O Visconde de Mauá e o início da industrialização brasileira (Final)
Na primeira parte (ver Princípios 58) abordamos as circunstâncias e as influências inglesa e liberal no surgimento e na formação de Irineu Evangelista de Sousa. Analisamos a reforma tarifária Alves Branco, a nova Lei de Terras e a extinção do tráfico negreiro e o início de espaços para a industrialização do país, apesar do ambiente escravista. Examinamos as primeiras iniciativas de Mauá nos âmbitos comercial, industrial e financeiro. Ele se apoiava e dependia do governo imperial para levar adiante seus empreendimentos, ao mesmo tempo que jogava o papel de instrumento da geopolítica brasileira, no Prata e na região amazônica. Mas, também vimos que – tolerado pela oligarquia escravista enquanto alternativa para a aplicação dos seus capitais ociosos – tão logo começou a jogar um papel econômico de certo vulto, Mauá passou a ser hostilizado por essas mesmas elites agrárias, Inimigas de qualquer mudança.
Estando o espaço creditício tradicional ocupado pelo novo Banco do Brasil oficial, posto a serviço do capital parasitário, Mauá planejou uma instituição financeira internacional, com sede no Brasil e uma agência na Inglaterra, para captar capitais europeus com o intuito de investir em empresas brasileiras e financiar o comércio exterior do país (aproveitando-se da diferença entre os juros internos e externos), além de atividades de câmbio. Adiantando-se à sua época e ao seu meio, Mauá sonha – em meados do século XIX, em plena sociedade escravista – com um banco associado a ferrovias e indústrias, fomentando o progresso econômico ao país:
"Em poucos anos, uma filial do Banco Mauá se acharia estabelecida em cada uma das capitais das vinte províncias do Império, além de muitas outras em localidades de alguma importância do Brasil; e, secundando esse mecanismo de crédito com filiais em Londres e em Paris, ficariam criados no Banco Mauá & Cia. elementos com base para alimentarem operações de crédito e finanças, que interessariam em grande escala ao progresso econômico do nosso país (…) vasto mecanismo de crédito que (…) se constituiria o centro de todo o movimento monetário e financeiro da América Meridional em ligação íntima com os principais centros monetários da Europa.
Realizado este pensamento, as empresas brasileiras ( … ) não teriam por certo de arrastar-se abatidas aos pés da usura desapiedada de maus elementos financeiros da praça de Londres; 5% de garantia e não 7%, seria base suficiente para eu e meus agentes termos conseguido a coadjuvação do capital europeu para as nossas empresas de viação e quaisquer outras, se bem demonstrada utilidade para os capitais a empregar, encontrariam apoio fácil e eficaz". (1)
Para escapar à legislação das sociedades anônimas, sujeitas à aprovação e intervenção governamental, Mauá aproveitou-se de brechas na legislação e criou, em julho de 1854 – tendo como sócios alguns brasileiros e várias empresas inglesas e francesas – a Mauá, Mac Gregor & Cia., sociedade de responsabilidade limitada, formada por 182 investidores. O capital inicial seria de 30 mil contos de réis, o mesmo do Banco do Brasil. Logo, começou um cerrado bombardeio contra a nova iniciativa de Mauá, tendo o governo proibido a divisão do capital da Mauá, Mac Gregor & Cia em ações. Mauá teve, então, de montar o novo banco com objetivos mais limitados, reduzindo seu capital para 20 mil contos e direcionando-o para a transferência de fundos entre a Europa e o Brasil e para o mercado de câmbios. Logo acumulou grandes lucros e buscou novos investimentos produtivos. O ano de 1857 vai encontrar Mauá comandando 10 empresas. Entre elas, as mais sólidas eram o Banco Mauá, Mac Gregor & Cia, a fábrica da Ponta da Areia, a Companhia de Iluminação a Gás do Rio de Janeiro, a Companhia de Navegação do Amazonas, a Companhia de Luz Esteárica.
Mas, a política governamental que priorizava a agricultura e as altas taxas de juro – buscando fazer dos ex-traficantes de escravos felizes rentistas – bloqueia as perspectivas da industrialização do país. Mauá volta os olhos, então, para a região platina. Cria em 1857 o Banco Mauá & Cia, em Montevidéu. Em 1859 esse banco já conta com agências em Salto e Paissandu; logo em Cerro Largo e Mercedes. Em janeiro do mesmo ano, abre uma sucursal do Banco Mauá em Rosário, sede da então Confederação, primeiro banco argentino. Logo abre sucursais também em Buenos Aires e Gualeguaichi. Mauá investe em terras e compra em Mercedes uma enorme estância de 160 mil hectares. Importa rebanhos de carneiros para a produção de lã de qualidade, estimula a melhoria das raças vacum e cavalar, desenvolve uma pecuária empresarial, é um pioneiro da frigorificação.
