"Tudo aquilo que o malandro pronuncia,
Com voz macia,
É brasileiro, já passou de português"
Noel Rosa

No contexto das diversas atividades comemorativas dos 500 anos do Brasil – oficiais ou não -, ganhou destaque maior a "Mostra do Redescobrimento Brasil +500". Ao reunir no Parque do Ibirapuera – de abril a setembro deste ano – cerca de 2 milhões de pessoas, o evento foi muito provavelmente aquele que melhor contribuiu para a massificação do debate sobre nosso meio milênio de existência.

Pelos vários milhares de pessoas que congregou, a mostra é a maior já ocorrida no Brasil. Mas não apenas pelo público, senão também pelo número de obras reunidas: 15.000 – distribuídas em 4 pavilhões e listadas em 14 catálogos. Promovida pela "Associação Brasil 500 Anos Artes Visuais" – presidida pelo empresário Edemar Cid Ferreira – a Mostra do Redescobrimento consumiu cerca de R$ 40 milhões, na maior parte financiados pelo empresariado paulista.

A Influência de Mário Pedrosa

A curadoria da Mostra do Redescobrimento – coordenada por Nelson Aguilar – buscou inspiração na obra do crítico Mário Pedrosa. Nascido em Pernambuco em 1900, Pedrosa construiu uma trajetória intelectual ambígua e polêmica. Foi membro do Partido Comunista do Brasil e participou da luta antifascista na Alemanha. Mais tarde, notorizou-se como um dos introdutores do trotskismo no Brasil.

No final da vida, colaborou com a fundação do Partido dos Trabalhadores. Escreveu na juventude diversos ensaios que acentuavam o papel político transformador da Arte. Mais tarde, abandonou esse eixo de elaboração e passou a postular a idéia da autononúa da obra artística. Nesse período defendeu na USP uma tese que enfocava a Arte do ponto de vista dos princípios da Gestalt – psicologia idealista fundada na Alemanha. Tal trabalho recebeu na época contundente crítica da pena de Ferreira Gullar.

Em 1978, quando um incêndio no Museu de Arte Moderna do Rio destruiu um dos maiores acervos artísticos do país, Pedrosa sugeriu que o MAM fosse reconstruído com outra proposta. Surgia aí a idéia do "Museu das Origens", que congregaria cinco módulos distintos e interligados: o Museu do Índio, o Museu do Negro, o Museu do Inconsciente, o Museu de Arte Moderna e o Museu de Artes Populares. O objetivo de Mário Pedrosa era o de oferecer ao público uma ampla visão da civilização brasileira por intermédio das artes plásticas.

Mais de 20 anos depois essa idéia seria finalmente concretizada na Mostra do Redescobrimento, que adotou como base a idéia de Pedrosa. A Mostra compreende amplos painéis sobre as artes indígenas, a arte afro-brasileira, a arte popular, as imagens do inconsciente (arte dos internos de hospícios) e a arte moderna. Além destes, porém, foram adensados outros módulos, em particular sobre a chegada do Homem nas Américas, a carta de Caminha, as civilizações pré-cabralinas, a arte barroca, a arte dos estrangeiros que retrataram o Brasil, e a arte do século XIX. A exposição, com isso, ultrapassava até mesmo os intuitos originais de Mário Pedrosa, compondo o maior e mais amplo panorama sobre a cultura brasileira.

Pedrosa completaria 100 anos no dia em que a exposição abriu suas portas ao público. A influência deste eminente intelectual deixa-se flagrar no caráter um tanto fragmentário da exposição e em um certo multiculturalismo que insiste em transparecer. A insuspeita Folha de S. Paulo, em publicação especial sobre a exposição, apresenta-a como o evento que "reconta a história das culturas brasileiras". A afinidade desta concepção com as idéias de Mário Pedrosa é grande.

De fato, Mário Pedrosa defendia uma cultura brasileira profundamente arraigada, que remeteria mesmo a antes de Cabral. Postulava o caráter não-barroco de nossa cultura, advogando que a imagem de país barroco não passaria de construção ideológica a serviço das elites.

