A greve na Ford

No final de 1998, simultaneamente ao desfecho do conflito com a Volks, eclodia em São Bernardo do Campo um novo confronto, desta vez na unidade da Ford.
Este texto, como a parte I publicada na edição anterior de Princípios, faz parte de um estudo mais amplo, com o mesmo título, ainda em fase de elaboração.

Em fins de novembro, o então presidente da Ford/Brasil, Ivan Fonseca e Silva, anunciara em Porto Alegre que a empresa faria uma paralisação em sua linha de montagem no fim do ano por causa da queda da demanda interna.

No início de dezembro, os executivos da Ford visitam novamente Porto Alegre, pois a montadora tinha um projeto de construção de fábrica em Guaíba (RS). Na ocasião, o presidente de operações para a América do Sul fala em reavaliar os investimentos na região, devido à retração de 35% no mercado brasileiro e 20% no argentino.

Em seqüência a essas manifestações, a Ford antecipava o início do período de licença remunerada para os funcionários da fábrica de São Bernardo. Correlatamente, a linha de montagem, que vinha operando com metade de sua capacidade havia várias semanas, era totalmente paralisada dois dias antes da data prevista. Somente no dia 4 de janeiro de 1999 a empresa informaria quanto às providências que pretendia adotar para adequar a mão-de-obra à produção.

O representante da comissão de fábrica externava o temor acerca das medidas que seriam adotadas e que podiam variar de novas férias coletivas a demissões. A empresa estava com 26 mil carros estocados entre pátio da fábrica e concessionárias.

E, então, no dia 19 de dezembro, o caderno de economia de um órgão de imprensa noticiava em manchete: "Ford do Brasil demitirá 2,8 mil funcionários". (1) As dispensas, além do mais feitas de forma tão brusca, atingiam quase a metade do quadro de pessoal da fábrica de São Bernardo do Campo. Os cortes eram anunciados para o dia 4 de janeiro, quando os trabalhadores retomariam da licença remunerada. O comunicado das dispensas fora feito no fim da tarde do dia 18 de dezembro.
A montadora alegava redução da demanda devido à crise econômica internacional. E informava que a fábrica passaria a operar em apenas um turno de trabalho.

Perplexo, o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC não atinava sobre o que fazer, pois todos os funcionários estavam em licença, portanto ausentes do local de trabalho. A seu ver, a montadora iria certamente enviar à casa dos trabalhadores um aviso sobre os cortes, além de cuidar das indenizações cabíveis.

Estava-se às vésperas da realização de um ato que articulava empresários, sindicalistas e lideranças parlamentares no Pacto pela Produção e pelo Emprego. Tratava-se de denunciar a política econômica do governo, baseada em crédito escasso e juros altos, que produziam a inadimplência das empresas e o desemprego dos trabalhadores, o qual nas regiões metropolitanas já se aproximava dos 20% da População Economicamente Ativa (PEA).

O ato se realizou efetivamente no dia 21 de dezembro e na oportunidade o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC expôs aos presentes a conduta truculenta da Ford, declarando que uma greve era pouco como resposta. Solidário, o presidente da Fiesp se dispôs a interferir no caso.
Enquanto isso, a montadora, às vésperas do Natal, continuava demitindo, inclusive por telegrama.
O presidente do Sindicato dos Metalúrgicos declarava que, para evitar demissões, aceitaria uma negociação nos moldes da realizada com a Volks, desde que autorizada pelos trabalhadores. Mas a montadora mantinha as demissões e não dialogava.

Os operários passaram então a ser orientados a aguardar dia 4 de janeiro, data em que todos voltariam ao trabalho. Nessa ocasião, seria talvez paralisada a Via Anchieta, em sinal de protesto.
No dia 30 de dezembro, a comissão de fábrica e a direção do Sindicato realizavam um primeiro encontro para traçar a estratégia de resistência às demissões. Participa da reunião um diretor, João Ferreira Passos (Bagaço), que liderara a histórica greve na Ford em 1991, quando a empresa cortou o salário dos grevistas e demitiu militantes sindicalistas. A reação operária na época foi violenta.
Desta vez, a Ford se acautelava, realizando uma operação de esvaziamento da fábrica.

