A resistência à globalização neoliberal
Este texto reproduz a intervenção no seminário “A resistência à globalização neoliberal”, realizado em Porto Alegre, em 26/01/2001, e integrado no Fórum Social Mundial
Estamos aqui reunidos em Porto Alegre neste Seminário integrado no Fórum Social Mundial não apenas para debater a temática e a necessidade da resistência à globalização neoliberal, mas também para refletir criativamente sobre idéias, iniciativas e formas de luta que possam ser úteis ao grande combate que a humanidade é chamada a travar contra esse flagelo que configura cada vez mais uma ameaça à própria continuidade da vida no Planeta, que é a pátria do homem.
A amplitude e a pujança crescentes desse movimento de resistência favorecem, entretanto, pelo que há nele de espontâneo, confusões em torno do próprio conceito de "globalização", que prejudicam o desenvolvimento da luta em curso.
Nunca é demais repetir que em si mesma a globalização, como fenômeno de reorganização do espaço, da economia e das relações sociais, é um processo inelutável que expressa o caminhar do homem e as prodigiosas conquistas por ele realizadas.
Aquilo que combatemos não é essa tendência, mas a engrenagem e os efeitos da chamada "globalização neoliberal" cujos objetivos são antagônicos aos da globalização da solidariedade entre os povos, a única que responde às aspirações da condição humana.
Recordo essa evidência porque a idéia da globalização é antiquíssima. Sob figurinos diferentes, sistemas de poder, com características muito diferenciadas, foram precursores de um mundo globalizado sob a sua hegemonia. Alexandre da Macedônia sonhou com o Estado universal. Roma retomou o projeto e o Império Britânico, transcorridos quase dois milênios, respondeu no seu auge por quase a metade da produção industrial e do comércio mundial.
A palavra "globalização", essa sim, é recentíssima. Um dos primeiros a usá-Ia foi em 1983 o economista norte-americano Theodore Levitt para designar a convergência dos mercados mundiais. O seu compatriota Kenichi Ohmae (1) retomou o vocábulo para qualificar o processo através do qual as transnacionais definiam regras de um jogo que escapava ao controle dos Estados-nação e também a recomposição das economias nacionais no seio de um sistema de transações e de processos que atuam sobre a economia mundial.
Marx e Engels já na segunda metade do século XIX encaravam a globalização do capital como um processo inelutável, embora não previssem as formas que assumiria.
Nem isso era possível. A crise posterior à II Guerra Mundial atrasou a globalização neoliberal. O keynesianismo, para salvar o capitalismo de um naufrágio iminente, recorreu a soluções que fortaleceram o papel intervencionista do Estado, mas, a partir do início dos anos 70, assistimos a uma regressão galopante dessa tendência. Incentivadas pelo binômio Thatcher-Reagan, desenvolveram-se impetuosamente estratégias assinaladas por um predomínio cada vez maior do mercado e um enfraquecimento do Estado. Com a peculiaridade contraditória – fundamental para a compreensão do sistema – de que nos EUA, o país sob cuja égide e impulso se desenvolveu a globalização neoliberal, o Estado continuou a agigantar-se e sua capacidade de intervenção se ampliou em múltiplos campos.
Naturalmente, a implosão da URSS e o hegemonismo dos EUA tiveram um efeito enorme na aceleração do novo rumo da economia mundial.
No início dos anos 90 a ruptura da organização mundial da produção, o agigantamento das transnacionais, a expansão galopante dos fundos de pensões e o seu peso decisivo nos mercados financeiros mudaram a vida no Planeta, onde o tempo passara a ser universal e instantâneo graças a uma revolução informática controlada por um punhado de empresas.
A concentração de poder assusta. As 200 maiores firmas do mundo – segundo o Banco Mundial e a revista Fortune representariam, em 1960, 17% do PIB mundial. Essa percentagem subiu para 24% em 83 em 95 superava já os 31%. As 500 maiores empresas, com ativos de 32 trilhões de dólares, realizaram em 1996 negócios no valor de 11.400 bilhões obtendo lucros de 320 bilhões. Esses lucros são superiores ao PIB de 43 países atrasados com mais de um bilhão de habitantes. O volume de vendas anual dessas 500 empresas equivale ao dobro do PIB de 107 países subdesenvolvidos, com mais de 4,5 bilhões de habitantes, incluindo a China e a Índia. (2)
O jogo do dinheiro nas bolsas assume proporções colossais. Somente as transações realizadas no mercado de divisas representam diariamente 1.400 bilhões de dólares, isto é aproximadamente 50 vezes o valor das transações de bens ligadas à produção.