A visão de Mário Pedrosa – abraçada pela curadoria da "Mostra do Redescobrimento" – circunscreve importantes problemas de Sociologia da Cultura. O mais abrangente desses problemas relaciona-se à definição de "cultura brasileira". Qual é a cultura brasileira? Não seria porventura mais correto falarmos em "culturas brasileiras"? Há sentido em definirmos uma "cultura nacional", ou não passaria esse termo de mera invencionice ideológica a serviço das classes dominantes?

Para compreender a essência dessas questões, é natural que partamos de conceitos simples, que servem como instrumentos analíticos balizadores de nosso entendimento sobre a cultura brasileira. Os principais desses conceitos são os de "popular" e "nacional". O entendimento sobre a cultura brasileira varia, de forma geral, em função do entendimento que tenhamos desses conceitos.

A visão de Mário Pedrosa busca a essência da cultura brasileira na cultura popular, entendida como algo em relação de oposição com a cultura nacional. Subjaz na elaboração de Pedrosa a idéia da cultura nacional como falsificação ideológica da cultura popular. Ambos os conceitos são vistos, nessa perspectiva, em uma relação de oposição.

Essa pressuposição de Pedrosa conduz facilmente à concepção multiculturalista, caracterizada por conceber apenas a diversidade da cultura – marca do popular -, e não sua unidade – forjada ao longo dos séculos na idéia de nação. É por assim conceber a diversidade em detrimento dá unidade que a corrente multiculturalista interpreta a cultura brasileira como mera "mistura" indiferenciada. É o que tentaremos argumentar no decorrer deste trabalho, utilizando para isso elementos da própria "Mostra do Redescobrimento".

Antes de Cabral

A Mostra do Redescobrimento denuncia, desde o início, a influência das idéias de Mário Pedrosa e de toda a corrente de pensamento cultural que se formou em torno da USP.

O primeiro módulo da exposição traz ao público as diversas teorias sobre a chegada do Homem nas Américas, como a insinuar que a cultura brasileira pode ter suas origens identificadas antes mesmo da chegada de Cabral (o que é efetivamente sugerido no bordão "Brasil +500"). Isso não deixa de ser verdadeiro, principalmente se tomarmos como base exclusivamente a noção de "popular". Mas, por outro lado, se observada do ponto de vista da idéia de "nação", essa interpretação transporta um grave equívoco, pois desconsidera que há um ponto nodal na nascença da civilização brasileira há 500 anos, momento de conseqüências bem mais profundas que as que por vezes imaginamos.

Os limites da visão exposta acima revelam-se, portanto, em uma concepção pouco sofisticada da problemática nacional, incapaz de formular uma visão histórica que não seja mero gradualismo.
Mas, a par de seus limites, a idéia de uma cultura brasileira que remeteria ao período pré-Cabral contribui também sob certo aspecto para ampliar a consciência histórica do povo brasileiro. Divulgada para o grande público, reforça o sentimento de ancestralidade e de indissolúvel ligação entre os brasileiros e os povos americanos.

Além disso, a tese pré-cabralina revela que havia no continente sul-americano, antes da chegada dos europeus, uma intensa dinâmica, ao contrário do que comumente se afirma. O "paraíso" descrito pelos portugueses em 1500 encontrava-se na verdade em plena guerra, pois os índios do tronco tupi-guarani expulsavam das terras brasileiras povos bem mais antigos.

Algumas dessas populações são retratadas no módulo sobre a arqueologia, que revela o equívoco daqueles que vêem os habitantes do Brasil pré-Cabral como "selvagens primitivos". A arqueologia nos fornece hoje provas da existência de complexas civilizações com até mesmo certo nível de especialização, atestado pela sofisticação das peças produzidas, que sugerem a existência de uma classe de "artistas". E, é lógico, se havia pelo menos uma função social especializada, é porque outras também existiam.

Em Santarém e na Ilha de Marajó (PA) floresceram civilizações cujo nível de sofisticação é atestado pela existência de vasos com "cariátides", figuras humanas decorativas muito usadas na antigüidade grega. As enormes urnas com formas humanas da cerâmica marajoara provam que nessas civilizações eram praticados rituais funerários.