"O medo da empresa não é problema nosso", declarava Bagaço. "Nosso problema é a falta de vergonha na cara da Ford, de demitir por carta, na véspera do Natal, sem nenhum respeito às famílias que ajudaram a construir essa empresa".

Os operários se indagavam sobre as intenções da empresa com essa demissão em massa. O caso é que, durante o ano de 1998, as férias coletivas e a licença remunerada perfaziam juntas quase quatro meses de máquinas paradas. E temiam que a Ford estivesse planejando concentrar a produção na futura unidade de Guaíba (RS).

O presidente do Sindicato do ABC fazia saber que a entidade não iria aceitar as demissões. Para evitá-Ias, dispunha-se a negociar medidas como a ampliação do banco de horas, bem como a redução da jornada de trabalho com corte de custos. Lembrava-se também que entre os demitidos havia trabalhadores à beira da aposentadoria e outros afastados por problemas de saúde. Receava-se, além disso, o cancelamento dos convênios médicos.

Mas a Ford não queria negociar. E, por precaução, adiava para o dia 5 de janeiro (1999) o retorno dos funcionários que não haviam sido demitidos.

O plano dos sindicalistas era entrar na empresa e trabalhar normalmente. Um grupo de trabalhadores faria piquetes em todos os portões para evitar que os não-demitidos fossem trabalhar, separadamente. Todos participariam de uma assembléia e só depois entrariam conjuntamente na fábrica.
De fato, no dia 5 de janeiro, depois de realizada uma assembléia, todos se dirigiram à fábrica, vestiram os macacões e assumiram seus postos, determinados a trabalhar, e dessa forma demonstrando que não reconheciam as demissões.

A idéia era produzir, de forma primorosa, 600 carros, sem causar tumulto. O presidente do Sindicato recomendava: "Nada de ataques ao patrimônio e sim disciplina no movimento". Mas a chefia da fábrica suprimira as condições de trabalho; as empilhadeiras estavam sem gás, as máquinas sem alimentação elétrica ou hidráulica e assim por diante. Em conseqüência, ao meio-dia, os demitidos e os ainda empregados foram dispensados, embora o turno normal terminasse às 17 horas. A Ford considerou o dia de licença remunerada. E alegou falta de condições operacionais para produzir, inclusive porque havia mais empregados que máquinas disponíveis, visto que os operários dos dois turnos se apresentaram ao mesmo tempo, pela manhã. Dois pontos ficavam patenteados: o não-reconhecimento das demissões e a solidariedade entre empregados e demitidos.

Em uma segunda assembléia do dia, na portaria da empresa, os operários decidiram que se apresentariam de novo para trabalhar, no dia seguinte.

No mesmo dia 5 de janeiro, a Ford anunciava a abertura de negociações com o Sindicato. Mas não pretendia discutir a demissão dos cerca de 40% do seu efetivo. Dispunha-se a reexaminar os 300 casos de funcionários com estabilidade incluídos na relação dos dispensados. E também a proceder a uma eventual revisão dos valores das indenizações: até então, fora oferecido o pagamento de dois salários e meio a cada empregado demitido. Mas era só.

Segundo o diretor de Recursos Humanos da Ford, Carlos Augusto Marino, as demissões eram irreversíveis em vista da queda da produção e da participação tornada menor da montadora no mercado. Negou a desativação da Ford do ABC, com a transferência de sua produção para a nova fábrica de Guaíba, ainda em projeto. O que se pretendia, declarava, era manter a unidade de São Bernardo em condições de competir e disputar com as outras unidades Ford do mundo a possibilidade de fabricar novos modelos. Informou ainda que a empresa não pensava em demitir, por ora, empregados das unidades do bairro do Ipiranga (São Paulo), que produzia caminhões, e de Taubaté, que fabricava motores até para exportação. A idéia era administrar nessas unidades a baixa de produção esperada para os primeiros meses de 1999.