As atuais gerações são espectadoras e vítimas de uma subversão total do triângulo histórico trabalho-produção-emprego. Os cinco primeiros fundos de pensões norte-americanos geram mais de 1.200 bilhões de dólares, ou seja o equivalente ao PIB da França.
As crises, até ao final da n Guerra, eram cíclicas e espaçadas. Agora há sempre crises em perspectiva no horizonte imediato. Acontecimentos inesperados em remotos países da periferia provocam fulminantes transferências de capitais. A crise na Ásia Oriental, iniciada na Tailândia, determinou por exemplo no primeiro trimestre de 98 o repatriamento de mais de 300 bilhões de dólares para os países industrializados do Centro.
As crises russa e brasileira fizeram estremecer os países do G-7. Quem paga as faturas de cada uma dessas crises, autênticos tumores da globalização neoliberal, é sempre o povo dos países dependentes por elas atingidos. O caso da Coréia constitui um exemplo paradigmático dos efeitos de cada uma delas numa repartição dos prejuízos e dos benefícios. Relatórios do Banco Mundial e do FMI registram com satisfação a relativa rapidez da recuperação da economia, no tocante à produção e ao PIB, daquele país da Ásia Oriental. Omitem, porém, o fator desnacionalização. Uma parcela importante das grandes empresas coreanas foi transferida de mãos. Hoje pertence às transnacionais que durante a crise as adquiriram por preços baixíssimos.
Um discurso retórico e farisaico, repetido com poucas variações, pelos governantes do G-7 e pelos porta-vozes da OCUE, da OMC, do FMI e do Banco Mundial, reconhece a existência de tensões sociais e desigualdades resultantes do funcionamento dos mecanismos da nova economia, eufemismo que os neoclássicos utilizam para designar a engrenagem trituradora do capitalismo atual. É da praxe lamentar a fome, a miséria, a ignorância, as epidemias, a devastação ecológica, enfim os flagelos que assolam o mundo submetido à economia de mercado globalizada. Chovem promessas. Mas os fatos estão aí. O não cumprimento dessas promessas é uma realidade. As percentagens do PIB destinadas à ajuda internacional aos países mais atrasados em vez de se aproximar do nível dos compromissos assumidos é cada vez menor.
Segundo o PNUD (3) as desigualdades entre os ricos e os pobres acentuam-se de ano para ano; a exclusão social adquire, inclusive nos países industrializados, proporções assustadoras (na UE há 35 milhões de pessoas que vivem na pobreza). Em 1960 o quinto mais pobre da humanidade dispunha de 3% da renda mundial; em 1994 a parte que lhe cabia era apenas de 1,1 %, quase um terço da anterior; hoje é inferior ai %. Entretanto, no último quarto de século a renda dos mais ricos subiu de 69% para 86%. (4)
Essa distribuição cada vez mais desigual da riqueza produzida é acompanhada de uma redução igualmente brutal de benefícios sociais a que os setores mais desfavorecidos tinham acesso. A supressão de conquistas sociais obtidas pelos trabalhadores após lutas históricas coincidiu com a concentração do poder econômico. O novo capitalismo implica um desafio às modalidades da solidariedade nacional interna. Na sua prática mostra ser incompatível com o funcionamento do Estado do Bem-Estar Social. A transnacionalização das economias choca-se com a lógica redistributiva do Estado-nacão. Os países industrializados dão o mau exemplo. A saúde e a educação gratuitas deixam de ser consideradas deveres do Estado para serem gradualmente transformadas em negócios privados lucrativos cujos mecanismos alimentam a engrenagem dos mercados financeiros. As contribuições dos trabalhadores são hoje o combustível que assegura o gigantesco poder dos fundos de pensões.
Processo transitório
É a globalização neoliberal uma fatalidade, ou um fim? Contrariamente ao que sustentam os seus adeptos, nomeadamente os orgulhosos defensores de um capitalismo cognitivo que aspira ao monopólio de um saber cada vez mais concentrado em pequenas elites desumanizadas, o tipo de globalização divinizada pelos cérebros da nova economia será – tudo o indica – um processo transitório, marcado por grandes fragilidades.