Nas gigantescas civilizações às margens do Rio Amazonas – descritas com entusiasmo por viajantes do século XVI -, desenvolveram-se os muiraquitãs – pequenas esculturas de sapos, peixes e rãs que, embora pareçam amuletos, podem ter sido usadas como moeda ou como símbolo de riqueza, o que atesta a presença de sistemas monetários elementares. Na Serra da Capivara (PI), pinturas rupestres já usavam a refinada noção de perspectiva. E, entre os sambaquis (SC), são também encontráveis diversos traços de uma sociedade com alto nível de complexidade.

A idéia de uma intensa dinâmica no continente sul-americano é reforçada, ainda, pela descoberta de "Luzia" – esqueleto de 11.500 anos de idade encontrado em 1975 em Minas Gerais. Exposta no módulo sobre a chegada do Homem nas Américas, "Luzia" desafia a teoria tradicional de ocupação do continente: a de que o Homem aqui chegou através de populações mongolóides orientais que teriam atravessado o Estreito de Bering há 12.000 anos. Luzia afronta essa teoria não só por sua datação, mas também por seus traços nitidamente negróides, típicos das populações aborígenes da Polinésia. A Ciência ainda hoje tenta explicar como teriam chegado ao Brasil os ancestrais de Luzia.

O panorama das civilizações pré-cabralinas completa-se com o módulo sobre a arte das diversas populações indígenas que habitavam o Brasil quando da chegada dos portugueses. O destaque deste módulo é o esplendor do manto Tupinambá do século XVI, tecido em penas vermelhas de guará. A peça é parte do acervo do Museu Nacional da Dinamarca. Por seu requinte, o manto chegou a ser atribuído ao imperador inca Montezuma, até que o reconhecimento de figuras animais da nossa fauna desfez o equívoco.

No módulo indígena podem ainda ser encontrados verdadeiros "tesouros" culturais, como o machado tupinambá recolhido no século XVI ou as diversas máscaras que revelam detalhes da imaginária indígena. A sutileza das plumárias e a forma como são exageradamente adornados instrumentos puramente funcionais – como lanças, redes e remos – revelam o caráter essencialmente simbólico e ritualístico do modo de vida indígena. Uma herança que o povo brasileiro ainda não conhece em profundidade, e que por isso ainda não se encontra incorporada, em toda a sua plenitude, ao já rico patrimônio cultural brasileiro.

Depois de Cabral

A arte do Brasil pós-Cabral é apresentada na Mostra em diversos módulos que retratam tanto a arte erudita quanto a arte popular.
O módulo sobre a Carta de Caminha apresenta a versão original do documento, espécie de "certidão de nascimento" da civilização brasileira. A carta permaneceu esquecida até o século XVIII, quando foi encontrada por um funcionário dos arquivos da Torre do Tombo, arquivo da expansão ultramarina localizado em Lisboa.

O texto de Caminha descreve as primeiras impressões sobre a terra, ressaltando sua fecundidade e suas potencialidades. Opina sobre os "estranhos" hábitos dos índios e narra sua surpresa com aqueles homens fétidos e maltrapilhos saídos das profundezas do mar. Alguns trechos primorosos podem ser encontrados, como aquele em que Caminha afirma ter especial apreço por um tal Diogo Dias, "homem gracioso e de prazer; levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles (os índios) a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam". Esse trecho apresenta uma comovente síntese do que viria a ser o caráter festivo, fraterno e tolerante do povo brasileiro.

O caráter lúdico das gentes brasileiras é também muito fidedignamente retratado no módulo sobre a arte barroca dos séculos XVII e XVIII. Primeira estilística oficial praticada no Brasil, o Barroco ganhou em nosso país expressão própria, mesclando-se com a tradição popular e constituindo, a partir daí, a primeira manifestação genuína da identidade nacional.

A mostra concentra-se no Barroco tardio e no rococó do século XVIII. Desmistifica a idéia de que apenas Minas Gerais desenvolveu uma escola setecentista original, apontando também as escolas baiana e pernambucana como centros de grande impacto na produção da imaginária barroca da época. O módulo apresenta ainda uma novidade: elementos da recém-identificada escola maranhense.

