e o futuro do Nordeste. Especialistas discutiram, em Recife, os desafios da economia brasileira e a questão do desenvolvimento. No encerramento, os participantes ouviram de Furtado, que foi o fundador e primeiro superintendente da Sudene, o discurso aqui publicado pela Princípios.

O deputado federal Sérgio Miranda, líder do PCdoB na Câmara Federal, em pronunciamento na Sessão da Câmara de 16/6/2000, sob o título Recado de um velho mestre afirmou que "Celso Furtado dá grande contribuição ao debate em curso, quando salienta que o problema fundamental do país é político e sua solução

PREVALEÇO-ME do fato de haver acompanhado como observador e ocasionalmente como ator, durante meio século, as profundas mutações que nos trouxeram ao umbral de incertezas que atualmente enfrentamos, para perscrutar o espaço da manobra que nos resta.
Para tentar captar o alcance das transformações em curso no perfil da realidade econômica internacional, destacaremos alguns pontos de notória significação.

a) A inflação virtual que por um decênio afeta a economia dos Estados Unidos, sob a forma de um profundo desequilíbrio na conta corrente do balanço de pagamentos, tende a ser vista como emergência de uma "nova economia" cuja vanguarda tecnológica se concentra nesse país, o que explicaria a drenagem para o mesmo de grande parte da poupança mundial. A solução que venha a ser dada a esse problema pesará decisivamente na configuração futura da estrutura de poder internacional.

b) O amplo processo de destruição-reconstrução das economias do Leste europeu continuará por vários anos a absorver parte da poupança gerada em outras regiões, o que também contribuirá para manter elevadas as taxas de juros passa inevitavelmente pela política – pela construção de um novo pacto político, alicerçado nos interesses da maioria e que se contraponha à política representada pela ação do governo de Fernando Henrique Cardoso.

Um projeto de alternativa ao atual modelo implantado começaria pelo reforço da auto-estima nacional e pela reconstrução da identidade nacional; e por uma participação maior do povo no sistema de decisões como diz ele, tem de partir do alargamento da democracia.
Homens como Celso Furtado dignificam a nação brasileira e suas teses ajudam o povo e a Oposição deste país a seguir o caminho da construção de uma alternativa ao atual modelo insensível, perverso socialmente, antinacional, antipovo – e hoje já vivendo sua crise."

c) A realocação de atividades produtivas provocada pelo impacto das novas técnicas de comunicações e tratamento da informação continuará a intensificar-se, sendo portanto de se esperar que se concentrem mais e mais em áreas do Primeiro Mundo as atividades inovadoras. Assim, deve prosseguir a concentração de riqueza e renda.

d) A orientação assumida pelo avanço das técnicas abre caminho à transnacionalização das empresas e ao desmantelamento dos sistemas nacionais de poder. Emergirá nova superestrutura de regulamentação de patentes e atividades intelectuais em geral, o que contribuirá para aumentar o fosso entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos.

e) A transformação do Estado nacional imposta pela transnacionalização progressiva da esfera econômica constitui certamente um dos maiores desafios a serem enfrentados pela nova geração. Não basta reconhecer que as atividades estatais prioritárias devem ser as de natureza social e cultural. A articulação interna de certas atividades econômicas pode ser indispensável à preservação da identidade cultural. Esse problema assume particular gravidade em países de grandes dimensões como o Brasil.

f) A ação política internacional tende a priorizar a abordagem dos problemas ecológicos, o controle do uso de drogas, o combate às enfermidades contagiosas, a erradicação da fome e a manutenção da paz. As atividades econômicas de âmbito local tendem a ser absorvidas pela esfera do informal. A importância relativa destas define o grau de subdesenvolvimento da região.

g) A estrutura internacional de poder evolui atualmente para assumir a forma de grandes blocos de nações, sedes de empresas transnacionais que dispõem de rico acervo de conhecimento tecnológico de serviços, particularmente os financeiros e os tecnológicos, cresce em detrimento do de bens tradicionais. A dinâmica desse sistema favorece as forças tendentes a reproduzir a atual clivagem desenvolvimento/subdesenvolvimento, vale dizer, um mundo marcado por desigualdades sociais. Para escapar a esse sistema de forças que se articulam planetariamente se requer a conjunção de uma política fundada em amplo consenso social, com condições objetivas que poucos países do Terceiro Mundo reúnem.

Quando comecei a observar o mundo como economista encerrava-se um longo período de tensões agudas e deslocações nas estruturas de poder, marcadas por crises e depressões econômicas sem precedentes e guerras de abrangência planetária. Acompanhamos o desmantelamento de impérios seculares e a emergência de cerca de uma centena de novos Estados nacionais. Grande parte do mundo fragmentou-se politicamente ao mesmo tempo que emergiam estruturas transnacionais apoiadas no poder financeiro e no controle da inovação tecnológica.

