As cidades sem recursos
E relevante reconhecer a atualidade da questao urbana no Brasil e buscar soluções. Esta é uma antiga aspiração da sociedade organizada. E preciso agir, urgentemente, para recuperar nossas cidades e torna-las diganas para suas populações.
Nas últimas duas décadas, a urbanização no Brasil tem se processado de forma extremamente acelerada. Enquanto em 1975 cerca de 61,15% da população morava em núcleos urbanos, em 2005 as previsões indicam que 81,21 % estarão nas cidades. Esse processo ocorreu com as seguintes características:
• crescimento desordenado e fisicamente concentrado;
• ausência de planejamento e padrões atrasados de gestão;
• demanda não atendida por serviços;
• rápida obsolescência da estrutura física existente; e
• degradação ambienta!.
Esse processo de urbanização não tem sido efetivamente considerado pelo governo central nas decisões das políticas macroeconômicas. As transformações na dimensão espacial do desenvolvimento econômico contribuíram para reforçar a heterogeneidade econômica e social no desenvolvimento das regiões e cidades brasileiras. Assim, surgiram os "núcleos de prosperidade" em algumas regiões, onde o crescimento populacional é mais elevado, provocando o fenômeno de expansão urbana com a intensa formação de regiões metropolitanas.
Os investimentos públicos têm se caracterizado por privilegiar esses espaços dinâmicos, acentuando as tendências de concentração demográfica nas áreas metropolitanas e aglomerações urbanas, reforçando os desequilibrios da rede urbana e agudizando os problemas sociais, urbanos e ambientais dos grandes centros – visto que estes investimentos não levam em conta os danos decorrentes.
Para reverter esse processo, faz-se necessária uma profunda reformulação nas políticas públicas de intervenção no território, considerando o uso e ocupação do solo urbano, os serviços de infraestrutura urbana, o acesso à moradia, aos serviços básicos de educação, de saúde, as condições de emprego, de lazer e de habitabilidade das cidades.
As atuais políticas de uso e ocupação do solo têm privilegiado objetivamente a especulação imobiliária e a degradação ambiental. Urge promover a urbanização das ocupações com o reassentamento da população localizada em áreas de preservação e de risco, a preservação e ampliação de áreas verdes, a ampliação e equipagem dos espaços públicos, a ampliação e preservação das vias de acesso e trânsito dos pedestres, a adequação e ampliação da malha viária urbana para tráfego prioritário do transporte público, a criação e ampliação de ciclo vias, a adequação e aperfeiçoamento dos serviços básicos de saneamento.
A ocupação de áreas públicas principalmente ao longo de rios, córregos e encostas – pela população pobre, excluída do seu direito à cidade pelo preço elevado da propriedade da terra urbana, cria a cidade ilegal, sem infra-estrutura e com riscos de tragédias diversas – alagamento, deslizamento e proliferação de doenças, entre outras.
A falta de planejamento nas políticas públicas de geração de emprego tem provocado competição entre as cidades brasileiras pela criação de empregos industriais. Para enfrentar essa competição, as prefeituras têm renunciado à cobrança de impostos, agravando seu desequil1brio orçamentário e privando as cidades de investimentos na infra-estrutura urbana e custeio de serviços essenciais como saúde, educação e habitação.
Para que não seja perpetuado esse modelo de desenvolvimento urbano, urge que as cidades tenham planos diretores estratégicos, promovendo mecanismos de reservas territoriais para áreas verdes, limitando a abertura de novos loteamentos, combatendo a existência de lotes urbanizados sem aproveitamento, e adequando o sistema viário ao transporte público de massa. A ausência de políticas integradas, de orientação técnica eficiente e de imposição de normas adequadas têm gerado centros urbanos que, a curto prazo, repetirão os problemas das cidades mais densas.
A lógica da divisão social do trabalho sob o signo da desigualdade e da acumulação do capital, e modernamente sob a gestão neoliberal, ignora que a cidade deve ser um espaço de vida e harmonia, delimitado em seu crescimento. Essa lógica traz consigo o fenômeno da acumulação que dispensa os fatores capital e trabalho, definindo a função da propriedade na perspectiva da geração e multiplicação do fácil lucro imobiliário desde a ação do Estado – que, ao beneficiar com equipamentos públicos as terras urbanas monopolizadas, agrega valor especulativo e fantástica riqueza para os grandes proprietários.