Todas essas escolas caracterizam-se pelo fato de que, por terem sido grandes centros de produção de artefatos religiosos, acabaram por desenvolver estilos próprios, muito bem representados por grandes artistas como Aleijadinho, Manuel Inácio da Costa e Mestre Valentim. Nas obras desses artistas o imaginário barroco ganhou contornos mestiços e até um aspecto de sensualidade, o que se revela na fisionomia das imagens religiosas – que copiam os diversos biótipos brasileiros – ou na aparência travessa dos anjos, geralmente retratados "brechando" impunemente as santas.
Veículo de propagação da fé católica, o barroco testemunha a originalidade da fé popular, fornecendo um retrato da devoção sincrética do povo, que chegou a estabelecer relações de equivalência entre santos da religião oficial (católica) e entidades das diversas religiões populares (indígenas e afro-brasileiras). Isso pôde ocorrer pelo próprio caráter permeável da cultura portuguesa, já ela oriunda da unidade de povos tão diversos quanto mouros e galegos, castelhanos e provençais. A essas influências se somaram, no Brasil, as contribuições de negros e índios.

O Barroco brasileiro é prova viva não só de que não há nenhuma indissolúvel oposição entre o popular e o nacional, como também de que o nacional só pode construir-se a partir da destilação de elementos genuínos da cultura popular.

É exatamente por is o que o Barroco popular e mestiço revela traços do temperamento coletivo, nacional, dos brasileiros. Um temperamento que é, em primeiro lugar, essencialmente lúdico e – para falar como Darcy Ribeiro – prenhe de humanidade.

O caráter lúdico da cultura brasileira – tão bem retratado na arte barroca – traduz-se em uma imensa afeição por jogos, brincadeiras e enigmas, os quais parecem permear mesmo os momentos mais sóbrios de nossa existência. Tudo é para nós motivo de riso e irreverência, elementos que conforme já Aristóteles declarara em sua obra sobre a comédia – sempre caracterizaram as mais ricas culturas populares. Somos parte de um povo caracterizado por uma grande alegria de viver. É como se o mundo não passasse, para nós, de um grande circo cósmico, onde todos representam os papéis de um roteiro celestial.

No carnaval temos disso o exemplo mais bem acabado. Ali as pessoas abandonam o anonimato de suas próprias existências para viverem como personagens aquilo que jamais viverão como seres comuns. No carnaval é concedida licença a todos os brasileiros para que, libertando-se das férreas amarras da "ordem" positivada, possam por alguns dias retomar à confusão original.
No futebol temos outro exemplo do caráter lúdico do povo brasileiro. Esporte entre nós praticado com passes e dribles barrocamente arredondados, ele deixa entrever que, ao contrário dos povos europeus, nossa forma de jogar não se pauta cruamente pela busca do gol. Mais que isso, buscamos a jogada desconcertante, o drible surpreendente, o gol magnífico. Não sabemos conviver com a vitória medíocre, sem méritos. Queremos sempre o jeito mais criativo de chegar ao objetivo, pois só assim saciamos nossas consciências sedentas da criação original e da beleza efusiva que em tantas coisas comparecem em nossa terra – das paisagens tropicais ao exotismo da beleza feminina.

Outro traço marcante da caracterização de nosso povo está em sua índole marcadamente religiosa, o que implica em um temperamento maniqueísta e muitas vezes extremado. Esse temperamento tende a oscilar entre a mais completa fantasia místico-religiosa e lancinantes arroubos de lucidez, na maioria das vezes coexistentes dentro de uma mesma situação, configurando o fenômeno universalmente conhecido como "realismo fantástico", muito bem definido por Massaud Moisés (1990: p. 209) ao comentar a literatura barroca de Padre Antônio Vieira:

"Na pena de Vieira, a realidade dos fatos mostra um dualismo que se diria fruto do embate entre a razão e a emoção caso não soubéssemos do seu acendrado pendor para as disquisições puramente lógicas ou abstratas. De qualquer forma, percebe-se ali, mais que noutra parte, quem sabe devido às marcas indeléveis do contexto brasileiro em seu patrimônio moral e sensorial, – a coexistência da fantasia e do realismo, mas de molde a intercambiar os efeitos: nota-se 'o caráter realista destas mesmas fugas da fantasia, tanto como o caráter fantástico destas explicações da realidade', um realismo fantástico".

