Neoliberalismo e liberdade do capital – Parte I
Este trabalho visa realizar um estudo sobre o neoliberalismo, partindo de seus fundamentos e analisando a hegemonia que conquistou nos dias atuais. Procurará, também, identificar o que há de novo e de velho nesta corrente de pensamento. Se ela representa um avanço ou um retrocesso histórico. Qual o significado dela se apresentar como pensamento único a ser seguido por todos os países do mundo.
*Este texto é parte de dissertação apresentada à cadeira de Teoria Política contemporãnea, do Departamento de Ciência Política, da Universidade de Brasília (UnB), em novembro de 2000. As demais partes serão publicadas nos próximos números de Princípios. Para fazermos esta análise partiremos de um estudo tomando como base os pontos de vistas dos dois maiores representantes desta corrente de pensamento: F. A Hayek e Milton Friedman. Analisaremos, também, trabalhos de estudiosos que criticam tais formulações. Finalmente centralizaremos nossas reflexões na análise das relações entre Estado e mercado, democracia e mercado, além de identificarmos as conseqüências do neoliberalismo.
Fundamentos do neoliberalismo
Em seu texto Balanço do neoliberalismo, Perry Anderson mostra que esta corrente de pensamento surgiu "como reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar". Trata-se de um "ataque apaixonado contra qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, denunciados como uma ameaça letal à liberdade, não somente econômica, mas também política". (1)
Em 1947, quando o Estado de bem-estar social já estava consolidado, Hayek realiza uma reunião em Mont Pelerin, na Suíça, juntando os mais ferrenhos adversários do Estado de bem-estar social europeu e do New Deal norte-americano. Lá estavam, além do próprio Hayek, Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins, Ludwig Von Mises, Walter Lipman, Michael Polanyi, Salvador Madariaga, entre outros. O grupo que ali se formou defendia um capitalismo livre de qualquer tipo de regulação e intervenção do Estado. Era a defesa do retorno ao capitalismo competitivo do "laissez-faire".
Com a crise do modelo keynesiano de desenvolvimento e a crise dos países socialistas, as concepções liberais ressurgiram, com força, em todo o mundo. Ganharam a hegemonia colocando as idéias progressistas na defensiva. Os neoliberais afirmam que as reivindicações dos trabalhadores foram responsáveis pela crise fiscal vivida pelos estados capitalistas devido às "excessivas demandas". Isto gerou desequilíbrios, com gastos maiores do que as receitas. Esta seria uma das razões para justificar o corte dos direitos dos trabalhadores.
Mas haviam razões de natureza política que permitiram a consolidação do neoliberalismo. Com a crise do socialismo a burguesia já não tinha porque se preocupar em assegurar as reivindicações dos trabalhadores. O risco do "comunismo" já não mais existiria. Era possível retomar a um capitalismo selvagem que garantisse maior acúmulo de capital.
F. A Hayek e O caminho da servidão
Friedrich A. Hayek nasceu em Viena em 1899. Na Universidade de Viena obtém o título de doutor em direito (1921) e em ciência política (1923). Juntamente com Mises, foi um dos continuadores da Escola Austríaca cujos fundamentos teóricos se baseiam no subjetivismo e no individualismo metodológico. A partir de 1931 passa a lecionar na London School of Economics, instituição que procurava formular um ponto de vista que barrasse a crescente influência do pensamento keynesiano nos meios acadêmicos da época. Com a crescente influência das idéias de Keynes o pensamento de Hayek ficou ofuscado naquele período.
Em 1944 escreve uma de suas mais importantes obras, O caminho da servidão, para isolar o nazismo e o socialismo, combater a intervenção do Estado no desenvolvimento capitalista, e defender a completa liberdade do capital. Hayek foi conselheiro de Margareth Tatcher, jogando importante papel na política seguida pela "dama de ferro". Em 1974 ganha o Prêmio Nobel de Economia.
No prefácio da edição inglesa de 1944, Hayek diz claramente que O caminho da servidão é um livro político. Não procura esconder, sob o manto de um falso cientificismo, sua clara posição contra o socialismo, contra o Estado de bem-estar social e a favor de um capitalismo livre de imposições.
Partindo da idéia de que a liberdade de ação econômica, entendida como garantia da propriedade privada e do "livre mercado", é condição necessária para a liberdade política e social, o autor considera que o planejamento econômico retira a liberdade e conduz ao totalitarismo. Por isto mesmo, coloca socialismo e nazismo no mesmo campo. Neste sentido, afirma que "o conflito existente na Alemanha entre a 'direita nacional-socialista' e a 'esquerda' é o tipo de conflito que sempre se verifica entre facções socialistas rivais". Hayek afirma que foi havendo um afastamento das idéias básicas da "civilização ocidental". (2)
Segundo o autor, o caminho no sentido do totalitarismo foi sendo construído progressivamente com a renúncia ao liberalismo do "laissez-faire" e ao individualismo. Por outro lado ressalta a importância de se recorrer ao máximo às forças espontâneas da sociedade (mercado) e o menos possível à coerção (Estado). Os neoliberais consideram a esfera do mercado como a esfera da liberdade e a esfera do Estado como a esfera da coação.
