Durante a 52a Reunião Anual da SBPC (Julho de 2000) na Universidade de Brasília (UnB), ocorreu o III Encontro de Jovens Cientistas – promovido pela Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG) e pela União Nacional dos Estudantes (UNE). O encontro reuniu 400 estudantes dos programas de iniciação científica e pós-graduação. Com o tema "Ciência e Resistência", o professor José Leite Lopes, decano da Ciência no Brasil, foi homenageado. Princípios reproduz, aqui, parte dessa conferência. PRIMEIRAMENTE, gostaria de registrar que é uma satisfação falar para a mocidade estudiosa brasileira aqui presente neste Encontro de Jovens Cientistas.

A idéia de Universidade demorou para ser desenvolvida e implementada no Brasil. Até parece que o atual governo durou a vida inteira deste nosso país! Nunca houve tamanha resistência à formação da Universidade como a que vivenciamos por aqui. Da monarquia portuguesa à República, a Universidade não foi considerada importante. Nossa primeira Universidade – a Universidade de São Paulo (USP) – foi criada em 1934, há apenas 66 anos.

A discussão de como se desenvolveu a idéia de Universidade em nosso país e o papel da ciência e da tecnologia, além de uma questão educacional, dizem respeito ao atual processo de resistência que enfrentamos em defesa da democracia e da soberania nacional.

Um difícil percurso

Nos séculos XVI e XVII tentou-se imprimir os primeiros jornais no território brasileiro. Houve, então, um decreto da Corte portuguesa proibindo que se imprimisse qualquer coisa no Brasil. Por aqui era proibido também a fabricação de produtos, por mais simples que fossem. Éramos uma colônia onde os portugueses apenas recolhiam matérias-primas, acumulando riquezas à nossa custa. Assim, vivemos todo esse período sem uma universidade.

Antes de termos uma universidade propriamente, tivemos as faculdades, sendo que algumas foram criadas pelo rei D. João VI. Em decorrência da invasão napoleônica, ele instalou a Corte no Brasil e desenvolveu uma série de novas instituições – dentre elas, criou até mesmo um banco, o primeiro banco do Brasil. Com a transferência da família real para o território brasileiro, em 1808, foi criado o Curso Médico de Cirurgia da Bahia e, no mesmo ano, a Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro. Em 1818 criou-se a Academia Real Militar, da qual se originou a Escola Politécnica do Rio de Janeiro.

Os debates da Constituinte de 1823 conduziram a um projeto de lei que previa a criação de duas universidades no Brasil – uma no norte e outra no sul. Passado algum tempo e após várias tentativas – houve até um projeto do imperador Pedro II, mas na véspera de sua votação ele dissolveu a Constituinte -, o quadro não se alterou. Quando se acabou com o Império e, em 1889, foi proclamada a República, havia seis estabelecimentos de ensino superior no Brasil – e nenhuma universidade.

Tivemos de esperar por Rui Barbosa para termos afirmações contundentes sobre a importância da Universidade para o país.

Depois de surgirem outros projetos para a criação de universidades no norte e no sul do país, criou-se uma instituição em 1920 no Rio de Janeiro, seguindo a idéia de juntar as então faculdades de Medicina, Direito e a Escola Politécnica. Em 1926, em Minas Gerais, esse procedimento foi repetido.
Somente após a revolução de 1930 comandada por Getúlio Vargas – e junto a uma série de transformações, é que apareceu um decreto que expôs a forma de como seria uma universidade, a partir do então Ministério da Integração.

Após o movimento de 1932, em que São Paulo lutou contra o governo de Getúlio Vargas e foi derrotado, uma série de intelectuais paulistas – como o proprietário do jornal O Estado de S. Paulo – resolveu criar a Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras para formar os novos dirigentes políticos da província. Em 1934 eles enviam o matemático Teodoro Ramos (da Escola Politécnica) para a Itália, a fim de consultar Enrico Fermi um dos maiores físicos do século – sobre possíveis nomes para o quadro docente da nova instituição que estava sendo formada na capital paulista. Matemáticos, físicos, químicos, biólogos, poetas e outros profissionais europeus compuseram assim a faculdade em 1934 e, em 1937, dela saía a primeira turma. Dentre os formandos, Mário Schenberg e outros físicos, deram contribuição à ciência mundial (a exemplo da descoberta da componente penetrante dos raios cósmicos). A instituição paulista desenvolveu pesquisas e passou a divulgá-Ias nas revistas internacionais. A primeira universidade brasileira estava, assim, se constituindo e seria a USP.