Esse modelo atrofia o papel da cidade contemporânea pois, conduzido pela economia de mercado, instala a barbárie na forma ascendente do desemprego, da marginalidade, da violência, da destruição ecológica e dos símbolos culturais, na forma do desmoronamento da construção social coletiva.
Os efeitos sistemáticos da inversão populacional entre o campo e a cidade trazem, entre as suas seqüelas, resultados que superam guerras como a do Vietnã: cidades como São Paulo e o Rio de Janeiro assassinaram, entre 1989 e 1999, mais de 60 mil pessoas. A cidade de São Paulo, apenas no primeiro semestre deste ano, vitimou seis mil pessoas. Outras cidades, como Fortaleza, seguem a mesma trajetória.
De locus para o exército de reserva de mão-de-obra, inicialmente, as periferias constituíram, em poucas décadas, o reduto que mescla trabalhadores e marginais, sempre separados em sua condição social por uma frágil linha divisória. Os presídios e FEBEMs constituem hoje escolas de criminalidade de excluídos sociais e não suportam mais as populações carcerárias, transbordando de volta para a sociedade a nefasta obra do capitalismo: a barbárie.
No mesmo contexto de São Paulo, o Rio de Janeiro, de "cidade maravilhosa" transformou-se no território exemplar da guerra civil não-declarada: em suas favelas, a ação institucional é impenetrável e o comando soberano da população é exercido por núcleos do narcotráfico.
Nesse ambiente é posto o limite e o alcance da via legislativa para a resolução de vultosos problemas. Portanto, a estrita questão da política urbana deve ter princípios norteadores e normas básicas edificados a partir da discussão com a sociedade – organizações e lideranças populares, especialistas, parlamentares, etc – para que se tome vinculada ao processo social que gera transformações.
Desse modo, cumprindo a determinação constitucional de que à União compete instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, impõe-se a aprovação de uma lei que trate de temas como planejamento das cidades, justa ocupação do solo urbano, gestão urbana participativa, plano diretor, regiões metropolitanas e problemas afins – uma legislação para instrumentalizar os municípios para que possam cumprir da melhor forma, nas atuais circunstâncias, o papel de principais sujeitos e beneficiários da política urbana. Não é, contudo, suficiente apenas uma legislação. Somam-se outras dificuldades aos obstáculos de natureza histórica e estrutural.
Dívidas e desvios de recursos
Antes da primeira gestão de Fernando Henrique, a dívida externa brasileira era de US$103 bilhões (dezembro de 1994); hoje, de aproximados US$ 250 bilhões. A dívida interna, de R$ 61,4 bilhões em 94, mesmo com as privatizações, já ultrapassa os R$ 500 bilhões. Neste ano (2000) 69,17% do Orçamento da União (OGU) estão sendo queimados em juros e amortizações. Na mudança cambial de janeiro de 1999 as perdas superaram os R$ 100 bilhões. No orçamento da União de R$ 1 trilhão para o ano 2000 a rolagem da dívida previa consumir RS 633 bilhões e mais R$ 143 bilhões em encargos financeiros da União – basicamente relativos aos juros da dívida, contratual e mobiliária e à amortização líquida dessas dívidas. Esses encargos significam quase 44% dos gastos do Estado brasileiro num orçamento real de R$ 320 bilhões.
A convocação extraordinária do Congresso Nacional pelo Executivo, em janeiro de 2000, mostrou exemplarmente a preocupação fundamental do governo FHC: assegurar garantia absoluta aos credores financeiros (em bom português, os agiotas internacionais) e que é sólida sua régia remuneração mesmo que nenhum centavo tenha sido investido na economia do País. Feita de acordo com a agenda do FMI, a pauta de votações destacou, sob o pano místico do equilíbrio das contas públicas, as proposições articuladas que efetivam o saque do País, chutando para o espaço a reforma tributária e enrijecendo em lei a atual política econômica, com o apoio da maioria governista subserviente a esses propósitos.
O governo FHC logrou nessa convocação, primeiro, o confisco de 20% do Orçamento Geral da União (OGU), com a PEC que criou a Desvinculação de Receitas da União (DRU) para garantir os R$ 28,6 bilhões do superávit primário acertado com o FMI. O DRU, que além de outros fatores é inconstitucional também porque se transforma num novo tipo de tributo, substitui o Fundo de Estabilização Fiscal, oferecendo nova roupagem a uma velha fraude. Assim, recursos amarrados às áreas sociais poderão ser utilizados no pagamento de juros, encargos e amortização da dívida pública.