As notícias do Brasil, porém, não são boas. Em junho de 1857, a fábrica da Ponta de Areia é destruída por um incêndio (tudo indica que por sabotagem inglesa). Os prejuízos, não cobertos por seguros, alcançam 500 contos de réis, além da perda de tecnologia e a descontinuidade da produção. Na Inglatena, seu sócio Reynell de Castro enterra 1.700 contos de réis na estrada de ferro Recife-São Francisco. A política protecionista, de 1844, começa a ser desmontada por pressão dos ingleses e dos setores agrários que não vêem com bons olhos a industrialização de um país "predestinado" para a produção agrícola:
"A comissão encarregada de estudar a revisão tarifária, que acabou de efetivar-se em 1857 ( … ) não hesitaria em firmar assim o seu ponto de vista: 'Uma tarifa que encareceu com o peso de fortes direitos os instrumentos agrários, e dificultou a sua aquisição, uma tarifa que encareceu os gêneros necessários à subsistência da classe dos trabalhadores, a conservação de imposto que dificultam a saída de seus produtos, e a sua concorrência com seus similares nos mercados exteriores, e colocam os nossos lavradores na triste colisão, ou de abandonarem a lavoura da terra, ou de suportarem rudes golpes por amor da indústria fabril." (Relatório da Comissão encarregada da revisão da tarifa em vigor que acompanhou o projeto da tarifa apresentada pela mesma Comissão ao Governo Imperial, Rio, 1853, p. 285) A tradição escravista e feudal detinha o processo inexorável. Em 1857, assim, a tarifa reabre as portas do mercado interno: "A diminuição dos direitos recaiu, em geral, sobre os gêneros alimentícios e instrumentos e utensílios destinados à lavoura. As matérias-primas foram sujeitas a uma taxa de 5%, revogando-se os privilégios concedidos às fábricas nacionais.' (Nícia Vilela Luz:
A Luta pela Industrialização do Brasil (1808-1930), S. Paulo, 1961, p. 24)" (2)
Em 1860, através da reforma Silva Ferraz, o governo isenta de direitos alfandegários os materiais importados destinados à lavoura e os navios construídos no estrangeiro, além de restringir a circulação monetária, trazendo enormes dificuldades à produção industrial no país. A fábrica da Ponta de Areia – que Mauá acabara de reconstruir com pesados investimentos – é inviabilizada:
"A legislação sobre artefatos de ferro foi se modificando. Navios a vapor e alguns de vela, dos que a Ponta da Areia conseguiria fornecer 72 nos primeiros onze anos de sua existência, tiveram ingresso do estrangeiro, livres de direito! Da mesma forma, entraram maquinismos a vapor e ainda outros, de sorte que a concorrência com os produtos similares do exterior tornou-se impossível e o estabelecimento decaiu. ( … ) falharam em sua totalidade as encomendas do governo, e o serviço particular era mínimo; foi, portanto, preciso fechar as portas das oficinas à míngua de trabalho." (3)
Mauá tenta vendê-Ia aos ingleses, mas o rompimento de relações do Brasil com a Inglaterra, em 1863, devido à "questão Christie", inviabiliza o negócio. Assim, dezessete anos após sua inauguração, a primeira grande indústria instalada no Brasil é liquidada, causando um prejuízo de cerca de mil contos de réis. Mauá também decide fechar a empresa Fluminense de Transportes e a empresa de diques flutuantes, que não se haviam mostrado lucrativas, além de cortar os investimentos na mineradora do Maranhão. E para fazer caixa diante de tantos reveses, precisou vender suas ações na ferrovia Santos-Jundiaí.
Como se tudo isso não bastasse, em maio de 1862 é criado em Londres o The London and Brazilian Bank, com capital inicial de um milhão de libras esterlinas (o equivalente a 10 mil contos de réis), que passa a disputar espaços diretamente com Mauá, em um mercado até então relativamente livre de competidores. Três meses depois, surge o The London and River Plate Bank, com um capital inicial de 600 mil libras esterlinas, para atuar nos principais mercados do Prata, concorrendo diretamente com Mauá. O cerco ia se fechando.