Fidel Castro colocou a questão há dois anos em Havana, dirigindo-se a economistas de todas as escolas, vindos de todo o mundo. Na sua opinião terá uma duração breve. A irracionalidade do processo torna-o extremamente vulnerável.
Foram em grande parte a covardia dos intelectuais e a capitulação mais ou menos transparente da social-democracia que criaram condições para o desenvolvimento galopante em escala mundial do fenômeno da globalização neoliberal, inseparável de um sistema de poder no qual a transnacionalização das economias cumpre um papel fulcral.
Mas as premissas teóricas do sistema são falsas. A tirania dos mercados é uma figura ficcional ideada pelos ideólogos da nova economia capitalista. A globalização, como processo resultante do progresso civilizacional, não implica a vassalagem dos estados, o alastramento da pobreza e do desemprego, a destruição das conquistas sociais e das culturas nacionais, a agressão à natureza.
Contra o que sustenta a engrenagem da mídia controlada pelas transnacionais da informática, o desaparecimento do Estado-nação não é uma exigência premente da chamada aldeia global. A margem de manobra dos estados perante o flagelo do neoliberalismo globalizado é considerável. A questão é que se disponham a resistir.
No seu ensaio "Alto à OTAN", Samir Amin analisa as circunstâncias em que os governos da União Européia, com o apoio do grande capital, decidiram aceitar o preço da vassalagem, acompanhando os EUA em perigosas agressões, inseparáveis da sua estratégia imperial.
Integrando na crise global do capitalismo crises ocorridas em áreas da periferia, nomeadamente a do México, a da Rússia, a da Ásia Oriental e a do Brasil, Samir Amin escreveu então: "Os EUA nesta conjuntura caótica retomaram a ofensiva para simultaneamente restabelecerem a sua hegemonia global e, em função desta, reorganizar o sistema mundial em todas as suas dimensões econômicas, políticas e militares".
O envolvimento europeu em projetos norte-americanos como a agressão ao lraque e à Iugoslávia tem levado influentes politólogos a sustentar que essa situação de dependência da União Européia se manterá por muito tempo.
Tal opinião traduz um subjetivismo transparente. As contradições crescentes que opõem na área econômica os EUA à União Européia manifestam-se também na área político-militar.
Não terá sido por acaso que no próprio momento em que o largo período de expansão da economia americana finda, abrindo-se a perspectiva de uma recessão, a UE tomou finalmente a decisão, repetidamente adiada, de criar uma força de intervenção rápida de 100 mil homens com capacidade para intervir autonomamente em conflitos regionais futuros. Não cabe aqui analisar os aspectos negativos de um eventual renascimento do militarismo europeu. O que me parece importante salientar é o fato de que
Washington reagiu imediatamente, identificando no projeto uma ameaça à hegemonia até agora exercida pela OTAN no terreno da "segurança européia". A resposta européia foi naturalmente ambígua.
Mas é transparente que, independentemente das palavras conciliatórias, essa nova força emerge como o embrião de um futuro exército europeu, numa clara demonstração de que a UE não está disposta a aceitar eternamente a presença militar norte-americana. Alguns analistas salientaram nos EUA que o fim da OTAN é uma questão de tempo. Obviamente a UE é uma diversidade, com a peculiaridade de o Reino Unido funcionar nela em muitas situações como uma quinta coluna de Washington.
Mas a própria dinâmica do neoliberalismo globalizado tende neste início do século XXI a acentuar e não a eliminar as contradições existentes no âmbito da Troika que, utilizando o G-7 e instituições internacionais como o FMI, o Banco Mundial, a OMC e outras, atua como se fosse um governo mundial onipotente. Na frágil aliança da UE e do Japão com os EUA as divergências, embora não sejam expressas publicamente de maneira explícita, aumentam, bem como a sua complexidade. Enquanto a Europa confia numa recuperação da sua moeda, o Japão continua a desenvolver com paciência e discrição esforços tendentes à criação na Ásia Oriental de uma zona do yen, projeto que provoca alarme nos EUA. Sua concretização poderia significar um golpe fatal para a hegemonia mundial do dólar.