Hayek ressalta uma mudança de rumo das idéias onde a utilização das forças espontâneas da sociedade, "mecanismo anônimo e impessoal do mercado", foi substituída pela "condução coletiva e 'consciente' de todas as forças sociais em direção a objetivos deliberadamente escolhidos". (3)
Criticando o socialismo por defender que a verdadeira liberdade implica em condições de certa igualdade social e que não há como isolar a esfera econômica da política, ele afirma que "a reivindicação da nova liberdade não passava assim, da velha reivindicação de uma distribuição eqüitativa da riqueza".
O autor manifesta sua posição profundamente anti-socialista e anticomunista ao citar o escritor inglês F. A Voigt, que disse: "o marxismo levou ao fascismo e ao nacional-socialismo porque, em essência, marxismo é fascismo e nacional-socialismo". (4)
Discutindo a questão do individualismo e do coletivismo Hayek afirma que o socialismo visa abolir a propriedade privada dos meios de produção e criar uma economia planificada, onde o lucro seja substituído por um "órgão central de planejamento".
Procurando apagar as diferenças entre o capitalismo e o socialismo, afirma os "socialistas de direita" e os de esquerda tem como objetivo comum substituir a concorrência pela economia planificada.
Esta tentativa de identificar nazismo com socialismo é uma grosseira manipulação ideológica. Mesmo com os erros cometidos no processo de implantação do socialismo, trata-se de um regime que visa abolir a propriedade privada dos meios de produção e a opressão de classes, enquanto o nazismo e o fascismo representaram formas radicais de defesa da propriedade privada e do capitalismo.
O esforço de identificar planejamento com totalitarismo parte do falso fundamento individualista do neoliberalismo, que nega a existência de interesses coletivos. Neste sentido, o planejamento, que visa levar em conta os interesses da coletividade, entra em conflito com os interesses individuais e, por isto, é "totalitário". É evidente que pode haver um planejamento democrático e um antidemocrático, burocrático, centralizador. De qualquer forma isto decorre da existência ou não de um Estado democrático que vise aos interesses coletivos. Identificar planejamento com totalitarismo apenas revela a defesa intransigente da propriedade privada sem qualquer limitação social imposta pelos interesses coletivos. É a defesa cega das regras do mercado que, no entanto enxerga o interesse fundamental do capitalismo: o lucro.
Discordando daqueles que afirmavam que o desenvolvimento tecnológico fazia avançar o monopólio e que isto colocava na ordem do dia o planejamento, Hayek diz que há um exagero em relação à monopolização da economia e que um relatório sobre a Concentração do Poder Econômico nos Estados Unidos não comprovou o "suposto desaparecimento da concorrência". Ele afirma que o surgimento de cartéis e sindicatos decorre de políticas governamentais, e não do sistema de concorrência. Na realidade procura, sob todas as formas, negar a importância do processo de monopolização da economia capitalista.
Os liberais somente aceitam o papel do indivíduo. Não concordam com a existência de uma dimensão coletiva, social. Consideram que o social é uma mera somatória dos interesses individuais. Assim Hayek afirma que "os chamados 'fins sociais ' são, pois simplesmente, objetivos idênticos de muitos indivíduos" (5). Por isso mesmo o Estado somente pode atuar numa esfera em que não limite a liberdade individual, aí entendida como garantia da propriedade privada e do "mercado livre". Por isso mesmo ele afirma que somente no âmbito do capitalismo é possível a liberdade. A liberdade para ele é colocada no campo essencialmente econômico e não político. Ao se manifestar sobre a questão política o autor revela seu caráter antidemocrático ao afirmar:
"A democracia é, em essência, um meio, um instrumento utilitário para salvaguardar a paz interna e a liberdade individual. E, como tal, não é, de modo algum, perfeita ou infalível. Tampouco devemos esquecer que muitas vezes houve mais liberdade cultural e espiritual sob regimes autocráticos do que em certas democracias – e é concebível que, sob o governo de uma maioria homogênea e ortodoxa, o regime democrático possa ser tão opressor quanto a pior das ditaduras. Não queremos dizer, contudo, que a ditadura leva inevitavelmente à abolição da liberdade, e sim que a planificação conduz à ditadura porque esta é o instrumento mais eficaz de imposição de coerção e de imposição de ideais." (HAYEK, F. A. O caminho da servidão, p. 84. sa ed., Rio de Janeiro: Editora Instituto Liberal, 1990).
Discutindo a questão da desigualdade econômica o autor afirma que o Estado de Direito "produz desigualdades" mas que estas não são criadas intencionalmente, não visam atingir a uma pessoa determinada. Falando da igualdade formal e da igualdade material, substantiva, o autor é claro ao afirmar que não cabe ao Estado promover uma igualdade substantiva porque isto afetaria o Estado de Direito e a liberdade individual.