Apesar dos contratos do The London and Brazilian Bank terem chegado ao Brasil somente em julho de 1862, já em 2 de outubro o governo brasileiro autorizava o seu funcionamento através de decreto (a exigência de aprovação pelo Parlamento só valia para as empresas brasileiras). No entendimento das autoridades do país, se o banco fosse estrangeiro não se devia criar empecilhos para a sua instalação.
Seguramente, o início da década de 60 – de consolidação da oligarquia agro-exportadora do café e de expansão do imperialismo inglês (4) – não prenunciava nada de bom para Mauá. A frustrada tentativa de se salvar, sob a bandeira inglesa
Para enfrentar o perigo que surgia com a criação do The London Brazilian Bank, Mauá faz uma manobra surpreendente. Vende sua mais lucrativa empresa – a Companhia de Iluminação a Gás do Rio de Janeiro – ao maior acionista individual deste banco e propõe a fusão do Mauá, Mac Gregor & Cia com o The London Brazilian Bank, para a formação de um grande banco de caráter internacional, no qual entraria com três quintos do capital, sem exigir qualquer participação na sua direção. Por sua proposta, revolucionária para a época, o novo banco deveria abrir agências em Paris, Lisboa e Porto, para se juntar às dezessete agências que ambos já possuíam na América do Sul e Europa. Em carta a seu amigo uruguaio Andrés Lamas, em 8 de agosto de 1865, Mauá explica seus motivos para essa associação com os ingleses:
"Porque compreendi todo o alcance da guerra injusta e desleal que me faziam é que me resolvi a pôr meus interesses debaixo da bandeira inglesa, ficando assim a meu ver amparado; também queria ocultar o meu nome, o que não me foi possível ( … ) Estava tranqüilo quanto aos recursos na marcha regular do sucesso, e os resultados provavam que teria razão agora, antes que me possam ferir de novo, encontrarão pela frente a bandeira inglesa." (5)
Depois de longas negociações – em que os novos sócios exigiram a colocação do seu nome na nova entidade financeira – que passaria a se chamar The London Brazilian & Mauá Bank – foi acertado que Mauá indicaria apenas um dos sete diretores – ele próprio. Em dezembro de 1865 o novo banco é anunciado em Londres. Mauá providencia a transferência de seus contratos e concessões, conseguindo-a facilmente no Uruguai e na Argentina e em quase todos os negócios brasileiros. O London and Brazilian Bank, comunica ao governo brasileiro sua mudança de nome e a continuidade de suas operações nas mesmas condições, só que com uma nova razão social. A data do início das operações é marcada para 10 de janeiro de 1866.
Mas o governo brasileiro, ao tomar conhecimento da participação de Mauá no novo banco, impõe condições: o novo banco, apesar de constituído em Londres, precisa se organizar de acordo com a lei brasileira de sociedades anônimas. Ou seja, se os ingleses ficassem sem um sócio brasileiro, continuariam gozando dos benefícios da lei das sociedades anônimas inglesas; se aceitassem o sócio brasileiro, estariam submetidos à lei das sociedades anônimas brasileiras. Estava fechado o caminho para a fusão e a situação de Mauá se debilitou enormemente, pois Alexandre Mac Gregor retirou-se da parceria até então mantida com Mauá.