A convergência na Troika em tomo de políticas que agravam a desigualdade no mundo e aprofundam o fosso existente entre os países desenvolvidos (menos de um quinto da humanidade) e os atrasados não impede a existência de grandes contradições entre os EUA e seus aliados. Essas contradições não se manifestam apenas através de interesses econômicos conflitantes. Os sistemas de segurança social europeus, embora enfraquecidos, subsistem. A sua supressão provocaria grandes explosões sociais. Os mecanismos redistributivos na Europa estão ainda fundamentalmente ligados a relações de classe herdadas do pós-guerra. Nos EUA os sindicatos e as organizações de massas dos trabalhadores nunca tiveram força para impor reivindicações que na Europa haviam sido aceitas há muito pelo patronato. Essa disparidade de situações sociais e culturais contribuiu decisivamente para as elevadas taxas de crescimento econômico dos EUA, mas também para a queda da qualidade de vida resultante do capitalismo selvagem norte-americano.
A globalização neoliberal é um movimento orientado para a homogeneização da economia mundial ou de partes desta. Com a peculiaridade de ser concebido para benefício exclusivo de um reduzido número de sociedades e em prejuízo da grande maioria da humanidade.
É oportuno perguntar se estamos assistindo a uma convergência sistêmica da economia mundial para um modelo planetário único baseado sobre a economia de mercado e formas institucionais quase similares.
As respostas a essa questão fundamental são muitas e pouco claras. Em primeiro lugar é imprevisível por ora o desfecho do antagonismo já referido entre o funcionamento do sistema de poder norte-americano e o resto do mundo, incluindo o binômio UE-Japão. A ameaça imperial
A teorização norte-americana sobre o Estado mínimo desconhece a história. Os estados podem desaparecer. As nações subsistem quando eles são destruídos. Braudel falava-nos do motor histórico a três tempos: o tempo longo das mentalidades, o tempo médio da economia e o tempo breve do que é político. AfórmuIa é polêmica. Mas o próprio debate por ela suscitado coloca-nos perante uma dúvida: provoca a globalização uma aceleração do ritmo geral da história ou apenas uma reorganização dos fatores que determinam?
Estamos longe de um consenso. Mas basta contrapormos, por exemplo, o Canadá à multidiversidade da Índia para sermos confrontados com a distância que nos separa da autêntica aldeia global. A unificação das culturas tardará séculos, talvez milênios, apesar da rede da Internet.
Segundo Zbignew Brzezinski os EUA são já a primeira sociedade global da história e estão criando condições para impor uma cultura universal.
A afirmação, entretanto, é apressada e pouco responsável. Em primeiro lugar uma cultura síntese tipo Mac World, como lhe chamam, seria uma anticultura e portanto a antítese do fenômeno cultural.
Não precisamos saltar da América para a Ásia para captar a tenaz resistência das culturas a mudanças bruscas mesmo no âmbito da mesma sociedade. Numa aldeia da Alsácia quase tudo no modo de sentir a vida difere de uma aldeia da Provença. No Brasil, a nacionalidade comum não apaga o abismo existencial entre um gaúcho de Porto Alegre e um caboclo do sertão baiano.
O funcionamento do sistema de poder dos EUA tende a gerar ilusões entre os próprios cérebros que contribuíram para o seu agigantamento e para lhe imprimir a ambição e agressividade que hoje o caracterizam.
A faceta mais inquietante desse sistema é a aspiração à hegemonia universal e perpétua sobre o conjunto dos povos da Terra. Essa ambição encontra-se formulada em numerosos textos e, na perspectiva militar, num muito citado relatório secreto do Pentágono, divulgado na edição de 8 de março de 1992 do New York Times.
É uma ambição tão megalômana que entra em choque frontal com a própria lógica da globalização neoliberal, pois é incompatível com a supremacia do mercado sobre o Estado-nação.
Retomarei a questão mais adiante. Antes parece-me útil chamar a atenção para o fato de o sistema de poder dos EUA, no desenvolvimento de uma estratégia autônoma que ignora os mercados, insistir numa política imperial que, pela sua irracionalidade, configura uma ameaça permanente à paz mundial .
Não quero desviar-me do nosso tema e analisar aqui o significado da política de destruição do Iraque como Estado independente após a Guerra do Golfo. Também não vou deter-me na política que levou à intervenção na Bósnia e à imposição da falsa paz de Dayton, política que teve continuidade na agressão à Iugoslávia, usando a OTAN como instrumento militar de um projeto mais amplo de dominação dos EUA sobre o conjunto dos Balcãs.
