A Flor do Lácio
Como a ninguém é dado alegar o desconhecimento da lei, ainda mais quando versa sobre a sua, a nossa língua, Leia & Comente convida a ler o projeto de Aldo Rebelo (PCdoB/SP) e o comentário contrário de Sérgio Pachá. Contra a invasão de estrangeirismos que assola o país, o deputado acena com o rigor da lei, o filólogo com o rigor do ensino. Você o que acha? É pegar no laço ou na lábia a Flor do Lácio? Comente!
Comento:
O sr. Pachá parte de uma justa constatação: "o estado calamitoso da língua portuguesa entre nós". Com efeito, "ninguém que leia os nossos jornais ou assista aos programas da televisão brasileira pode negar que a língua que se fala e escreve neste país vai de mal a pior". Que fazer? Perante esse estado de calamidade pública, toda iniciativa concreta em defesa de nosso idioma deveria ser bem-vinda, principalmente considerando que poucos são os que de fato conferem prioridade ao combate à degradação que ele tem sofrido nas mãos dos "comunicadores". Estranhamente, porém, ainda mais considerando que a luta se trava em múltiplas frentes, das quais a tribuna do Congresso não é a menos importante, a preocupação do articulista é investir não contra os responsáveis pela situação que ele próprio deplora, mas contra o projeto de lei visando a promover e proteger nosso idioma, de autoria do deputado Aldo Rebelo (PCdoB/SP). Tenta desqualificar essa firme e patriótica iniciativa com argumentos que, como nosso agredido idioma, também vão de mal a pior.
Em síntese, Aldo Rebelo é criticado não pelos objetivos que persegue (dos quais só um brasileiro cínico ou irresponsável poderia divergir), mas (1) por recorrer aos métodos de ação próprios a seu mandato, isto é, apresentando projeto de lei sobre a questão e (2) porque o diagnóstico lingüístico em que se apoiaria sua iniciativa parlamentar não seria correto. As duas críticas são descabidas.
A primeira porque, ao chamar o recurso à lei de "solução de força", assimilando a força da lei à "lei" da força, o articulista coloca-se no campo dos amigos da anomia. É seu direito fazê-lo, mas por que então se queixar do estado calamitoso, portanto anômico, da língua portuguesa entre nós? Pior, entretanto, do que a inconseqüência é a deturpação. Se o sr. Pachá respondesse não estar censurando em princípio o recurso à lei, mas apenas os aspectos do projeto de Aldo Rebelo que considera coercitivos, replicaríamos ser preciso descomunal má vontade para ignorar que o deputado comunista propõe principalmente medidas pedagógicas:
"Artigo 2°. Ao Poder Público, com a colaboração da comunidade, no intuito de promover, proteger e defender a língua portuguesa, incumbe: I – melhorar as condições de ensino e de aprendizagem da língua portuguesa em todos os graus, níveis e modalidades da educação nacional; II – incentivar o estudo e a pesquisa sobre os modos normativos e populares de expressão oral e escrita do povo brasileiro; III – realizar campanhas e certames educativos sobre o uso da língua portuguesa, destinados a estudantes, professores e cidadãos em geral; IV – incentivar a difusão do idioma português, dentro e fora do País."
Quanto à segunda crítica, sem entrar no mérito das competências acadêmicas do articulista, é no mínimo contestável a separação pétrea que estabelece entre as diferentes dimensões do idioma, ao dizer que "o descalabro (… ) não é, basicamente, lexical ou mesmo morfológico. É sintático. São frases mal construídas. São regências claudicantes. São concordâncias sonegadas".
Podemos a cada passo comprovar a artificialidade dessas fronteiras. Cito um exemplo, escolhido a esmo num jornal da "grande" imprensa, onde os erros pululam, no que certamente o sr. Pachá concordará comigo. Referindo-se a uma marca de sabão, uma jornalista explica que a composição dele "garante à multinacional 8,8% share (sic) de um mercado ( … )" (Gazeta Mercantil, 29/812000, p. C-1). O termo exótico "share", tolamente utilizado pela plumitiva, deforma toda a sintaxe da frase. Outro exemplo oferecem caipirices da toponímia americanófila, em âmbito residencial (California's Tower, Jaburu Building) ou no de empresas ditas de "entretenimentos" (Beto Carrero's World, Xitão's Bar, Beach Park) etc.
As distorções do léxico manifestam-se especialmente nas traduções. Incompetência e servil mimetismo se combinam para deturpar o significado de palavras usuais, impondo-lhes sentido exótico. Um exemplo, entre incontáveis outros: o uso das expressões "oficial militar" (em vez de oficial); de "oficial" ou "oficial civil" (em vez de funcionário), porque, na língua do Império, "officer" significa funcionário, o que obriga, em inglês, a distinguir "military" e "civil officer". Em nossa língua, a distinção, pior que inútil, confunde. Mas para o sabujo o que importa é a voz do dono, aliás "his master's voice".