Dono, ainda, de uma fortuna pessoal considerável, Mauá reúne seus sócios na Mauá, Mac Gregor & Cia e Ihes propõe liquidar esta empresa, criando em seu lugar uma nova empresa, em que ele seria o único sócio responsável, e na qual colocaria como garantia todos os seus bens pessoais. Se ao final de três anos ele não conseguisse ressarcir os sócios minoritários de todos os seus investimentos, esses teriam o direito de lhe vender suas cotas pelo valor nominal, e elas seriam pagas com o seu dinheiro pessoal. Assim, em vez do grande banco internacional idealizado por Mauá, nasce em 10 de janeiro de 1867, uma simples empresa comercial com um único sócio responsável: Irineu Evangelista de Sousa. A Mauá & Cia nascia para diminuir, não para crescer. Mesmo assim, os ativos da nova empresa eram enormes:
"De sua mesa saíam ordens para os diretores de dezessete empresas instaladas em seis países ( … ) o barão geria bancos no Brasil, Uruguai, Argentina, Estados Unidos, Inglaterra e França; estaleiros no Brasil e no Uruguai; três estradas de ferro no interior do Brasil; a maior fábrica do país, uma fundição que ocupava setecentos operários; uma grande companhia de navegação; empresas de comércio exterior; mineradoras, usinas de gás; fazendas de criação de gado; fábricas variadas. ( … ) Quando o barão resolveu, em 1867, reunir a maior parte das empresas num único conglomerado, o valor total dos ativos chegou aos 115 mil contos de réis. Só havia um número no país comparável a este: o orçamento do Império, que consignava todos os gastos do governo dirigido por seu vizinho, Dom Pedro lI, com 97 mil contos de réis naquele mesmo ano." (6)
Mas, no final de 1869 finda o prazo que Mauá havia pedido para recompor o capital da Mauá & Cia e o resultado financeiro tinha sido o inverso do esperado. Em vez de melhorar, a empresa tinha piorado. Em fevereiro de 1870 é feita a reunião dos sócios e apresentado o difícil quadro. Diversos sócios pedem o seu dinheiro de volta. Para pagá-los, Mauá hipotecou parte de seus bens pessoais no Banco do Brasil.
Em 1871, a subida do ministério Rio Branco, seu amigo pessoal, desanuvia um pouco sua situação. A pressão brasileira sobre o Uruguai – através de seu embaixador em Montevidéu – o ajuda a colocar em ordem os seus negócios neste país. Aqui, consegue renegociar os juros de sua dívida com o Banco do Brasil, em condições mais favoráveis, e arranca uma autorização para vender em Londres a Companhia de Navegação do Amazonas, com o objetivo de liquidar suas dívidas pendentes e recompor sua fortuna pessoal. A exitosa venda, em março de 1872, da Companhia de Gás de Montevidéu, proporciona uma injeção de quase meio milhão de libras no caixa da Casa Mauá. As coisas pareciam começar a melhorar.
Mauá retoma, então, iniciativas que marcarão época. Cria, em 1873, a Companhia Agrícola, Pastoril e Industrial com 250 mil hectares, mais de 200 mil cabeças de gado, uma charqueada e uma fábrica de carnes em conserva. Em 1874 é o responsável pelo estabelecimento da ligação telegráfica, via cabo submarino, entre o Brasil e a Europa cuja concessão cede gratuitamente aos ingleses – inaugurada pelo Imperador D. Pedro II em 22 de junho desse ano. Em reconhecimento, o Imperador concede-lhe o título de Visconde de Mauá.
O triste fim de um burguês em uma sociedade escravista dependente
Em fins de 1874, Mauá é chamado às pressas a Montevidéu, onde nova revolução havia explodido, levando ao poder o caudilho colorado Varella. A política monetária do governo Varella leva, em 23 de fevereiro de 1875, a uma verdadeira corrida aos bancos para trocar os seus bilhetes por ouro. A situação deixa o Banco Mauá a descoberto em relação a um cheque de 200 mil libras do Banco Alemão. Em situação emergencial, Mauá solicita um empréstimo de 300 mil libras ao Banco do Brasil para cobrir esse cheque e ter uma reserva de segurança. Como garantia, oferece as ações da Companhia Agrícola, Pastoril e Industrial, que valiam o dobro disso. Mas a postura do Governo brasileiro frente a Mauá havia mudado: o Banco do Brasil nega-se a conceder-lhe o empréstimo salvador. Apesar de possuir um ativo bem superior ao seu passivo, e apesar de possuir bens suficientes para cobrir essas 300 mil libras, Mauá fica momentaneamente insolvente e é obrigado, em 17 de maio de 1875, a fechar as portas e entrar em processo irreversível de liquidação. Depois que os peritos do Banco do Brasil e do Tesouro Nacional atestam a solvência de Mauá & Cia, é declarada sua moratória por três anos, prazo para a liquidação de todos os seus débitos para com os credores.
Ficava claro que nem o imperialismo europeu em expansão – em especial o inglês – nem a oligarquia escravista brasileira estavam dispostos a tolerar os negócios de Mauá. Haviam-no aceito, até certo ponto, enquanto este os servia e não os ameaçava. Agora, porém, devia ser descartado. E foi.