Os módulos sobre a arte erudita dos séculos XIX e XX dão seqüência à viagem pela alma nacional. A arte brasileira dos dois últimos séculos revela a luta persistente pela afirmação da identidade nacional, bem como as tensões daí provenientes, em particular aquela entre o resgate da tradição e a tentativa de modernização das artes no Brasil.

O módulo sobre a arte do século XIX contribui para desfazer em certa medida o preconceito que se criou com os artistas desse período, considerados "oficialistas" e reprodutores dos padrões da Academia Francesa. Com efeito, os artistas da época, como Almeida Júnior ou Victor Meirelles, vinculavam-se à Academia Imperial de Belas Artes, voltada para a construção de um ideal épico de nacionalidade, através da retratação de batalhas e demais ritos heróicos. É bastante representativo do período o famoso "Tiradentes Esquartejado", de Pedro Américo de Figueiredo e Mello.

Porém, apesar de reproduzirem os padrões franceses, já é possível vislumbrar nos artistas desse período um aprofundamento da problemática nacional. Não havia como ser de outra forma, pois o projeto imperial buscava precisamente uma iconografia que acentuasse a harmonia das três raças na constituição da identidade da nação.

De onde depreendemos que a idéia da arte do período como mera cópia dos padrões europeus foi difundida principalmente pelos modernistas, por motivos óbvios: precisavam superar a arte do século XIX, levando-a a um novo patamar. Mas apesar desse preconceito moderno, a verdade é que a arte do século passado já traz, em germe, um pouco da contradição que se acentuaria no século XX, entre buscar na tradição popular a fonte da identidade nacional ou, por outro lado, acertar o relógio das artes com as novidades do modernismo europeu.

A arte do século XX leva ao limite essa contradição, a ponto de termos no movimento modernista uma profunda cisão. De um lado, Portinari, Di Cavalcanti e Villa-Lobos seguem uma tendência mais realista e nacionalista, enquanto que Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, entre outros, compunham a vertente propriamente formalista e universalista do movimento iniciado em 1922.

Certas tendências contemporâneas dão continuidade a essa última vertente, como o concretismo paulista de Geraldo de Barros, Amílcar de Castro e Willys de Castro, o neoconcretismo dos irmãos Campos e de Décio Pignatari e o grupo de Hélio Oiticica e Lígia Clark. Essas vertentes – e em particular a de Oiticica – foram profundamente influenciadas pelo pensamento de Mário Pedrosa, que afirmava ser o Brasil um país “condenado ao moderno”.

O popular na cultura brasileira

Além dos módulos sobre a arte erudita dos últimos séculos, a Mostra do Redescobrimento traz também a público módulos sobre a arte negra e popular, que carregam provavelmente as mais importantes lições de toda a Mostra.

A separação entre a arte negra e a arte popular obedece a proposta original de Mário Pedrosa, mas introduz na exposição uma certa ambigüidade – pois a quase totalidade das peças do módulo "arte afro-brasileira" fazem parte do que chamamos de "arte popular", e, da mesma forma, grande parte das obras do módulo "arte popular" são elementos da cultura negra. A proposta da curadoria, com isso, contribui com a fragmentação da exposição, sugerindo com sutileza a idéia, de base multiculturalista, de que não há uma "cultura brasileira", mas "culturas brasileiras".

De fato, a cultura popular brasileira não se caracteriza por ser "étnica" (ou "multiétnica"), isto é, por ser desta ou daquela raça. O popular é um conceito relativo ao conteúdo da obra de arte, e designa aquilo que retrata os sentimentos e aspirações genuínos do povo. É por isso que até mesmo um artista de origem abastada pode fazer arte popular, não faltando disso os mais variados exemplos.
Câmara Cascudo, citando Marcel Mauss, define a arte popular como "tudo aquilo que não é arte oficial" (1984: p. 25). De fato, o oposto da arte popular é a arte erudita (também chamada de "oficial"). Essa oposição é inaugurada com a divisão do trabalho, processo que, ao criar uma classe especializada de "artistas", traz com ela o produto correlato, a arte "de ofício" (profissão) – ou simplesmente "oficial".