Chamarei, porém, a atenção para um aspecto importantíssimo da política de expansão para o Leste europeu, de que quase não se fala no Brasil, apesar de ela constituir hoje uma peça fundamental da estratégia imperial dos EUA.
Em março do ano passado participei em Belgrado de um Seminário Internacional de solidariedade ao povo da Iugoslávia. Durante esse evento, membros da delegação russa, quase todos acadêmicos de prestígio, fIzeram revelações importantes que, lamentavelmente, não obtiveram divulgação no estrangeiro.
Um desses intelectuais, Vassilevich Morosov, esboçou um quadro assustador do papel que a Rússia desempenha hoje como peça na estratégia do sistema de poder dos EUA.
Na sua opinião a guerra do Kosovo prosseguiu na Chechênia. E terá continuidade noutros conflitos que Washington tentará criar (e financiar) artificialmente no território russo, estimulando tendências separatistas latentes. O objetivo é provocar a repressão, ou seja a intervenção do Exército federal russo. O sistema da mídia cumprirá então o seu papel. Pelo mundo afora a Rússia será acusada de espezinhar os direitos humanos e de negar o direito à autodeterminação de um povo que se bate pela liberdade. Os intelectuais ingênuos voltarão a ,morder o anzol. A Rússia aparecerá perante a "comunidade internacional" expressão que designa cada vez mais os EUA e os seus aliados – sentada no banco dos réus. Segundo Morosov, depois da Chechênia chegará a vez do Daguestão.
Posteriormente seria a Kalmuquia. O concerto da mídia trataria de pedir solidariedade para um povo descendente dos mongóis, oprimido pelos russos no sudoeste do delta do Volga. O folhetim perverso tende a repetir-se. A grande mentira do Kosovo funcionou como escola. Afastar a Rússia do Cáspio e do leste do Mar Negro parece ser uma prioridade para os ideólogos do sistema de poder dos EUA que traçam as linhas mestras da estratégia de dominação imperial perpétua da "nação predestinada" para tomar a humanidade feliz.
Não foi por acaso que na minha exposição entrei, embora superficialmente, pelo afluente da estratégia norte-americana que visa à transformação da Rússia numa potência periférica de segunda classe. Quis chamar a atenção para um confronto muito complexo que se esboça já no horizonte. A componente político-militar do sistema de poder dos EUA tende em tempo relativamente breve a entrar em conflito com a estratégia do neoliberalismo globalizado, imposta pelas transnacionais e aceita pela Tríada. Ora esta, como é do domínio publico, coloca o mercado acima dos estados, admitindo que é do seu livre funcionamento que dependem o rumo e progresso da humanidade.
Para ser mais claro insisto num aspecto dessa temática muito pouco lembrado, mas que, a meu ver, é prioritário na reflexão sobre o processo da globalização neoliberal.
Refiro-me à complementaridade existente entre o poder imperial norte-americano e a engrenagem financeira de um mercado que pretende funcionar com autonomia absoluta, desconhece fronteiras e se sobrepõe aos estados.
Estamos perante – repito – uma complementaridade que carrega as sementes de futuros conflitos de proporções imprevisíveis. A globalização neoliberal não seria aquilo que é sem o apoio, caberia dizer o incentivo, recebido dos estados da Troika e mais especificamente do sistema de poder dos EUA, a potência tutelar do moderno capitalismo.
Nunca é demais recordar o famoso desabafo de Thomas Friedman publicado no New York Times. Esse destacado conselheiro de Madeleine Albright, secretária de Estado norte-americana, não hesitou em afirmar que – cito – "aquilo de que o mundo precisa, a globalização, não funcionaria se os EUA não agissem com todo o seu poder de superpotência".
E por quê? Ele responde com cínica franqueza: "a mão invisível do mercado nunca funcionará sem o punho invisível. Mac Donald não pode ser próspera sem Mc Donell Douglas que construiu os F-15. O punho escondido que garantiu um mundo seguro para a tecnologia do Vale do Silício chama-se o Exército, a aviação, a marinha e o corpo de fuzileiros dos EUA".