Mauá ainda tentou resistir. Uma de suas esperanças era conseguir cobrar os valores que o governo uruguaio lhe devia. O alheamento do Império em relação ao problema e o caos político e econômico do país vizinho inviabilizaram essa solução. A outra esperança de Mauá era a cobrança da dívida de quase 500 mil libras esterlinas da São Paulo Railway para com ele, mas a empresa inglesa exigiu que o julgamento da causa ocorresse na Inglaterra. O Supremo Tribunal de Justiça – que em 1869 havia garantido a Mauá o direito de demandá-Ia no Brasil – voltou atrás e, 8 anos depois, abdicando da soberania nacional, adotou a tese de que só a justiça inglesa era legítima para decidir. Só que, a essa altura, o prazo para qualquer ação jurídica na Inglaterra já havia caducado e Mauá não conseguiu reaver um único tostão.
Apesar de todos os percalços, Mauá pagou, no prazo de três anos, 75% dos credores. Como ainda faltavam 25%, a sua falência foi decretada em 1878. Mas, ainda lhe restavam muitos bens pessoais, vários deles no exterior. Um a um, esses bens, até mesmo a casa e objetos pessoais, foram por ele vendidos para pagar os seus credores. Seis anos depois, consegue quitar o seu último débito. Em 30 de janeiro de 1884, o Juiz Miguel Calmon pronunciou a sentença de reabilitação comercial de Mauá, então com 70 anos de idade.
A fim de retomar a sua vida, toma emprestado de seu filho Henrique 200 contos de réis e outros tantos de diversos amigos. Com esse pequeno capital recomeça a vida como corretor, montando um escritório no Rio de Janeiro. Em 21 de outubro de 1889, aos 75 anos de idade, morre de "diabetes e pneumonia". A família de Mauá recebeu os pêsames do Imperador. O Banco do Brasil fechou as suas portas na Corte em sinal de luto e o mesmo fizeram inúmeras casas bancárias no Rio e em Petrópolis.
O indivíduo vencido pelas circunstâncias
A análise da trajetória desse grande empresário moderno, que foi o Visconde de Mauá, nos permite algumas conclusões sobre os primeiros passos da industrialização brasileira.
A primeira delas, é no sentido de que primeiro surto industrial no Brasil, em pleno regime escravista, só foi possível devido à intervenção econômica do Estado, através da política tarifária de Alves Branco, posta em prática a partir de 1844. As novas taxas alfandegárias acabaram com os privilégios que os ingleses detinham desde 1810 e constituíram-se em uma proteção para a criação de indústrias no país. Mas esse incentivo à industrialização teria pouco significado sem a abolição do tráfico negreiro em 1850, liberando enormes quantidades de capitais, até então aplicados nesse lucrativo negócio. Portanto, a conjunção dessas duas circunstâncias irá, apesar do meio escravista desfavorável ao desenvolvimento das forças produtivas, permitir a ação de Irineu Evangelista de Sousa e alguns outros pioneiros – em geral influenciados pelo exemplo da industrialização inglesa – no sentido do desenvolvimento de atividades industriais e bancárias no Brasil.
É importante notar que essa industrialização inicial não se dá contra ou em confronto com a sociedade escravista de então (7), apesar das contradições latentes que iriam se manifestar mais adiante. Ao contrário, se dá em estreita aliança com suas classes dominantes grandes proprietários escravistas e grandes comerciantes exportadores/importadores – e alavancada pela oligarquia governante. Pois, essas novas oportunidades de negócios que surgem são alternativas de aplicações rentáveis para os capitais ociosos nas mãos de tais oligarquias. E, inclusive, através da modernização dos meios de transporte e de mecanismos mais ágeis e menos onerosos de financiamento, uma forma de diminuir os custos da produção agrícola escravista, especialmente cafeeira, dando-lhe uma sobrevida.