A relação entre a arte popular e a arte erudita é de superação. A cultura erudita supera a cultura popular fazendo-a universal. Essa superação pode traduzir-se tanto na aquisição de uma estrutura formal mais sofisticada quanto no revelar de um conteúdo humano extremamente denso. Conforme define magistralmente Ariano Suassuna, "toda obra universal tem uma quantidade de sonho humano que não envelhece". É exatamente nesse sentido que Shakespeare, Cervantes, Picasso ou Beethoven são clássicos universais.

Por conseguinte, enquanto que a cultura popular é nacional, a cultura erudita concentra aquilo que já se constitui em ganho para a cultura universal. Mas o popular é sempre a matéria-prima do erudito, isto é, não há peça de cultura erudita que não seja advinda da sublimação de alguma tradição nacional ou popular. Mesmo as sinfonias de Mozart combinam elementos da melhor cultura popular mediterrânea. Por conseguinte, a cultura constitui-se na única e verdadeira fonte de cri atividade que alimenta a cultura erudita.

A arte erudita é transmitida através do ensino oficial e sistemático, comportando-se o aprendiz passivamente. Já no saber tradicional, popular, "o estudante reage e colabora porque essa ciência clandestina e semiproibida é uma excitação ao seu raciocínio, apelando diretamente para um sentido ativo e pronto de utilização imediata e realística" (Cascudo, 1984: p. 32).

Segundo Câmara Cascudo, a par da cultura erudita, a cultura popular desenvolve-se "vadia, airada, cheia de estórias estapafúrdias, graves, trágicas e cômicas, apresentando valores sob outros ângulos … " (Cascudo, 1984: p. 32).

Essa arte "vadia" comparece muito bem representada na Mostra do Redescobrirnento. Os ceramistas de Caruaru (PE), tendo à frente Mestre Vitalino, demonstram grande sagacidade e sutileza na retratação de típicas cenas populares. Utilizam para isso o barro do próprio chão, como que a lembrar a advertência de Ariano Suassuna: "Depois de descobrir que era um Homem, percebi que era o Homem de uma terra".

O barro ganha nas mãos de Mestre Vitalino todo o furor descomprometido da presença popular. Lá encontramos cenas como a do bêbado caído ao chão com sua inseparável garrafa, um cão vira-lata lambendo-lhe a boca; o time de futebol do subúrbio, perfilando-se antes do jogo para o indispensável registro fotográfico, ou ainda tradicionais cenas de cidades do interior, como o namoro de dezenas de casais "escondidos" nos cantos da praça, ou a tradicional festa em comemoração a um "casório".

Peças decorativas de festas populares, como o Divino Espírito Santo, o Reisado, o Bumba-meu-boi e o Maracatu atestam a suntuosidade da arte folclórica. O folclore, ao contrário do que comumente pensamos, não se confunde com o conjunto da cultura popular, sendo apenas o núcleo desta última. Câmara Cascudo esclarece que "a literatura folclórica é totalmente popular, mas nem toda produção popular é folclórica. Afasta-a do folclore a contemporaneidade. Falta-lhe tempo" (1984: p. 24). De fato, as marcas características do folclore são o anonimato, a persistência ao longo dos séculos e a transmissão pela via oral tradicional. De onde depreendemos que o folclore é a base da cultura popular, base sedimentada pelo tempo – que a faz obra impessoal, de toda a coletividade.

As peças do folclore revelam elementos profundamente interiorizados na mentalidade coletiva do povo. O mesmo realismo fantástico ao qual nos referimos acima, ao tratar da arte barroca, comparece em diversos momentos, como nas esculturas totêmicas do Crato (CE), que descrevem seres mitológicos cujo "habitat" é o reino imaginoso da manifestação popular. O mesmo podemos dizer das carrancas das embarcações do Rio São Francisco, amuletos contra a "traquinagem" de entidades espirituais. Máscaras, trajes, marionetes, xilogravuras e toda uma diversidade impressionante de artefatos populares completam esse amplo painel.