São múltiplas as mensagens desta confissão arrogante. Uma delas é dirigida aos teólogos do mercado. Ela lembra-lhes que devem ser realistas na sua reflexão sobre o papel do Estado. Sendo um fato que as políticas neoliberais são responsáveis por uma drástica redução desse papel na quase totalidade dos países que a elas se submeteram não é menos verdade que a teorização sobre o Estado mínimo, brutalmente aplicada no Terceiro Mundo, não o tem sido nos principais países capitalistas. No caso paradigmático dos EUA, o Estado agigantou-se e intervém cada vez mais em todas as esferas da atividade humana, incluindo a econômica.
Dialeticamente gerou-se uma situação potencialmente conflitiva, pois a criatura – o mercado que se arroga uma autonomia decisória praticamente ilimitada tende a entrar em choque com as próprias forças institucionais que lhe asseguraram e asseguram o domínio atual que exerce no mundo onde impera a globalização neoliberal.
O mito que coloca o mercado acima do Estado é desmentido por fatos que merecem pouca atenção dos analistas do sistema mundial de desinformação. Cito um ocorrido há poucas semanas: a baixa da taxa de juros nos EUA. Um só homem, Alan Greenspan, do Fed, sem consulta prévia aos sacerdotes do mercado, tomou uma decisão apoiada pelo Estado norte-americano que produziu efeitos imediatos sobre o rumo da economia mundial, sacudindo as bolsas.
O historiador britânico Eric Hobsbawm reconhece em seu último livro (já publicado no Brasil), O novo século, que organizações internacionais tão importantes como o FMl, o Banco Mundial e a OMC dependem em última análise dos estados que as criaram e não do mercado. E, refletindo sobre as limitações do mercado globalizado, lembra que seria impensável rebaixar os salários dos trabalhadores da União Européia ao nível dos praticados na China ou na Malásia. Mesmo no clube dos ricos, qualquer tentativa de imposição de uma política social única enfrentaria uma resistência intransponível. Se na França ou na Alemanha, por exemplo, fosse por lei aplicado o modelo norte-americano em setores tão sensíveis como o da seguridade social, o resultado seriam explosões sociais de contornos revolucionários.
Conclusão: é um erro enorme confundir a globalização econômica com a globalização política – não obstante as interdependências. A política, por ora, é uma aspiração fantasiosa. Por que chamo atenção para essa realidade? Precisamente para iluminar uma rede de contradições mal estudadas – contradições que desmentem a tese segundo a qual a globalização neoliberal é incontrolável. O dragão é mais frágil do que afirmam aqueles que o contemplam com fatalismo, baixando os braços.
Os defensores mais ortodoxos da corrente que se autodefine como neoclássica-neoliberal não tomam conhecimento das desigualdades que o funcionamento da globalização imperial aprofunda dramaticamente em escala mundial. Na prática a exclusão social é eliminada do seu campo de visão e logicamente do seu projeto de economia-mundo. A sua estratégia assenta os pilares na edificação compensatória de um paradigma fictício, cimentado em harmonias imaginárias, crescimento garantido e equilíbrios ótimos.
Estamos perante um paradigma imensamente ambicioso com pretensões científicas e aspirações à universalidade. Uma constante nele – como salienta Remy Rerrera, do CNRS de Paris – é a apologia de um capitalismo novo visto e apresentado como o único concebível à luz da teoria. (5) Esse sistema, suprema conquista da inteligência, seria um horizonte inultrapassável. O norte-americano Francis Fukuyama, um hegeliano fora de tempo, sintetizou a aspiração e a fórmula num livro-slogan que correu pelo mundo: O fim da história.
Puro engano. A História continua. São fantasistas os perfis de uma geografia humana nova que traduziria o estado natural e definitivo da sociedade universal.
É muito cedo para se prever com um mínimo de rigor que efeitos terá no rumo do processo da globalização neoliberal o arrefecimento comprovado da economia norte-americana. Se ele evoluir, como muitos esperam, por uma recessão, as contradições entre o sistema de poder dos EUA e o mercado financeiro serão agravadas. Alan Greenspan, da Reserva Federal (Fed), não esconde a sua preocupação com "a exuberante irracionalidade dos mercados". Stiglitz, o ex-chefe dos economistas do Banco Mundial, exige hoje a urgente "regulamentação dos fluxos financeiros". E George Soros expressa o desejo de um maior protagonismo dos estados perante o mercado, afirmando que "talvez seja ainda possível salvar capitalismo do neoliberalismo".