Assim, observamos que essa burguesia, nascida das entranhas da sociedade escravista, está desde o seu início atrelada à classe dominante escravista e ao seu governo, dele dependendo em tudo: proteção alfandegária, concessão de empréstimos do Tesouro, garantia de fornecimento de produtos ou serviços ao governo, único grande comprador neste mercado quase inexistente. (8)
Outra característica dessa burguesia nascente é sua estreita vinculação e associação com os capitais estrangeiros, no caso o capital inglês, que dava os seus primeiros passos rumo à sua fase imperialista. Como nos diz Jacob Gorender:
“Notemos que Mauá foi banqueiro e quase todas suas iniciativas empresariais visaram suprir serviços públicos, como concessões do Estado em condições de monopólio e, em vários casos, com subvenções ou empréstimos do Estado. Foi assim que organizou empresas de transportes urbanos e de iluminação pública a gás, companhias de navegação fluvial a vapor, várias estradas de ferro e a comunicação por meio de cabo submarino. Entre suas numerosas empresas, quase a única de transformação industrial direta – o Estaleiro e Fundação Ponta de Areia, que chegou a reunir cerca de mil trabalhadores -, mesmo esta surgiu do projeto de fornecimento de tubos de ferro ao Governo, com vistas à canalização das águas do rio Maracanã. Por conseguinte, os empreendimentos de Mauá eram compatíveis com o regime escravista e contribuíram para tornar viável seu funcionamento, num período já de declínio. Ademais, uma vez que dependia do Estado, empenhou-se em intensa atividade política e teve bom relacionamento com vários gabinetes ministeriais do Império, que o nobilitou com os títulos de barão e visconde. Quando o Império se recusou a cobrir os débitos do Banco Mauá, faliu. E faliu também porque, na construção da Estrada de Ferro Santos a Jundiaí (que veio chamar-se São Paulo Railway), recebeu uma rasteira do capital inglês, ao qual diversas vezes recorreu, antecipando um comportamento comum à burguesia brasileira posterior." (9)
Nesse contexto devemos situar a intensa e contraditória atividade empresarial de Mauá – comerciante, industrial, banqueiro, financista, político -, sua vertiginosa ascensão e sua rocambolesca queda. Nem anjo, nem diabo: um capitalista em uma sociedade escravista, dominada pela Inglaterra onde, como hoje, as oligarquias governantes concediam maiores facilidades aos capitais estrangeiros do que aos capitais nacionais. Manipulando suas influências no governo, ao mesmo tempo que por este era usado em inúmeras jogadas geopolíticas. Associado aos ingleses, ao passo que entrava em conflito com eles à medida que crescia e se expandia. Adiantando-se ao seu tempo e à realidade do seu país, Mauá aproveitou-se das circunstâncias favoráveis e construiu, em menos de 10 anos, um grande império empresarial e uma grande fortuna. Mas suas bases, assentes em uma sociedade escravista e dependente, não eram sólidas. Logo as oligarquias dominantes trataram de colocar um freio a essas atividades "subversivas" ou enquadrá-Ias rigidamente. O relatório da Comissão de Inquérito sobre a situação financeira do país, criada pelo ministro Ângelo Ferraz em 1859 – o mesmo que iniciou o desmonte das proteções alfandegárias em 1857 – é eloqüente:
"A história do mundo [ … ] não apresenta outro exemplo de uma desmoralização social tão repentina, de uma corrupção de hábitos santificados por séculos de duração, tão assustadora como temos presenciado no Brasil de 1854 para cá [ … ] Antes bons negros da costa da África para felicidade sua e nossa [ … ] do que finalmente empresas mal-avisadas, muito além das legítimas forças do país, as quais perturbando as relações da sociedade produzindo uma deslocação de trabalho, têm promovido, mais que tudo a escassez e alto preço de todos os víveres.[ … ] quanto mais não é de lastimar que o nosso povo fosse ainda envenenado moralmente pela introdução do detestável sistema de bancos de emissão, criaturas do monstro cobiça comercial! Não vimos sem grande receio a facilidade com que os governos, Imperial e provincial, prestam nestes últimos anos a sua garantia a várias empresas." (10)
A pressão dos setores escravistas e dos ingleses pelo fim das tarifas alfandegárias (que oneravam suas importações) pelo fim dos "privilégios" para as indústrias; a transformação do Banco do Brasil- agora sob o controle da oligarquia governante – em uma alternativa para a aplicação rentável dos capitais parasitários; a crescente má vontade contra essas "inovações" (que contrariavam a tradicional "vocação agrícola" do Brasil); a falta de um mercado de trabalho livre; tudo isso foi vulnerabilizando as posições de Mauá e outros pioneiros.
É nesse contexto que se inicia a derrocada de Mauá e de seu império empresarial. Dele se conservarão inúmeras obras pioneiras – a maioria delas agora sob controle dos capitais ingleses – e as primeiras experiências capitalistas em um solo pouco propício. Experiências que só serão retomadas, em um novo nível, após a Abolição da escravatura e a Proclamação da República, que abrem de fato o caminho para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil.
