Até há poucas semanas a apologia do capitalismo ancorava-se na crença da mudança de sua natureza cíclica, movida a crises. As catástrofes sociais periódicas provocadas por ele estariam esconjuradas por uma engenharia política e social que pôs ordem nessa natureza anárquica e impetuosa. A prova disso seria a alardeada capacidade de monitoramento das crises, que permitiria desacelerar a economia norte-americana e levá-la ao "pouso suave" necessário para ajustar a "exuberância irracional" (expressão reproduzida pelo presidente do FED, o Banco Central dos EUA, Alan Greenspan) das bolsas de valores com o rés do chão da economia.

Nas últimas semanas de outubro, o otimismo esboroou-se numa onda de dúvidas. A divulgação do índice de 3,9% de desemprego nos EUA em setembro (o menor desde 1970) provocou queda nos índices de Wall Street. O anúncio pelas empresas "ponto.com", que operam na internet, de lucros menores que o esperado desfez ilusões em tomo da chamada "nova economia" e afastaram os investidores.

Isto resulta, para os analistas, de um conjunto de fatores adversos: o aumento no preço do petróleo, ameaça que cresce com a escalada da violência no Oriente Médio e compromete o nível da atividade econômica em todo o mundo, principalmente nos países ricos; a queda nos lucros das empresas nos EUA; o euro desvalorizado, que dificulta a vida das exportações americanas para a Europa – tudo isso levanta dúvidas quanto ao "pouso suave".

O analista Martin Wolf, do Financial Times, prestigiado jornal dos meios financeiros de Londres, diz que a "questão é até que ponto as coisas podem piorar". Outra revista do grande capital, a norte-americana Business Week, reconhece que a prosperidade global encontra-se seriamente ameaçada, e aponta num "cenário de pesadelo".

A forma dessa ameaça é o fantasma de 1929. Para o economista Robert Shiller, da Universidade de Yale, a crise já começou, e caminha pela mesma trilha de 70 anos atrás. "Em 1929", diz ele, "a queda definitiva e mais acentuada no preço das ações se deu após um período de dois anos marcado por uma intensa volatilidade. Um processo semelhante parece apenas ter começado nos EUA". Shiller, que é autor do livro Exuberância irracional, lançado nos EUA em abril passado, compara a atual desvalorização das ações ao que ocorreu naquele período de dois anos, quando os títulos negociados em Nova York perderam cerca de 90% de seu valor. Ele não está sozinho neste diagnóstico; Samuel Brittan, do Financial Times, também vê um forte paralelo entre os anos 20 e os anos 90.

Os sinais do desconforto são múltiplos. Um deles é a perda, pelo "mercado" (isto é, os especuladores financeiros) da crença na capacidade das empresas americanas se saírem bem em uma eventual queda na atividade econômica mundial, e de sustentar seu desempenho recente. Os dados parecem confirmar esse temor. Robert Shiller diz que, desde 1985, as falências pessoais nos EUA cresceram quatro vezes. Por outro lado, as empresas nunca captaram tantos empréstimos através de títulos lançados no mercado. E seu endividamento é preocupante, alcançando – no segundo trimestre deste ano – 83% do valor do patrimônio líquido, o recorde dos últimos 7 anos. Mesmo setores que, aparentemente, iam bem passam por dificuldades. Um exemplo é o das telecomunicações, este Midas moderno capaz de transformar tudo em ouro e que, na hora do acerto de contas, descobre-se em dificuldades, depois de ter tomado bilhões de dólares emprestados para financiar sua expansão. A Covad, por exemplo, a maior fornecedora independente de linhas de banda larga para assinantes digitais nos EUA, captou uma fortuna em títulos. Em outubro, anunciou que tomou calote de alguns clientes, e o valor de suas ações na bolsa caiu 60%. No reino "ponto.com", teme-se que três em cada quatro, entre as 400 empresas que negociam nas bolsas dos EUA, vão desaparecer até 2005. O reflexo disso foi o esgotamento do brilho fugaz do índice Nasdaq, das empresas de alta tecnologia, e que já foi saudado como o novo oráculo do capitalismo, deixando para trás o anacrônico Dow Jones e sua velha economia.

Os bancos americanos amontoam perdas. O Bank of America teve uma queda de receita de 15% no terceiro trimestre. No Bank One, de Chicago, os prejuízos foram maiores, de 37% da receita. Motivo: a inadimplência. No Bank of America, o volume de empréstimos vencidos chega a quase 50%! As perdas resultantes de empréstimos feitos por consórcios de bancos norte-americanos cresceram mais de três vezes em 2000, chegando a 4,7 bilhões de dólares.