Mas a anarquia financeira introduzida pelo jogo do dinheiro nos mercados e as devastações sociais dela inseparáveis criaram uma situação em que o criador principia a ter medo da monstruosa criatura por ele concebida.
O enorme poder dos EUA não esconde as suas vulnerabilidades. Elas foram geradas pelo sistema. Os EUA é o país mais endividado do mundo. A engrenagem da sua economia funciona de tal maneira, prisioneira de interdependências tão complexas, que bastaria por exemplo que o Japão suspendesse a compra de títulos do Tesouro norte-americano e vendesse parte dos que acumulou para que os EUA caminhassem para a falência. Claro que o Japão não tomará tal iniciativa. Porque ela o lançaria também, tal como a União Européia, numa crise de proporções catastróficas.
O exemplo serve, porém, para iluminar a fragilidade dos mecanismos da hegemonia norte-americana. O império cuja imagem de poder aparece no dólar como moeda praticamente universal tem, afinal, pés de barro.
A crise global e a esperança
Nunca como no início deste Terceiro Milênio a humanidade concentrou tanto saber. Se o usasse em benefício de si mesma teria a possibilidade de erradicar do Planeta a fome, a miséria, a ignorância. As prodigiosas conquistas da revolução tecno-cientifica permitiriam, se bem utilizadas, que as sociedades humanas evoluíssem na Terra numa atmosfera de paz, progresso e bem-estar crescentes.
Mas aquele que poderia ser o melhor dos tempos apresenta-se como o mais perigoso deles. .
A globalização neoliberal e o sistema de poder que lhe assegura o funcionamento distanciaram-se da própria lógica do capitalismo clássico. Assumiram características de fenômenos marcados pela irracionalidade. O novo capitalismo, a que Yann Moulier Boutang chama "capitalismo cognitivo", deixou se ser um problema da mais valia retida e da riqueza monetária. Transformou-se num objetivo louco.
Em breve se tomará incontrolável se o mecanismo não for quebrado. A multiplicação do dinheiro como meta absoluta, a valorização do valor como estratégia política assume em sociedades dominadas pelo poder crescente das transnacionais um caráter quase religioso. Seria preciso um novo Kafka para descrever o absurdo da engrenagem em que os homens do capital passam a ser funcionários a serviço do dinheiro. Nesse sistema anti-humano os homens, como prevê o alemão Robert Kurz, terão em breve de se vender a si mesmos como combustível indispensável ao funcionamento da máquina do novo capitalismo.
Falei de irracionalidade. Uma irracionalidade que assume também uma globalidade ameaçadora. Porque não se manifesta apenas nos mercados financeiros. Ela está presente na ideologia e no funcionamento da componente imperial da globalização neoliberal ou seja no sistema de poder que tem o seu pólo hegemônico nos EUA.
O modelo de sociedade que esse sistema tenta impor na Terra não só é incompatível com aquilo que de melhor existe na condição humana como envolve uma ameaça concreta à própria continuidade da vida no Planeta.
Nas últimas décadas foram consumidos mais recursos naturais não renováveis do que nos últimos dois mil anos. Essa dilapidação resulta de um modelo que, invocando a civilização, reflete um espírito de barbárie. A devastação das florestas e a desertificação avançam num ritmo alarmante. Milhares de espécies animais e vegetais desapareceram no último século. O uso de pesticidas altamente tóxicos toma improdutivos milhões de hectares de terras. A pretexto de combater a droga os EUA envenenam as águas dos rios da Amazônia colombiana. As emanações de dióxido de carbono estão destruindo a capa de ozônio que garante a vida na Terra. O governo dos EUA, principal responsável pela contaminação progressiva da atmosfera, cede à pressão das transnacionais e nega-se a cumprir resoluções de Cimeiras internacionais relativas à defesa do Planeta.
A agressão ao Ambiente assume os contornos de catástrofe ecológica. A grande maioria da humanidade, entretanto, não tem consciência da gravidade dos perigos que a ameaçam.
Isso porque a produção e o controle da informação instantânea estão nas mãos dos responsáveis pela situação criada.
A engrenagem político-econômica e militar que impõe a sua vontade aos povos e promove a difusão do seu modelo de contra-civilização apresenta-se como benfeitora da humanidade.
A farsa dramática da eleição presidencial nos EUA permitiu na virada do século iluminar uma realidade pouco conhecida: o ventre apodrecido de um sistema de poder que insiste em exibir-se como modelo de virtudes democráticas e defensor de valores e princípios que ele próprio calca aos pés.