Amancebada desde o seu início com o capital estrangeiro, subordinada à grande propriedade da terra, dependente do governo, temerosa do povo (11), a burguesia brasileira estará marcada desde a sua origem pela pusilanimidade e a falta de um verdadeiro projeto nacional. Tal qual o é hoje.
Raul K. M. Carrion é vereador eleito pelo PCdoB em Porto Alegre/RS e graduado em História pela UFRGS, Coordenador do Centro de Estudos Marxistas (CEMI RS) e do Centro de Debates Econômicos e Sociais do Rio Grande do Sul (CEDESP/RS).
Notas
(I) MAUÁ, Visconde de. Autobiografia – Exposição aos credores e ao público. Rio de Janeiro: TOPBOOKS, 1998, pp. 219-220.
(2) SODRÉ, Nelson Werneck. História da burguesia brasileira. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1967, p. 115.
(3) MAUÁ. Op. Cit., pp. 102-104.
(4) "O período de desenvolvimento máximo do capitalismo pré-monopolista, o capitalismo em que predomina a livre concorrência, vai de 1860 a 1870. ( … ) é exatamente depois desse período que começa o enorme 'ascenso' de conquistas coloniais, que se exacerba ( … ) a luta pela partilha territorial do mundo." [LENIN. Obras Escolhidas. São Paulo: AlfaÔmega, 1982, v.l, p. 633].
(5) MAUÁ, Visconde de. In: CALDEIRA, Jorge. Mauá: empresário do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 430.
(6) CALDEIRA. Op. Cit., p. 17.
(7) Muito se tem falado do abolicionismo de Mauá. Na prática, sua posição sobre a questão era contraditória. Por um lado, colocava em seus contratos de prestação de serviços públicos cláusulas onde se obrigava a "não empregar o braço escravo" e desde 1853 pregou a utilização de imigração branca para substituir o braço escravo; fundou colônias agrícolas no Amazonas com 600 açorianos e 500 algarvianos; nas suas estâncias do sul colocou 500 açorianos e trouxe chineses que plantavam chá, arroz, alfafa para suas propriedades no Uruguai; estabeleceu 200 hindus em suas fazendas em Macaé e outros 100 em Sapopemba. Ao mesmo tempo, era incapaz de visualizar a incorporação dos escravos na nova ordem social e temia uma abolição prematura. Defendia, antes de qualquer emancipação dos escravos, a viabilização de um substituto ao braço servil, assumindo postura ambígua frente à abolição.
(8) "Desde que o estabelecimento ficou montado para produzir em grande escala, havia-me eu aproximado dos homens de
governo do país em demanda de TRABALHO para o estabelecimento industrial, cônscio de que essa proteção era devida, mormente precisando o Estado dos serviços que eram solicitados, em concorrência com encomendas que da Europa tinham que ser enviadas, e já foi dito quanto o estabelecimento prosperou no período em que essa proteção lhe foi dada." [MAUÁ. Op. Cit., p. 108].
(9) GORENDER, Jacob. A burguesia brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1981, pp. 12-13.
(10) Relatório da Comissão de Inquérito sobre a situação financeira do país (1859). Citado por PRADO JúNIOR, Caio. Evolução Política do Brasil e Outros Estudos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1971, pp. 83-85.
(11) Nesse sentido, a posição de Mauá, contrária à República, é esclarecedora dos limites políticos do "liberalismo" da nascente burguesia brasileira: "Não desejo para meu país a liberdade e as instituições dos outros Estados da América ( … ) basta a livre manifestação e desenvolvimento do princípio legal na esfera de ação que a Constituição lhe garantiu. Até aí acompanho a idéia liberal; fora desse terreno, nem uma linha. Essa causa da liberdade que se
liga ao futuro da democracia e que é a causa da América, repito, eu não a quero para nosso país ( … ) se a desgraça permitir que a negra nuvem que apenas aponta em nosso horizonte político, sem que por hora nos inquiete, chegasse a tomar aspecto ameaçador ( … ) espero e confio que qualquer que seja a opinião que tenha na ocasião as rédeas do poder – esteja a opinião conservadora ou a idéia liberal representada no Governo há de possuir a energia e vigor precisos para em tal momento sufocar os elementos que queiram transformar a nossa ordem social." [MAUÁ. Anais da Câmara, sessão de 26.01.1874. In:
FARIA, Alberto de. Mauá. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1933, pp. 470-475].
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