O meio século que estamos considerando compreende duas épocas perfeitamente caracterizadas. A primeira foi marcada por um ingente esforço de reconstrução e pela ampliação da área abrangida pelo processo de industrialização. O esforço de reconstrução acarretou a elevação dos preços dos produtos primários, ampliando a capacidade para importar das economias periféricas. Muitas delas, como foi o caso do Brasil, embarcam num processo de industrialização apoiando-se na proteção do mercado interno e na substituição de importações.

O dinamismo engendrado pelo processo de reconstrução foi reforçado pelo expansionismo militar da chamada Guerra Fria, a qual legitimou um esforço considerável de investimentos públicos em frentes tecnológicas de incerta rentabilidade. Esses investimentos – o programa "Guerra nas Estrelas" é revelador de seu espírito – são de impacto profundo, ainda não devidamente estudado, na modelagem de nossa civilização.

Esses foram anos em que prevaleceu uma grande fé no progresso, tanto nos países de velha civilização industrial, onde o avanço das técnicas se traduzia em elevação dos salários reais e em homogeneização social, quanto no mundo subdesenvolvido, cujas populações começavam a ter acesso aos padrões de vida modernos.

Certo, esse quadro aparentemente harmonioso comportava falhas que alguns observadores começavam a detectar. Já no começo dos anos 50 pareceu-me oportuno chamar a atenção para a natureza, a estrutura e a difícil reversibilidade do processo de concentração da renda que ocorria em países como o Brasil, tanto nas fases cíclicas de expansão quanto nas de recessão. O fato de a produtividade macroeconômica e a renda per capita serem muito inferiores nos países periféricos faz com que a reprodução imitativa dos padrões de consumo dos países ricos somente se tome possível concentrando a renda. Para escapar disso se requer uma política difícil de se implementar numa economia de mercado.

Essa situação tendeu a agravar-se no último quartel do século XX, quando ocorreu crescente controle das atividades industriais periféricas por empresas transnacionais sediadas nos países que lideram a inovação tecnológica.

Limitando-nos ao essencial, partiremos da evidência de que o sistema de decisões que comandam as atividades tecnológicas, financeiras e industriais opera crescentemente no sentido da concentração. Conseqüência inevitável desse processo é o enfraquecimento e o provável desmantelamento das estruturas nacionais de poder, essa invenção dos tempos modernos que abriu caminho ao avanço do regime democrático.

É evidente que problemas dessa ordem se apresentem de forma distinta de país para país em função de sua formação histórica e estruturas de dominação interna e externa. Considero importante que essa questão seja objeto de debate sério entré nós, pois seria ingênuo ignorar que somos um país em formação e aquele que mais teria a perder no hemisfério com a renúncia à soberania monetária, instrumento fundamental da governabilidade.

O paradoxo maior com que nos confrontamos consiste em que o formidável esforço de acumulação e de criatividade que marcou a segunda metade do Século XX engendrou um mundo cuja lógica nos escapa no essencial. A tendência estrutural à concentração da riqueza e da renda em benefício de reduzida minoria social generalizou-se, apresentando-se com igual vigor nas economias da vanguarda tecnológica. A concentração desmedida do poder financeiro e econômico deixa entrever a tendência inescapáve1 à criação de estruturas de poder decisório de abrangências planetárias. Sendo assim, marchamos inexoravelmente para uma forma de unificação política Ora, se levarmos em conta a heterogeneidade social do mundo em que vivemos, temos de reconhecer que a estrutura política engendrada pela globalização econômica deverá assumir a forma de um poder imperial, portanto, essencialmente antidemocrático.

Mas seria ingênuo imaginar a história dos homens governada apenas pelas forças que moldaram o seu passado. O próprio dos homens é aprender a enfrentar vicissitudes. Basta lembrar as forças sociais que se arregimentam em todo o mundo contra a abertura desordenada de mercados propugnada pelas empresas trans-nacionais. O dinamismo dessas empresas funda-se no desmantelamento dos sistemas de economia nacional, o que se traduz em concentração de renda e desemprego. Trata-se de uma lógica economicista que somente pode ser combatida se se adota uma visão da atividade social apoiada em valores substantivos.

Portanto, urge renovar o debate sobre a problemática do desenvolvimento visando a superar o economicismo que o empobrece atualmente. Não se trata apenas de alcançar altas taxas de crescimento e sim de elevar o nível de bem-estar, privilegiando os que estão atualmente embaixo na escala social.

Celso Furtado é economista e ex-ministro do Planejamento, no governo João Goulart, e da Cultura no governo José Sarney. Publicado originalrnente no Correio Braziliense, 18/6/2000.

EDIÇÃO 58, AGO/SET/OUT, 2000, PÁGINAS 16, 17, 18