Na tentativa de provar que o "entreguismo" lingüístico não seria um problema, o doutor ou doutorando (apresenta-se como doutor pela Universidade da Califórnia, mas anuncia que sua "tese doutoral" está "em elaboração") recorre a um velho vício lógico: esconde atrás de uma afirmação óbvia ("os empréstimos lingüísticos são um fenômeno de todos os tempos e lugares") uma tese fragilíssima, a saber, que os males de que sofre a língua portuguesa têm "muito pouco que ver com as palavras e expressões estrangeiras que aqui arribam e de que, bem ou mal, nos (grifado por mim, JQM) servimos". É o caso de perguntar "nós quem, cara-pálida?". Os que gostam de patinar em gelatinas globais, os "very important people" (aliás VIP), os fanáticos do "big-mac", etc. Certamente não os que assumem o idioma materno como expressão básica do próprio patrimônio cultural. Claro que empréstimos ocorrem em todas as línguas. Mas essa constatação não permite ocultar que tomar palavras emprestadas na língua de Buffalo Bill e de Bill Clinton pode ser mais desastroso do que tomar dinheiro emprestado do FMI.
Tampouco nos convence o articulista ao abrir o baú de sua amplíssima erudição afim de reforçar seus duvidosos argumentos: "Até mesmo 'os marinheiros helenos que a vaga iônica criou', como lá (sic) canta inesquecivelmente Castro Alves, tiveram de adotar uma palavra estrangeira, thálassa, para dar nome ao mar que Ulisses cortou'."
Faltou não somente dizer "lá" onde poeta canta, mas principalmente, que além de thálassa, os gregos também usavam hals (na Ilíada, nomeadamente) pélago, por exemplo, para designar a líquida planície de Poseidon.
Aparentemente incapaz de argumentar sem recorrer a falsas oposições, como já notamos a propósito das que estabelece entre léxico e sintaxe e entre medidas legislativas e medidas pedagógicas de defesa de nosso idioma, o filólogo proclama, em grandiloqüente arroubo: "Para defendermos a nossa língua não precisamos de deputados. Precisamos de professores de Português". Um grande pensador alemão do século XIX criticou, acerba mas pertinentemente, o que chamou de "cretinismo parlamentar". Somos às vezes obrigados, porém, a constatar que pior ainda pode ser o cretinismo anti-parlamentar.
Tampouco os franceses escaparam do rolo compressor da língua do Império. Só que, com um sentido de patriotismo, de amor à língua materna, que falta a certos vizires, tomaram providências legislativas para conter e contrabalançar a forte influência do idioma da coca-cola.
Sem dúvida é bom lembrar, com Olavo Bilac, que "a morte de uma nação começa sempre pelo apodrecimento de sua língua" e que, "por conseguinte, usar bem do idioma pátrio é dever de qualquer brasileiro que se preze". Com efeito, os idiomas, como as nações, embora não vivam e morram à maneira dos organismos biológicos, podem ser varridos pelos turbilhões da história. Assim ocorreu, entre nós, com a chamada língua geral, língua nacional em formação no Brasil até o século XIX, que caminhou para lenta extinção. Ao menos, morreu por força da própria dinâmica econômica e social da formação do povo brasileiro. É duvidoso, entretanto, que nosso lingüista anti-parlamentar tenha meditado na frase que citou. Se "qualquer brasileiro que se preze" tem o dever de não estropiar nem deixar estropiarem seu próprio idioma, já que, quando ele apodrece, a nação está moribunda, como então pretender restringir uma questão de vida e morte da cultura nacional ao âmbito do ensino escolar do português?
Severíssimo diante do que lhe parece "a inanidade da solução ( … ) proposta pelo parlamentar", o articulista propõe a dele, que lembra irresistivelmente as ponderações de célebre personagem de Eça de Queirós. "Para tanto só há uma solução: restaurar em todos os níveis o ensino do português". a conselho é digno de um especialista em inanidades. No mesmo espírito, poderíamos apresentar proposta de solução radical para o problema da fome: dar alimentos para todo mundo. a Conselheiro Acácio acharia a idéia excelente.
Seria bom, entretanto que, antes de pregar o milagre da multiplicação dos docentes, o indômito Pachá procure obter dos magnatas "mediáticos" apoio para sua proposta. Com efeito, se os detentores privados dos grandes meios sociais de comunicação, particularmente dos jornais mais poderosos, os frias, levis, mesquitas, marinhos, e outras famílias que controlam o cartel mediático, fossem um pouco menos mesquinhos em relação à folha de pagamentos, contratariam mais e melhores revisores, poupando-nos de parte ao menos dos incontáveis atentados contra nosso idioma que os jornais deles acumulam, dia após dia. (Para não falar em televisões e rádios, onde barbarismos e outras barbaridades impõe incontrastada ditadura da cacofonia). Dizia um espírito sarcástico que os russos tinham uma "intelligentzia" e nós temos uma "ignorantzia". A imprensa nos exibe, diuturnamente, erros rudes não somente de português, mas também ampla gama de outras tolices reveladores do "estado calamitoso" de nossa "ignorantzia". Não por acaso o "enxugamento" neoliberal dos empregos tem a mesma origem que o abastardamento de nosso léxico e de nossa sintaxe: na "globalization" e no Império do dólar.