A cultura popular revela de forma geral a sobrevivência de elementos ancestrais, muitas vezes de tal forma antigos que não lhes podemos localizar com exatidão as origens. As centenas de livros de cordel expostas na Mostra do Redescobrimento testemunham esse fato. Segundo Câmara Cascudo, esses desafios sertanejos provêm mesmo do "canto amebéu" grego, igualmente alternado entre dois "cantadores". Da mesma forma, Ariano Suassuna assevera que a conhecida "Cantiga do Valente Villela" é derivada de enredo tomado de empréstimo ao cancioneiro medieval.

Com efeito, a cultura popular constitui-se em verdadeiro portal aberto rumo a influências imemoriais. Segundo Câmara Cascudo, o povo português "espalhou, pelas águas indígenas e negras, não o óleo de uma única sabedoria, mas a canalização de outras águas, impetuosas e revoltas, onde havia a fidelidade aos elementos árabes, negros, castelhanos, galegos, provençais, apenas na primeira linha de projeção mental. Passada essa, adensavam-se os mistérios de cem reminiscências, de dez outras raças, caldeadas na conquista peninsular em oitocentos anos de luta, fixação e desdobramento demográfico. Todas essas influências … somem-se num escurão de séculos, através de povos e civilizações, num enovelado alucinante de convergências, coincidências, presenças, influências, persistências folclóricas" (1984: p. 30).

Em conseqüência do que vimos acima, trata-se de grande equívoco compreender o popular na acepção "estatística", como aquilo que concentra a audiência da maioria das pessoas, isto é, como aquilo "de que o povo gosta". O conceito estatístico, fundado na noção de "audiência", não diz respeito à noção de "povo", mas sim à de "público" – este último um conceito da sociologia pragmática norte-americana, voltado para a apropriação mercadológica da produção cultural.

Na distinção entre os conceitos de "povo" e de "público" reside a diferença essencial entre a cultura popular e a cultura de massas, conceitos sobre os quais há muita confusão. O conceito de povo na acepção da cultura popular não é estatísticoquantitativo, mas sociológico-qualitativo. Conforme explica Nestor García Canclini, a cultura popular representa "uma resposta solidária a uma necessidade coletiva … É isso que (a) diferencia … da cultura de massas, na qual não há interação recíproca entre produtores e consumidores … na qual as necessidades reais da maioria são encobertas ou substituídas em função dos objetivos mercantis da burguesia, e na qual se neutraliza toda a ação crítica do consumidor" (1980: p. 77).

De fato, a essência da cultura de massas é o "entretenimento", que consiste em um convite ao relaxamento do sentido crítico em favor de uma apreensão passiva e de um divertimento descomprometido. A própria Mostra do Redescobrimento lança mão, em diversos momentos, de expedientes de massificação. Ela apresenta peças de cultura popular e erudita envoltas em uma cenografia que as toma mais "aprazíveis" e "interessantes". O próprio Edemar Cid Ferreira, presidente da Mostra do Redescobrimento, afirma ser a finalidade do evento a combinação entre a educação e o "entretenimento".

O nacional na cultura brasileira

Compreender o significado da cultura popular – diferenciando-a da cultura erudita e da cultura de massas – é requisito fundamental para um melhor entendimento da cultura brasileira. Mas apenas isso não é suficiente. Ainda mais fundamental é a compreensão da relação que se estabelece entre os conceitos de popular e nacional, pois a cultura brasileira não é direta e simplesmente identificável à cultura popular; essa concepção errônea pode torná-Ia algo disperso e fragmentário, verdadeira colcha de retalhos étnicos ou regionais.

Tal concepção é a essência do multiculturalismo, caracterizado por uma superestimação do popular e por uma subestimação do nacional. A ausência do conceito de nacional como elemento ativo da análise causa mesmo distorções na compreensão da cultura popular, que recebe no multiculturalismo interpretação empírica e "étnica".

Tais pressupostos levam à conclusão equivocada de que a defesa da cultura popular corresponderia à defesa da pureza de tal ou qual raça. Não à toa, Aldo Rebelo, citando o antropólogo baiano Antônio Risério, afirma que "o multiculturalismo é um apartheid de esquerda" (2000: p. 32).