Os desajustes da economia americana se avolumam, enraizados nas distorções do financiamento de seu crescimento. Para o economista Robert J. Gordon, que foi professor em Harvard e Chicago, o crescimento americano desde 1995 se deve à queda no desemprego, de 5,6 % para 3,9, mas também ao aumento no déficit em conta corrente do país, que atinge cerca de 4% de um PIB de 10 trilhões de dólares.

Outros fatores são apontados por Samuel Brittan, do Financial Times, com base em dados do governo dos EUA: o grande déficit no setor público é compensado pelo superávit orçamentário do governo e pela entrada de capital externo. A expansão econômica dos EUA foi acompanhada também por um déficit crescente na balança de pagamentos, superando 4% do PIB, e que é financiado por investimentos externos na forma de carteira de investimento. Se esta fonte de financiamento secar, diz ele, o governo americano precisará desvalorizar o dólar a um nível capaz de atrair fundos especulativos de curto prazo – uma experiência que os brasileiros já conhecem.

O mau desempenho das bolsas de valores é o termômetro dessa realidade, e se espalha pelo mundo criando uma situação de turbulência que ameaça povos e países. As bolsas da Indonésia, Coréia do Sul e Tailândia perderam, neste ano, metade do seu valor em dólares, voltando aos níveis de 1998; no Japão, a perda foi de 25%; no Brasil, Argentina, Chile e Peru, foi de 15%. Após a crise de 1998, a recuperação das bolsas havia afastado a ameaça de desastre. "Agora, porém, os ganhos dessa recuperação foram anulados", diz o New York Times. Em Wall Street, a queda de 3.64% no índice Dow Jones, 12 de outubro de 2000, foi a quinta maior de sua história. O índice Nasdaq, o destaque da mídia há poucos meses, perdeu desde março quase 60%. Somente este ano, as bolsas de valores tiveram perdas estratosféricas, de 5 trilhões de dólares. Isto é, metade do valor de tudo o que se produz nos EUA durante um ano, ou quase dez vezes o PIB do Brasil. É uma situação que a revista Business Week descreve perguntando: "Você está ouvindo o estrondo? É o som das bolsas de valores indo água abaixo". O capitalismo se move por crises – isto foi descoberto pelos trabalhadores, e pela ciência social, há quase dois séculos. As crises destroem ativos inúteis para a reprodução do capital, não só físicos, como máquinas e equipamentos, ou a força física dos trabalhadores, mas também financeiros, como as ações negociadas em bolsas. A "exuberância irracional" da economia americana é um exemplo. Lá, desde 1994, o índice Dow Jones triplicou, enquanto o PIB cresceu apenas 30%, configurando o afastamento entre a expressão financeira da riqueza (os negócios no mercado financeiro), e a base material onde os bens e serviços são realmente produzidos.

O ansiado "pouso suave" exprime a necessidade, para o capitalismo, de desarmar esta verdadeira bomba sem colocar em risco a manutenção do sistema. Em 1929, o ajuste foi catastrófico; em 2000, os corifeus do capitalismo que já duvidam da capacidade de evitar um desastre semelhante. O consultor Jason R. Trennet, da ISI Group, diz: "Teremos sorte se conseguirmos uma aterrisagem suave". Para Thomaz MacManus, da Bank of America Securities LLC, a economia americana saiu de um estado de complacência e agora apresenta "os primeiros indícios de pânico".

Esse quadro de dificuldades, que está em movimento, parece repetir outras conjunturas catastróficas em que o capitalismo, à custa do aprofundamento da crise social e política, rearticulou-se e relançou-se num novo patamar de acumulação. Os rumos que resultarão da crise atual dependem da capacidade dos trabalhadores e de suas vanguardas intervirem nela de forma consciente e organizada, contrapondo seu programa às imposições do capital.

Não é este o caminho do governo de Fernando Henrique Cardoso que, pela voz do ministro Pedro Malan, impotente e incapaz de intervir no desenvolvimento da crise, pôs-se na posição subalterna que lhe restava, e – num encontro em Nova York – pode apenas pedir aos investidores externos que "tenham confiança no Brasil".

Refém do capital estrangeiro, o governo brasileiro usa nos EUA o pífio recurso do apelo à confiança, e quer ser ouvido. Mas, em Brasília, nega-se a ouvir prefeitos eleitos que exigem a renegociação das dívidas acertadas por administrações neoliberais (como a de Celso Pitta, em São. Paulo, ou Luiz Paulo Conde, no Rio) derrota das nas umas. Entre o voto e o protesto, o governo de FHC, em sua arrogância, prefere acreditar que tudo continua como antes.

Comissão Editorial

EDIÇÃO 59, NOV/DEZ/JAN, 2000-2001, PÁGINAS 3, 4, 5