As receitas do Fundo de Participação dos Estados, FP dos Municípios e Fundos regionais persistirão afetadas, pois a desvinculação é calculada sobre a participação dos estados e municípios, reduzindo em muito as parcelas liberadas. Os Fundos para Educação e Saúde, e outros com destinações sociais, terão as perdas de praxe: 20% de suas receitas. O INSS sofrerá, como antes, o maior rombo: cerca de R$ 12,5 bilhões anuais. Para fechar a conta acertada com o FMI, o governo ignora a Carta Magna: as inconstitucionalidades marcam todo o texto da DRU.
Desde 1996, encargos com Saúde e Educação têm sido repassados nos municípios, determinando inclusive vinculações de receitas para programas nessas áreas. Sem contrapartidas financeiras para as perdas globais no Orçamento, crescem as dificuldades orçamentárias e a precariedade desses serviços públicos. Os mecanismos das desvinculações, desde a imperiosa agenda da dívida, contribuem para a diminuição gradual das transferências voluntárias da União, já que o governo fica desobrigado dessas despesas. Em 1994, mesmo com os efeitos do famigerado Fundo Social de Emergência, as transferências constitucionais representavam somente 19% da receita tributária da União. Em 2000, serão apenas 14,9%.
Em seguida, o governo aprovou a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), também inconstitucional, que não vai limitar nenhuma farra com o dinheiro 'público ou impor limites à corrupção, pois amplia os gastos financeiros: os governos podem se endividar, especialmente a União. Quem rouba poderia ser punido mediante leis já existentes. A LRF impede que novos programas sociais sejam financiados com uma maior arrecadação derivada do crescimento econômico ou de uma coleta mais expressiva de tributos. Trata apenas de metas fiscais, congela gastos sociais, impede a renegociação de dívidas e leva à agonia o Pacto Federativo.
Doravante, será possível enquadrar no Código Penal o prefeito ou governador que não demitir servidores, não reduzir os gastos sociais ou não pagar dívidas junto aos bancos. Mas não será possível fazer o mesmo com o presidente da República e sua equipe econômica que, até agosto de 1999, acumularam no Banco Central um prejuízo de R$ 23 bilhões derivado da atual política cambial e monetária. Esses, agora, contam com a LRF para alegrar seus agiotas.
É um autêntico compromisso com a recessão e com a ciranda financeira, delimitando a atividade econômica à iniciativa centralizada no governo federal. Nas circunstâncias atuais, significa a paralisia do País e de sua economia, marcada pela mais elevada taxa de desemprego da história republicana. O endividamento continuará crescendo, pois não depende de gastos fiscais. Ocorre que este mesmo País, que jamais viu também tão exorbitante taxa de juros, não estará mansamente deitado em berço esplêndido se a sobrevivência de seu povo passar a depender de um tiro de misericórdia.
Os números do endividamento vão crescendo com a desvalorização do real em relação ao dólar. Uma bomba de sucção, instalada entre Brasília e Wall Street, enxuga o bolso do povo para alimentar a bolha financeira dos EUA. (De onde viriam, então, os R$ 40 bilhões para habitação e infra-estrutura urbana, anunciados para o período 1999-2002?).
E o Palácio do Planalto avança sobre outros recursos: aplicou R$ 12,4 bilhões (de um total de R$ 13,5 bilhões do FGTS destinados às ações de saneamento, habitação popular e infra-estrutura urbana) em títulos da dívida pública federal. Somem dos orçamentos locais os recursos previstos na Constituição de 1988. O Pacto Federativo, em cheque, expõe as fraturas das dívidas estaduais e governadores submetidos e humilhados pelo Executivo federal.
Tais formidáveis recursos seriam suficientes para solucionar os dilemas urbanos e sociais do País, arcando com todas as despesas e financiamentos praticados em todas as atividades públicas. Nessa sangria estão valores que superam de longe o orçamento de cidades como São Paulo (a terceira maior do mundo, com um orçamento de R$ 10 bilhões em 99 e uma redução para R$ 7,6 bilhões em 2000), Rio de Janeiro (R$ 4,9 bilhões em 99 e R$ 4,5 bilhões em 2000), Belo Horizonte (com um orçamento de R$ 1,48 bilhão em 99 e R$ 1,67 bilhão em 2000); Salvador (orçamento de R$ 1,30 bilhão em 99 e R$ 1,20 bilhão em 2000); ou Fortaleza (orçamento de R$ 837 milhões em 1999).