Em 1935 o governador do Distrito Federal (Rio de Janeiro), Pedro Ernesto, convidou Anísio Teixeira para a Secretaria da Educação – ele foi o maior educador brasileiro. A equipe de Anísio Teixeira, composta por grandes personalidades, iniciou marcantes transformações na educação do Distrito Federal, criando, em 1935, a Universidade do Distrito Federal (UDF). No corpo docente, o novo projeto envolveu o que havia de melhor na inteligência nacional: Villa- Lobos, Oscar Lorenço Fernandes, Gilberto Freyre, Artur Ramos, Ledo Gama, Costa Ribeiro e muitos outros. A Universidade criada era constituída pelo Instituto de Educação, Escola de Ciências, Escola de Economia e Direito, Escola de Filosofia e Letras, Instituto de Artes e outras partes.

Entretanto, Anísio sofreu ataques de setores conservadores e seu projeto foi interrompido. Mas devemos a ele também a ênfase na qualidade da formação dos professores, que, ao meu ver, foi perdida a partir da ditadura militar de 1964.

Dentre tantas lutas travadas nas décadas de constituição da Universidade brasileira, teve importância a que estabeleceu o regime de tempo integral para os professores e pesquisadores. Estive entre os primeiros a se enquadrar nesse regime.

Enfrentando toda série de dificuldades, constituímos uma rede de universidades públicas por todo o país: UnB, USP, UFRJ, UFMG, UFF, UFRGS, UFPE, UFPA… enfim, podemos dizer que a Universidade brasileira é, hoje, um patrimônio de seu povo.

Um debate não resolvido

Na 1ª Conferência Nacional de Educação (realizada em 1927, em Curitiba), o grande matemático brasileiro Manoel Amoroso Costa fez um discurso sobre a importância da Universidade e da pesquisa científica, defendendo que as faculdades de ciência deveriam ter por finalidade, além do ensino da ciência já produzida, a de formar pesquisadores em todos os ramos do conhecimento humano.

Esse debate é muito importante e ainda atual, pois, hoje, vemos proliferar uma enorme quantidade de escolas privadas que não fazem pesquisa. Mas é fundamental deixarmos claro que, se a instituição não faz pesquisa não deve ter o nome de Universidade. Universidade é a instituição que tem como papel fundamental – além de formar os recursos humanos – criar conhecimento novo.

Até poucos dias, estava na moda falar-se em "transferência de tecnologia". Quadros do atual governo e economistas falavam em "transferir tecnologia" para nosso país. Tal "transferência" era entendida como mera aquisição de unidades fabris da Europa e dos Estados Unidos para cá. Mas essa ação pouco significa para uma estratégia de desenvolvimento, pois o importante mesmo não é isso; a transferência de conhecimento é que realmente importa – e é a Universidade que faz o conhecimento científico. É a pesquisa científica que gera a tecnologia necessária para o desenvolvimento econômico e social que o país tanto necessita. As novas tecnologias, divulgadas hodiernamente nos meios de comunicação, resultam do fato de nos países avançados (de onde se originam) haver o devido apoio à pesquisa científica pura. Na França, por exemplo, não existe universidade privada – lá o Estado apóia a Universidade (e o ensino em todos os níveis) e investe na pesquisa científico-tecnológica. Em outros países, como Alemanha e Itália, há exemplos semelhantes.

Aqui foi propagado pela equipe econômica que está no poder, que nos Estados Unidos tudo o que se refere à tecnologia teria sido e é feito pela iniciativa privada. Isso não é verdade. No início do século XX houve a constatação de que o ensino superior norte-americano era ruim e estudos sobre o tema tiveram grande repercussão, gerando investimentos públicos e privados, melhoria nas universidades e criação de laboratórios. Há destaque para a criação e manutenção de excelentes universidades públicas sustentadas pelas unidades federativas norte-americanas – como a Universidade da Califónia e tantas outras. Naquele país, como em qualquer outro, o setor privado sozinho não conseguiria sustentar as pesquisas de ponta (nuclear, espacial … ) e demais pesquisas científicas que envolvem projetos de bilhões de dólares. O governo federal dos Estados Unidos apóia esses projetos e tem instrumentos como a National Science Foundation, que, recentemente, recebeu um aumento significativo em sua dotação orçamentária na gestão Clinton. Por aqui, as elites empresariais além de não investirem na Universidade e na produção de C&T, criticam equivocadamente nossas instituições públicas.