No dia 6, os operários repetiam sua tática e a empresa novamente deixava as máquinas desligadas. Os trabalhadores consideravam-se em estado de licença remunerada. O presidente do Sindicato declarava: "Nós não estamos em greve, e assim todos os dias deverão ser pagos". A fábrica, sim, praticava o locaute, impedindo a produção. Ninguém estava ocupando a fábrica, mas apenas exercendo o direito de encontrar-se lá para trabalhar.

Mesmo porque os dispensados não haviam assinado as cartas de rescisão contratual; simplesmente haviam sido notificados da demissão, na véspera do Natal. Legalmente continuavam empregados, até porque tinham direito de cumprir o aviso-prévio.

Para sua pretendida negociação com a Ford, o presidente do Sindicato procurou formar uma rede de apoio. Assim, conversou com o novo ministro do Trabalho, Francisco Dornelles. Embora prometendo agendar uma audiência no Ministério, Dornelles já adiantava, porém, que governo não ia interferir nas negociações.

Em assembléia realizada na manhã do dia 7, os demitidos da Ford rejeitavam a proposta da montadora, que Ihes oferecia uma indenização maior. Ou seja, recusavam-se a trocar seus empregos por dinheiro, ainda mais num mercado em que grassava o desemprego.

A demissão em massa praticada pela Ford comovia o meio operário e a opinião em geral. Além disso, era sabido que, vinculada ao desemprego dos 2.800 na montadora, viria a perda de postos nas indústrias de componentes, atingindo, portanto, uma cifra bem mais alta.

Os empregados da Scania, Mercedes-Benz e Volks planejavam passeatas de solidariedade que sairiam das fábricas em direção à Ford, culminando numa grande assembléia, juntamente com os demitidos.

Num outro dia, os metalúrgicos dispensados levariam mulher e filhos para a porta da empresa.
Pensou-se, inclusive, em promover uma excursão dos demitidos, em ônibus fretado pelo Sindicato, para Tatuí, no interior de São Paulo, para onde a montadora transferira boa parte do seu estoque de veículos, temendo depredações.

Houve ainda a proposta de fechamento da Via Anchieta durante toda uma manhã, sempre para chamar a atenção da opinião pública.

No dia 8, os operários decidiram promover um Natal na empresa no dia 13, já que os 2.800 demitidos às vésperas de 24 de dezembro não haviam tido o direito de aproveitar a festa.
As linhas de montagem continuavam desligadas pela montadora.

O movimento contra as demissões angariava a simpatia de governadores e empresários, preocupados com a retração econômica. O governador Olívio Dutra, que questionava o contrato feito pelo seu antecessor referente ao projeto da Ford em Guaíba, manifestou-se em favor dos trabalhadores e recebeu uma comissão de sindicalistas. O governador Itamar Franco se comprometia a receber o presidente do Sindicato para dar seu apoio aos metalúrgicos. Deputados e vereadores passavam a comparecer às assembléias na Ford.

O ministro do Trabalho, porém, não alterou sua posição. Em entrevista, informava que não interviria no caso, o qual considerava assunto para negociação direta entre os metalúrgicos e a empresa. A seu ver, não havia base legal para proibir as demissões. Quanto à legislação trabalhista, o ministro considerava um avanço a criação do banco de horas, a demissão voluntária e a suspensão temporária do trabalho. E ponderava que ainda havia muito a discutir para aprofundar a reforma nessa área, eliminando o que chamava de rigidez, a fim de "favorecer a geração de empregos".

A Ford marcava para o dia 13 de janeiro a homologação das demissões no ABC, comunicadas em dezembro. No caso, o acerto de contas com os empregados dispensados seria feito no próprio Sindicato do ABC. A diretoria orientava os demitidos a não comparecer; e o boicote às homologações foi aprovado em assembléia.

Também para o dia 13 estava marcada a grande manifestação contra as demissões. Metalúrgicos e seus familiares participariam de uma ceia de Natal e de um ato religioso ecumênico no pátio da empresa. Além de sindicalistas, estavam convidados o bispo do ABC, o rabino Sobel, pastores de igrejas evangélicas e lideranças políticas.