A estrutura urbana é submetida aos termos de um plano econômico que instalou a miséria no país, concentrando brutalmente a renda e comprometendo os recursos do desenvolvimento nas malhas do endividamento. Isso impede os investimentos sociais e a melhoria da qualidade de vida nas cidades. São 15 regiões de perfil metropolitano (mais de 200 municípios) e cerca de 400 cidades de médio e grande porte, todas em dificuldades insolúveis nos marcos deste perverso modelo.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), um organismo oficial da Presidência da República, dos 55 mais importantes países o Brasil é o mais injusto: 10% dos brasileiros mais ricos ficam com 48,21 % da renda nacional e os 40% mais pobres com apenas 7,10%. Mais contundente ainda é a concentração de 17% da renda nacional e de 53% do estoque líquido da riqueza privada do País (R$ 2 trilhões e 22 bilhões) no acervo patrimonial de 1 % da população. No outro extremo, mais de dez milhões, os desempregados, sem renda para sobreviver e muito menos para adquirir moradias prometidas por um governo sem recursos. Esses vão se agregando ao contingente de 44 milhões de brasileiros excluídos, que vegetam na faixa de renda inferior a meio salário mínimo.
A maior parte da população mundial mora hoje nos grandes centros urbanos, os quais concentram inúmeros e complexos problemas diretamente relacionados à qualidade de vida. Nessas cidades é gerada a parte significativa da riqueza no Brasil- pelo menos 90% – e no mundo. Temos, nessas circunstâncias, a missão de lutar para viabilizar qualidade de vida para esses milhões de trabalhadores que alavancam a economia.
Por outro ângulo, os problemas urbanos e as suas respectivas soluções guardam forte vínculo com os dilemas do campo, constituindo-se aí um elo indissociável. No centro da questão da reforma urbana está o tema da propriedade, do mesmo modo que no cerne da questão agrária está o latifúndio. A concentração da terra urbana, a especulação imobiliária, o desenho caótico das cidades, os interesses contidos nessa expansão, têm como vertente a questão da propriedade. Temos, portanto, grande responsabilidade ao debater a reforma urbana, atentos ao drama geral vivido pelo Brasil.
Inácio Arruda é deputado federal pelo PCdoB-CE
A dívida estratosférica do município de São Paulo
A política federal, combinada com a ação irresponsável das duas últimas administrações, fez com que a dívida da São Paulo saltasse de aproximàdamente 4,9 bilhões de reais (no começo do governo Maluf) para 18 bilhões em julho de 2000 com estimativa de atingir 19,6 bilhões no final do governo Pitta.
Parte significativa dessa dívida é responsabilidade da política dos juros exorbitantes adotada pelo governo de Fernando Henrique com o objetivo de remunerar o capital especulativo estrangeiro; e parte se deve à irresponsabilidade do "malufismo ", que gastou muito mais do que podia em obras superfaturadas e negócios nebulosos – dentre eles o caso dos precatórios, que envolveu o apoio à reeleição de FHC.
Com isso a situação da Prefeitura é dramática: tem uma dívida que é mais de duas vezes o seu orçamento anual – de 7,6 bilhões de reais. Somente em 2001 São Paulo terá de desembolsar até 13% da receita líquida do município (780 milhões de reais) para cumprir o acordo – esdrúxulo -firmado entre Pitta e o governo FHC na renegociação de 10,5 bilhões de reais da dívida. Mantida essa situação, a Cidade não terá recursos para investir em sua população e resolver seus problemas estruturais, além de comprometer os serviços essenciais.
O caso da dívida de São Paulo, e outros semelhantes, exige uma auditoria para identificação de suas origens e de seu suspeito crescimento acelerado recente. Essa auditoria pode revelar as fontes da corrupção e identificar claramente os impactos da política do governo federal no montante dessa dívida, deixando mais claras as devidas responsabilidades. Com base nela, um amplo debate e mobilização da sociedade precisa ser implementado com o objetivo de viabilizar as soluções e os investimentos necessários ao desenvolvimento da cidade. Há necessidade até mesmo de uma revisão dos acordos feitos por Pitta-FHC numa re-renegociação, a partir de novas bases políticas, e objetivando garantir a inserção soberana da Prefeitura de São Paulo nesse processo. Esta é a herança de Maluf e Pitta, e que FHC e Malan não querem mudar.
Edvar Bonotto
EDIÇÃO 59, NOV/DEZ/JAN, 2000-2001, PÁGINAS 16, 17, 18, 19, 20, 21