A idéia mais importante presente neste governo – chefiado pelo homem que gosta de viajar, de ver reis e rainhas, preparando terreno para assumir um posto internacional quando acabar (esperamos que em breve) o seu governo – é a de privatizar a Universidade pública. A atual equipe econômica afirma que é melhor importar do que produzir pesquisa científica, que é melhor comprar a ciência e a tecnologia feitas lá fora. Desconhece, assim, nossa própria história, que, exemplarmente, demonstra não ter sido a pesquisa importada que, por exemplo, debelou a febre amarela em nossas terras – foi o nosso Instituto Oswaldo Cruz, que se constituiu há 100 anos, na nossa primeira instituição de pesquisas de valor internacional. A produção nacional de petróleo e as pesquisas de ponta da Petrobrás se desenvolveram contra a pressão externa. Assim como esses, temos vários exemplos significativos de quando investimos em saídas próprias e tivemos êxito. Atualmente temos desenvolvido a pesquisa, que ganhou notoriedade, sobre o código genético da bactéria que atinge os laranjais e que, registre-se, conta com recursos da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), um órgão público.

A política do governo federal tem sido a de destruir a universidade pública e deixar que proliferem as escolas privadas, que já somam grande número e têm absorvido muitos professores (e até reitores) das públicas para lhes emprestar prestígio mínimo.

Assim, o maior problema que nos aflige hoje é o que fazer perante esse governo. O atual presidente – que não foi eleito para vender o Brasil – quer privatizar nosso patrimônio público, está vendendo a Petrobrás e até mesmo o Banco do Brasil corre perigo. Além de aumentar a dívida do país, o presidente vende, privatiza – como fez com a Vale, a maior companhia mineradora do mundo, detentora de alto padrão, minas, florestas … – tudo o que gerações de brasileiros construíram ao longo de décadas. A Universidade pública brasileira, que enfrentou tantos desafios para se gestar e se desenvolver nas últimas décadas, se depara, agora, com o maior desafio.

À custa de sangue, suor e lágrimas este presidente está se desfazendo de muita coisa que nos fará falta, e é nesse perigoso contexto que o debate sobre a importância da Universidade e da pesquisa científica ganha urgência.

Nossas universidades estão sucateadas, nossos laboratórios obsoletos e nosso sistema nacional de C&T está à beira do colapso. Por outro lado, a ciência não pára: os outros países desenvolvem novas pesquisas a cada dia. A importância de pesquisas como as da energia nuclear, espacial, biotecnologia e outras é fundamental no cenário geopolítico internacional.

Mas o papel do governo brasileiro tem sido de subserviência em relação ao Primeiro Mundo. Lembremos da denúncia feita aqui nesta Reunião sobre os acordos do Brasil com os Estados Unidos e que envolvem a base de Alcântara, no Maranhão: nele, fazemos concessões absurdas para os norte-americanos poderem lançar seus foguetes de forma vantajosa – dentre elas a de que o Brasil fica impedido de aplicar os recursos que vai receber no próprio desenvolvimento de pesquisas espaciais! Isso é um absurdo: não é um acordo, é um diktat. No que se refere à Amazônia, suas riquezas e recursos naturais, nossa soberania também foi praticamente renunciada.

Compete a vocês, mocidade estudantil e científica, transportar a chama para resistir a todas essas iniciativas de reduzir e destruir a pesquisa científica no Brasil. Precisamos discutir os grandes problemas nacionais. A situação do Brasil é grave. Este é o pior presidente de nossa história – não é à toa que ele quer acabar com a era Vargas (justamente a que lançou as bases de nossa infra-estrutura moderna). Este governo não apóia nada que seja nacional ou nacionalista e desvaloriza tudo o que é brasileiro.

Nós precisamos levar a sério nossa Universidade e, além de tudo, melhorá-Ia para que ela possa servir à sociedade, ao povo, aos jovens – do presente e do futuro.

José Leite Lopes é físico e presidente do CBPF (Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas)

EDIÇÃO 59, NOV/DEZ/JAN, 2000-2001, PÁGINAS 58, 59, 60, 61