O Natal dos demitidos, realizado no dia 13 de janeiro de 1999, transformou-se numa conclamação por mudanças no rumo da economia brasileira. Faziam-se críticas aos juros altos, à dependência ao capital especulativo e à desindustrialização. Em seguida, uma passeata, com cerca de 7 mil manifestantes, paralisou por algum tempo uma das pistas da Via Anchieta, terminando com um ato em frente à Igreja. Presente, Lula acusou a Ford, detentora de tão altos lucros globais, de falta de responsabilidade social.

Impávida, a Ford enviava carta aos demitidos de São Bernardo, orientando-os a buscar numa agência bancária local o dinheiro referente às indenizações trabalhistas. Por sua vez, o Sindicato do ABC, contrário às homologações, aconselhava os metalúrgicos, em assembléia, a não receber a importância oferecida nem assinar cartas relativas ao fim dos contratos.
Novamente, demitidos e empregados ocupavam a fábrica, que continuava a não produzir.
Em revendedoras da Ford no Rio Grande do Sul, em Goiânia, em São Bernardo do Campo, eram realizados protestos contra a montadora.

No dia 16 de janeiro, a Ford divulgava comunicado informando que manteria fechada a fábrica até o fim do mês, concedendo licença remunerada aos operários durante esse período. Alegava ter tomado a decisão em vista da impossibilidade técnica de retomar suas operações, devido à presença diária de pessoal demitido em suas instalações desde o dia 5. Queixava-se ainda dos protestos que vinham sendo feitos em frente às lojas autorizadas da rede da marca. Avisava também que o serviço de transporte de trabalhadores iria ser cortado.

No dia 18, à revelia das imposições, o Sindicato convocava uma assembléia, que se reuniu no dia seguinte. Mesmo sem o transporte da empresa, compareceram quase 4 mil pessoas, realizando-se ainda um desfile de carros, com quase 300 deles ocupando duas das quatro pistas da Via Anchieta.
Por fim, os participantes lotaram o salão do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC para discutir as manifestações dos próximos dias, bem como o sistema de arrecadação de alimentos e dinheiro no Brasil e no exterior. Uma conta aberta para o fundo de solidariedade aos demitidos receberia contribuições de sindicatos do País, centrais sindicais internacionais e quem mais se dispusesse a ajudar. Já começara a coleta no Senado. O Comitê de Cidadania do Rio de Janeiro doara cestas básicas.

No dia 21, os operários da Volks interrompiam o trabalho durante 3 horas para participar de um ato contra o desemprego na Ford. O movimento começou às 7 horas, com carreata de cerca de 500 veículos na Via Anchieta.
Simultaneamente, a Ford se decidia a aceitar negociações, agendando um encontro do seu diretor de Recursos Humanos com o presidente do Sindicato, num hotel em São Bernardo do Campo, a realizar-se no dia 22.

Para pressionar, os sindicalistas programavam que, durante os entendimentos, ativistas da CUT estivessem ocupando simbolicamente uma grande revendedora Ford em São Paulo. Essa ocupação de fato ocorreu, como também outras em São José dos Campos (SP) e Minas Gerais.
Mas a negociação do dia 22 fracassou.

O caso é que a Ford oferecia indenizações que variavam de 2,5 a 10 salários, conforme o tempo de serviço, para os demitidos aceitarem o desligamento, ou seja, o desemprego com o mercado em recessão. O presidente do Sindicato ficou de levar a proposta à assembléia dia 25, mas para recomendar a rejeição.

De sua parte, o diretor de Recursos Humano informava que 380 demitidos já haviam aceito deixar a empresa, tendo recebido os cheques que lhes eram depositados. A título de concessão, a montadora aceitava negociar a situação dos cerca de 300 portadores de doenças profissionais. Porém, quanto aos mais de 2.100 restantes, continuava aguardando que se decidissem.