Falta de professores de português?
Faltam, no Brasil, professores de todas as matérias. Aliás, faltam para os pobres, porque quem pode pagar (em São Paulo) entre R$ 600,00 e 1.000 por mês encontra ensino de qualidade. É excelente, diria de novo o impoluto conselheiro Acácio, a idéia de incutir nas crianças e adolescentes o senso da língua, de seus recursos vocabulares e estilísticos, de sua dinâmica e multissecular vitalidade dinâmica e vitalidade estas que são o oposto do imobilismo e de quaisquer chauvinismos lingüísticos, por mais bem intencionados que sejam.
Lúcido o bastante para não imaginar que os "digêneos" e outros negociantes do ensino assumiriam tarefa tão ciclópica e financeiramente pouco ou nada rentável, nosso especialista em inanidades não julgou entretanto necessário esclarecer, em sua proposta, já não digo quem educará os educadores, mas quem fará da educação pública uma prioridade nacional? É esta, em todo caso, uma prioridade do deputado Aldo Rebelo. Não é a do lingüista Pachá, que decididamente não é um bom vizir.
João Quartim Moraes é professor do Departamento de Filosofia do IFCH da Universidade de Campinas (Unicamp). Texto de Sérgio Pachá (com quem João Quartim Morais polemiza)
O projeto de lei do deputado Aldo Rebelo, proibindo o uso de palavras e expressões estrangeiras por pessoa física ou jurídica, pública ou privada, pretende sanar um problema que está mal colocado quanto à solução para que ele se propõe.
O problema é o estado calamitoso da língua portuguesa entre nós. Ninguém que leia os nossos jornais ou assista aos programas da televisão brasileira pode negar que a língua que se fala e escreve neste país vai de mal a pior. Mas este ir de mal a pior tem muito pouco a ver com as palavras estrangeiras que aqui arribam e de que, bem ou mal, nos servimos (os empréstimos lingüísticos são um fenômeno de todos os tempos e lugares, e até mesmo os “marinheiros helenos que a vaga iônica criou”, como lá canta inesquecivelmente Castro Alves, tiveram de adotar uma palavra estrangeira, thálassa, para dar nome ao mar que Ulisses cortou”).
O descalabro, dizíamos, não é, basicamente, lexical ou mesmo morfológico. É sintático. São frases mal construídas. São regências claudicantes. São concordâncias sonegadas. Palavras impropriamente empregadas, grafias errôneas ou flexões defeituosas também se encontram aqui e acolá. Mas o nó da questão consiste nos atentados que se perpetram contra a estrutura da língua – e é esta razão por que a coisa é diversa e incomparavelmente mais grave do que ao deputado Aldo Rebelo se afigura. Daí dizemos que o problema está mal colocado quanto a sua natureza.
E daí, também, a insanidade da solução – e solução de força, ainda por cima – proposta pelo parlamentar. Não há de ser proibição de vocábulos como site, breakfast, e know-how que fará com que os brasileiros passem a falar e escrever melhor. Para tanto só há uma solução: restaurar em todos os níveis o ensino do Português. Do primário à universidade. Ensinar a ler e entender o que se leu. Ensinar a escrever sabendo porque é que se escreve assim e não assado. (Tudo isso são coisas comezinhas, mas há anos abandonadas e esquecidas, com os resultados que estão aí). Incluir nas crianças e adolescentes o senso da língua, de seus recursos vocabulares e estilísticos, de sua dinâmica e multissecular vitalidade – dinâmica e vitalidades estas que são o oposto do imobilismo e de quaisquer chauvinismos lingüísticos, por mais bem intencionados que sejam. Lembrar-lhes, enfim, com Olavo Bilac, que “a morte de uma nação começa sempre com o apodrecimento de sua língua” (1) e que, por conseguinte, usar bem o idioma pátrio é dever de qualquer brasileiro que se preze.
Para defendermos a nossa língua não precisamos de deputados. Precisamos de professores de Português.
Sérgio Pachá é filólogo, mestre em Língua Portuguesa pela UFF.
Nota
(1) V. “Instrução e Patriotismo”, em Conferências Literárias. Rio de Janeiro: Francisco Alves & Cia, 1912, p.332.
EDIÇÃO 60, FEV/MAR/ABR, 2001, PÁGINAS 84, 85, 86, 87