Um presidente sem prestígio colocado na Casa Branca no rescaldo de um processo de contagem de votos marcado por incontáveis fraudes e pressões vai agora, dotado de enormes poderes, dirigir um Estado que se arroga o direito de levar a guerra a qualquer lugar do mundo em suposta defesa dos seus interesses vitais.
Esse presidente marionete, George W. Bush, será apenas um instrumento do sistema de poder que pela ambição e irracionalidade constitui uma ameaça para o conjunto da humanidade. Mas a consciência da sua própria fragilidade e mediocridade poderá torná-Io paradoxalmente mais perigoso. Porventura não recorreu Clinton a agressões armadas contra povos indefesos (Bósnia, Iraque, Iugoslávia) para desviar as atenções de problemas internos, alguns pessoais, que o incomodavam?
Mas a História ensina-nos que não há impérios eternos. Embora a resistência às forças políticas e econômicas que estão a empurrar o mundo para uma catástrofe seja ainda descoordenada e insuficiente, ela vem crescendo de ano para ano. É uma dupla resistência dirigida simultaneamente contra a tirania do poder imperial e contra o poder mais fluido, menos direto mas não menos perigoso, exercido pelos mercados financeiros erigidos em guia da humanidade submetida à religião do dinheiro.
É uma ilusão acreditar que o mundo tem um centro permanente em tomo do qual vegetam periferias cuja função seria servi-Io.
Por si só, o crescimento seguro da China e da Índia – países cujas opções de desenvolvimento não figuram nas receitas dos teóricos da globalização neoliberal-, os êxitos econômicos desses gigantes que concentram mais de um terço da população da Terra constituem uma advertência e uma esperança.
Gerard Kebabdjian, da Universidade de Paris-VIII lembra-nos oportunamente que "o fato de muitos atores disporem, muito ou pouco, de uma parcela de poder convida à criação de estruturas de cooperação e coloca um problema de organização à potência hegemônica porque a existência de uma instância simplesmente coercitiva não basta para promover a convergência pretendida pelo hegemon como nos sistemas hierárquicos". (6)
Promovendo uma forma de transnacionalidade do seu interesse no campo das relações econômicas e financeiras, as potências da Troika e especialmente os EUA tendem a esquecer que outras modalidades da transnacionalização em marcha geram solidariedades que funcionam como frentes de resistência planetária. É o que acontece já relativamente às lutas que envolvem a defesa do ambiente, a preservação de culturas ameaçadas, à recusa de políticas racistas no terreno da imigração e das que privatizam a seguridade social e suprimem conquistas históricas dos trabalhadores.
Tensões sociais crescentes em escala planetária obrigam os sacerdotes do capitalismo cognitivo a tomar, finalmente, consciência de que o espaço criado pela globalização resulta do desenvolvimento de realidades financeiras, produtivas, culturais, ecológicas, alimentares, biológicas e outras que estão ocorrendo em escala mundial num complexo, perigoso, mas também fascinante processo de interações cujo desfecho final é ainda uma incógnita.
Seminários como este, em Porto Alegre inserem-se no amplo, indispensável, mas ainda muito incipiente e descoordenado movimento de resistência contra a ameaça que representa para o homem e para a vida a globalização neoliberal. Nada, felizmente, está decidido. E os povos são o sujeito social da história.
Notas
(l) T, Levitt, "The globalization of Markets". Harvard Business Review, Harvard, Maio Junho, 1983; K.Ohmae, "La Triade.Emergence d'une stratégie mondiale de I' entreprise", Flamarion, Paris 1985.
(2), (3) e (4). As Estatísticas citadas foram extraídas de um ensaio de Philippe Hugon, de Paris X, Nanterre, publicado em "Mondialisation – Les Mots et les Choses", Ed Karthala, Paris, 1999.
(5) O ensaio de Remy Herrera, aqui referido, foi parcialmente publicado na edição de Julho/Agosto de 1999 do jornal EI Ecorwmista, de Havana, sob o titulo "Critica a Ia critica dei pensamientro único en Economia Politica.
(6) Gerard Kebabdjian, "Analyse éconornique et mondialisation", Karthala, Paris, 1999.
EDIÇÃO 60, FEV/MAR/ABR, 2001, PÁGINAS 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15