No dia 25, conforme o previsto, os metalúrgicos recusavam-se a votar a proposta de indenizações da empresa. Queriam seus empregos de volta – não dinheiro. A assembléia programava também montar dois acampamentos: um no pátio da fábrica, a partir do dia 1º de fevereiro, e outro em frente à casa de um dos executivos, a ser escolhido. As manifestações durariam entre 12 e 24 horas.
Quanto à Ford, desistia de colocar a linha de montagem em operação no dia 1°, devido ao impasse. Com efeito, o presidente do Sindicato já adiantara que os demitidos também entrariam no recinto; e com eles na fábrica, a montadora não se dispunha a operar.

No dia 27, os demitidos da Ford ocupavam por cerca de 3 horas as instalações de um depósito de peças mantido pela montadora em Jandira, na Grande São Paulo. Para o dia seguinte estava programada mais uma assembléia na porta da fábrica, seguida de uma passeata com a adesão dos funcionários da Mercedes-Benz. Outro grupo protestaria em concessionárias da marca, em São Paulo.
Por fim, entre 29 de janeiro e 1O de fevereiro, a Ford, em reuniões com os dirigentes do Sindicato, reabriu o diálogo sobre as demissões.

Por essa época, a Anfavea estava negociando com o governo um novo acordo de redução de impostos, que tinha como contrapartida não praticar demissões, a fim de não aguçar a conjuntura de desemprego.

Em essência, a par da suspensão temporária das 2.800 demissões, a Ford propunha um pacote de demissões voluntárias para o conjunto dos operários, demitidos ou não; e pretendia tornar atrativo esse pacote, oferecendo 41,5% do salário por ano de casa e plano de saúde até abril. A seguir, se reabriria o problema dos ex-demitidos, que de qualquer forma receberiam os salários de janeiro e também os de fevereiro, saindo momentaneamente da penúria.

Agora era o presidente do Sindicato que se interessava pelo prosseguimento das negociações, em vista da suspensão, embora temporária, das demissões. Pelos seus cálculos, uns 700 operários já haviam deixado a montadora e com certeza outros cerca de 900 iriam optar pelo voluntariado, já que as indenizações haviam se tornado mais aceitáveis. Dessa forma, no seu entender, o número de excedentes não ultrapassaria a cifra de 1.200. O alvo do presidente do Sindicato era a reintegração deles. E para alcançar esse objetivo, admitia estudar todo tipo de soluções, de redução de jornada e salários até terceirizações. O importante, a seu ver, era manter o emprego dos demitidos remanescentes. E convencer a Ford a reintegrar os 1.200 que contabilizava, parecia-lhe bem mais fácil do que fora a luta em defesa dos 2.800.

Na festa do dia 3 de fevereiro, no pátio da empresa, o clima era de comemoração. Havia reza, com famílias ajoelhadas no asfalto agradecendo a Deus o desfecho, com a suspensão, embora temporária, das demissões. Lula comentava que nunca uma empresa recuara na decisão de demitir em massa, depois de expedir cartas comunicando o desligamento. "Acho que a partir de agora muitos trabalhadores não vão mais se resignar quando forem cortados".

Em meados de fevereiro a montadora retomava a produção e se iniciava a segunda fase das negociações. A empresa previa dificuldades por causa do grande número de excedentes, que calculava em 1.500 (e não 1.200). O Sindicato pretendia propor a volta deles em sistema de revezamento com os que haviam permanecido no quadro regular. A empresa preferia que continuassem em suas casas. E os executivos informavam que a montadora, além de tratar do excedente de pessoal, iria também formular projetos que tornassem a fábrica mais competitiva.

O desemprego no ABC já atingia 20%, ou seja, 1 em cada 5 assalariados economicamente ativos, o que representava um índice superior ao da região metropolitana de São Paulo.
No caso específico da Ford do ABC, ocorria que a montadora, devido à retração do mercado, segundo alegava, decidira produzir bem menos do que no ano anterior.