A ideologia multiculturalista encontra muito de sua base objetiva no projeto das elites paulistas. A tentativa de afirmação de um projeto próprio da aristocracia cafeeira levou, em 1932, à disseminação de uma ideologia de negação da unidade nacional em favor de um projeto regionalista extremado.

Esse projeto foi derrotado praticamente pelo Estado Novo e teoricamente pela obra de Gilberto Freyre. Conforme afirma o jornal do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, a vitória do conceito nacionalista de cultura em Gilberto Freyre "representou a derrota das interpretações de integralistas … do catolicismo reacionário e também dos marxistas de diversos matizes" (2000: p. 4). Essa afirmação não é de todo correta, pois Freyre não derrotou "o marxismo", mas uma certa vertente uspiana de orientação supostamente marxista.

O multiculturalismo é a nosso ver o caminho menos indicado para o entendimento da essência da cultura brasileira. Esse entendimento requer, ao contrário, a pressuposição de uma relação de identidade entre o nacional e o popular. O nacional não poder ser senão o popular, pois a cultura erudita é universal; da mesma forma, o popular não pode senão depurar-se em nacional.
O popular corresponde ao elemento qualitativo da cultura: as relações humanas vivas e em efervescência. Já o nacional é a sublimação dessas relações em uma essência básica invariável – sistematicamente arquitetada como amálgama ideológico de um povo, aquilo que o unifica enquanto nação.

O nacional não pode ser entendido, portanto, como mera "fantasia" ideológica. Ao contrário disso, ele é decorrência necessária da repetição infinita de elementos recorrentes da cultura, constituindo-se portanto em uma espécie de essência redutora da multiplicidade de aspectos fenomênicos da cultura em uma estrutura básica invariável, a qual alimentará a própria cultura popular.

Da mesma forma que não é mera invenção, o nacional não é algo dispensável, de que possamos abrir mão sem quaisquer conseqüências deletérias para o desenvolvimento do povo. O nacional é um elemento catalisador do desenvolvimento humano, na medida em que generaliza os melhores componentes humanos das culturas regionais, introduzindo um elemento de racionalização que contribui para o adensamento da própria cultura popular.

A construção da nação – e da idéia de nacional- é quase sempre tarefa do Estado e, portanto, das forças que o dominam. Daí porque esse conceito é geralmente confundido com uma invencionice das elites, que dela se valeriam para reforçar sua dominação. Isso é, por seu lado, verdade, pois cada classe dominante constrói a idéia de nacional a partir de seus próprios interesses e perspectivas, bem como de sua visão de mundo.

Mas esse problema requer uma compreensão mais ampla e multilateral. Hoje, as elites brasileiras – tendo à frente o núcleo oligárquico paulista – abdicam da própria tarefa de construir a idéia de nação, legando-a ao proletariado e aos setores mais conseqüentes da sociedade brasileira.
Contudo, muito antes que esses setores sejam chamados ao cumprimento dessas tarefas, o abandono da idéia de nação resultará, no médio prazo, em conseqüências desastrosas e de difícil reversão para nosso país, principalmente no que isso traz de implicações junto à formação da mentalidade popular.

Entende-se desde logo porque a ideologia multiculturalista é tão divulgada em todo o mundo por seu principal beneficiário: o imperialismo norte-americano. A partir dele, reforça-se a idéia de um mundo "de todos os povos", de muitas raças e cores interligadas, livres das "barreiras" que "entravam" a "integração livre e plena" rumo a um mundo cada vez mais "globalizado". O curioso é que essas palavras são ditas em um mundo cada vez mais dividido, violento e desigual. O multiculturalismo – fundamentado filosoficamente em um relativismo fragmentário – é de fato o pilar cultural da ideologia da globalização. ~

Fábio Palácio de Azevedo é mestrando em Comunicação e Semiótica (PUC-SP) e membro da direção nacional da União da Juventude Socialista (UJS).

Bibliografia

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EDIÇÃO 59, NOV/DEZ/JAN, 2000-2001, PÁGINAS 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74