Foi nesse contexto que no dia 25 de fevereiro de 1999 foi aceita a proposta de afastamento temporário, pelo sistema lay-off, para os cerca de 1.500 funcionários excedentes.
Assim, as demissões efetuadas continuariam suspensas. Mas até o dia 31 de maio os trabalhadores seriam remunerados com um valor correspondente a seus salários líquidos e a empresa ficaria isenta de encargos sociais e trabalhistas.

Quanto aos cerca de 300 demitidos portadores de doenças profissionais, a Ford se comprometia a reintegrálos, num gesto apresentado como de benevolência.
Participaram da assembléia por volta de mil metalúrgicos.

A Ford pretendia ainda instituir em março a semana de quatro dias de trabalho, para uma produção correspondente a não mais que a metade da permitida pela sua capacidade instalada. Na verdade, o corte de pessoal não representava fundamentalmente uma resposta à queda das vendas em 1998 e às previsões negativas também para 1999. Com a meta da redução de 40% do quadro tratava-se essencialmente de elevar a produtividade da fábrica, que se considerava estar bem abaixo dos padrões da Ford em nível mundial. Faziam-se comparações, concluindo que a fábrica inglesa de Halewood, com o mesmo custo da de São Bernardo do Campo, produzia três vezes mais. E não era só. A Ford ABC seria menos produtiva até que algumas fábricas de outras montadoras instaladas no Brasil e que produziam mais unidades por empregado. O contraste seria ainda maior em relação à nova fábrica projetada para Guaíba. Em suma, a Ford queria obter 100 carros/ano por empregado. No entanto, a produção média antes das demissões era de 30 carros. A esse fator se conjugando as vendas em queda e a menor participação no mercado, resultava, na opinião dos executivos, que a Ford/Brasil estava dando prejuízo para a matriz nos últimos anos. As demissões com vista a uma reestruturação visavam corrigir esse quadro.

No dia 10 de fevereiro, em meio às reuniões com o Sindicato para combinar o acordo, lia-se na imprensa uma entrevista do diretor de Recursos Humanos, na qual ele tranqüilamente expunha o ponto-de-vista da empresa. (2)

Segundo o entrevistado, durante o ano de 1998 a Ford gastara por volta de 64 milhões de reais para remunerar funcionários parados, apenas a fim de "evitar demissões". A licença remunerada e a antecipação de férias coletivas teriam sido freqüentes. Também o banco de horas havia sido utilizado em larga escala; e a tal ponto que em média, segundo Marino, cada empregado da linha de produção encerrara o ano de 1998 devendo 184 horas de trabalho à Ford, o que correspondia a cerca de 23 dias úteis.

As providências tomadas se destinavam a reverter essa situação.

 Naturalmente, acrescentava ele, pesara também a necessidade de tornar a fábrica mais competitiva, ou seja, aumentar o número de carros/ano por empregado.
Tentando justificar a forma brutal como a demissão em massa fora operada, Marino informava que a demissão dos 2.800 obedecera a uma estratégia minuciosamente debatida pela direção. A empresa optara por comunicar as demissões dias antes do Natal, durante as férias coletivas, para que o trabalhador, oportunamente avisado, não desperdiçasse o dinheiro do 13º. salário e da participação nos lucros e resultados e prudentemente o guardasse para se manter …

Por fim, negava que a montadora tivesse a intenção de sair do ABC, mas insistia em que, para carrear novos investimentos para a região, precisava adquirir mais competitividade.
Alguns dias depois, convidava os sindicalistas a um esforço conjunto para tornar a fábrica mais competitiva apresentando produtos "a um custo menor do que a concorrência"; aconselhava-os a não ficarem restrito "ao problema do número de empregados" … Em reuniões posteriores, prosseguiria na mesma linha.

Em maio, enquanto se aprofundavam o de emprego e a recessão, a situação dos operários da Ford do ABC voltava a ser discutida.
Pelo acordo de fevereiro, cerca de 1.500 trabalhadores, considerados excedentes, haviam sido afastado com redução de salários. Nesse meio tempo houve adesões ao pacote de demissões voluntárias, permanentemente aberto, e, dessa forma, acabaram restando por volta de 1.250 afastados.

A cifra podia até tornar-se menor já que a empresa esperava aproveitar parte desse contingente nas vagas decorrentes das chamadas "desterceirizações", ou seja, a passagem de atividades terceirizadas para o serviço direto – mas remuneradas com salário reduzido.
A montadora também negociava com o presidente do Sindicato do ABC a suspensão do pagamento da participação nos lucros e resultados de todo os operários, sempre alegando a necessidade de cortar custos e "evitar demissões".

Por essa ocasião, estava mais uma vez em pauta a renovação do acordo da Anfavea com o governo, acordo esse pelo qual, em troca da diminuição do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), a indústria e comprometia a não demitir.

Novamente o empresariado regateou. Enquanto os sindicalistas interpretavam essa disposição considerando cobertos por ela os metalúrgicos com contratos suspensos pelo sistema lay-off, a Anfavea discordava, tentando excluí-los. A maioria desses operários era da Ford.

Ao ser instituída pela Medida Provisória 1779 de novembro de 1998, a suspensão temporária do contrato de trabalho, prevista para durar de 2 a 5 meses, fora recebida com repulsa e encarada como prenúncio de demissão. Agora, porém, em vista das circunstâncias, os vitimados por ela temiam cair no desemprego pleno (visto que a renovação imediata era proibida pela MP) se não fosse encontrada uma solução até 31 de maio, quando expirava o prazo de vigência.

Foi assim que no início de junho de 1999, a pedido dos próprios dirigentes dos sindicatos de metalúrgicos, a MP 1779 era reeditada com a inclusão, por parte do ministro do Trabalho, de um parágrafo que permitia prorrogar o mencionado limite de 5 meses, sem definir o prazo máximo, desde que isso contasse com a aprovação do sindicato e dos empregados. Dessa forma, se prosseguia com a espécie de paliativo proporcionado aos afastados da Ford.

Simultaneamente, o Ministério do Trabalho tomava também outra providência. A lei 9.601 de janeiro de 1998 definira que a isenção parcial de encargos trabalhistas para a empresa que aumentasse seu quadro de funcionários contratando por tempo determinado, teria validade de 18 meses a partir da sua publicação, ou seja, até julho de 1999.

Atendendo ao pedido dos sindicalistas, o governo agora prorrogava a vigência da lei por mais 18 meses. No entanto, era bem pouco expressivo o contingente de trabalhadores contratados sob essa modalidade desde janeiro de 1998.

Quanto à Ford, a prorrogação do lay-off para os chamados excedentes propiciava igualmente, em contrapartida, isenções tributárias à empresa, inclusive no concernente à arrecadação previdenciária e encargos trabalhistas em geral.

Porém, sempre reclamando, o diretor de Recursos Humanos da Ford informava que pretendia reduzir ainda mais a remuneração dos afastados, a fim de tornar viável para a empresa o prolongamento do sistema e "evitar demissões". Acreditava que o novo afastamento seria de uns três meses, estendendo-se até setembro. Mas desejava não apenas uma reação do mercado no segundo semestre de 1999, como também que "mais gente saísse voluntariamente da empresa". (3) A propósito, frisava que estava permanentemente aberto o programa de demissões voluntárias.
De fato, a insistência com respeito a esse programa prosseguia, defrontando-se com a resistência dos operários.

Foi o que ocorreu, por exemplo, em julho do corrente ano de 2000, quando os cerca de 600 trabalhadores ainda mantidos afastados pela Ford mais uma vez reivindicaram sua reintegração como o documenta a reprodução de foto que mostra reunião de parte deles na porta da montadora, com esse objetivo.

Paula Beiguelman é professora associada da USP e autora dos livros Os companheiros de São Paulo e Por que Lima Barreto, entre outros.

Notas
(
1) O Estado de S. Paulo, edição de 19 de dezembro de 1998.
(2) Folha de S. Paulo, edição de 1° de fevereiro de 1999.
(3) O Estado de S. Paulo, edição de 10 de junho de 1999.

EDIÇÃO 59, NOV/DEZ/JAN, 2000-2001, PÁGINAS 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49