Falando da propriedade privada afirma que ela é a "mais importante garantia da liberdade não só para os proprietários, mas também para os não proprietários". Isto porque se o poder econômico estivesse concentrado em uma única mão haveria um poder absoluto sobre os cidadãos. Os liberais consideram que existindo inúmeros proprietários o poder econômico estará dividido, enquanto o poder político estará concentrado. Neste sentido o autor afirma que o poder exercido por um multimilionário sobre uma determinada pessoa é menor do que o poder coercitivo exercido por um simples funcionário. Com isso os neoliberais procuram ocultar a importância do poder econômico e o fato de que num sistema capitalista o poder político está a serviço da manutenção deste sistema.
Hayek afirma que a propaganda anticapitalista fez com que crescesse uma geração para a qual "o espírito da livre iniciativa é apresentado como indigno e o lucro como imoral, onde se considera exploração dar emprego para 100 pessoas". (6)
Expressando seu individualismo metodológico e sua visão elitista o autor considera que são os piores homens que chegam ao poder, entre outras razões porque "as camadas em que os padrões morais e intelectuais são inferiores e prevalecem os instintos mais primitivos e 'comuns' é onde se encontra um alto grau de uniformidade e semelhança de pontos de vistas". É, no dizer dele, "o mínimo denominador comum que une o maior número de homens". (7) Com esta formulação o autor evidencia seu profundo elitismo e seu desprezo para com o povo.
Criticando aquelas correntes que defendem o ponto de vista de que não há uma separação entre o poder econômico e político e que o Estado deve ser um instrumento na construção de um desenvolvimento mais justo e mais harmônico, Hayek considera que esta divisão é a garantia da liberdade individual. Na realidade, é a garantia da preservação da propriedade privada sem qualquer tipo de restrição. Ele argumenta que a "substituição do poder econômico pelo político" é a substituição de um poder limitado por outro de que ninguém escapa.
Falando na questão dos monopólios, considera que estes crescem com o apoio do Estado e dos trabalhadores:
recente crescimento do monopólio resulta em grande parte de uma colaboração internacional entre o capital organizado e o trabalho organizado, em que os grupos privilegiados de trabalhadores compartilham dos lucros do monopólio em detrimento da comunidade e, em especial, das camadas mais pobres". (Op. Cit. p. 181)
No final do livro, numa evidência de que suas idéias representam um retorno às velhas concepções liberais, afirma: "O princípio orientador – o de que uma política de liberdade para o indivíduo é a única política que de fato conduz ao progresso permanece tão verdadeiro hoje como o foi no século XIX". (8)
Milton Friedman e Capitalismo e liberdade
Filho de uma família de imigrantes do império austro-húngaro, Milton Friedman nasceu nos Estados Unidos em 1912. Em 1932, no auge da Grande Depressão, concluiu seus estudos na Universidade de Rutgers, em New Brunswick, tendo se destacado em matemática e economia. Em seguida foi para a Universidade de Chicago onde terminou seu mestrado em 1933. Ali se destacava Frank Knight que, no Departamento de Economia, defendia teses conservadoras.
Em trabalho realizado no Escritório Nacional de Pesquisas Econômicas, em 1948, Friedman desenvolve suas idéias sobre a importância da política monetária. Manifesta-se contra qualquer medida governamental de natureza fiscal ou monetária para contrabalançar os ciclos econômicos. Em 1950, "uma versão modificada da teoria quantitativa é apresentada pela Escola de Chicago, em oposição às teses keynesianas. Na verdade, essa reformulação teórica, além dos aspectos técnicos, foi basicamente devido ao espírito prevalecente de defesa do laissez-faire da Universidade de Chicago". (9)
Em 1964 participou, como consultor econômico da campanha do candidato ultradireitista Barry Goldwater à Presidência da República. Entre 1969 e 1970 exerceu influência no governo Nixon.
Foi sob a orientação de Milton Friedman que a experiência neoliberal teve início, no Chile, dez anos antes de sua implantação na Inglaterra, sob o governo de Margareth Tatcher. O conflito entre a liberdade para o mercado e a democracia ficou patente na experiência chilena, onde a democracia foi sacrificada a pretexto de se assegurar a recuperação econômica do país.
Milton Friedman tornou-se o mais importante representante do monetarismo e suas concepções ganharam a hegemonia do pensamento econômico nos dias atuais. É um fiel seguidor de F. A Hayek. Em 1976 ganha o Prêmio Nobel de Economia.
Um dos mais importantes livros de Milton Friedman é Capitalismo e liberdade, publicado pela primeira vez em 1962. No prefácio da edição de 1982, o autor fala das dificuldades de aceitação de suas idéias em virtude da hegemonia conquistada pelas concepções keynesianas. Todavia, destaca uma "mudança no quadro intelectual no último quarto de século", em decorrência da aceitação do seu livro, Free to Choose, publicado em 1980, e que seguia as linhas mestras de Capitalismo e liberdade. A mudança do clima intelectual se deu "pela experiência e não pela teoria ou pela filosofia", destacando que haviam fracassado as experiências da Rússia e da China, que eram a "esperança das classes intelectuais".
Ele acentua, também, que nos Estados Unidos os programas de reformas visando o bem-estar, que incluíam programas de habitações populares, apoio aos sindicatos, ajuda federal à educação, atividade produtiva, "estavam indo por água abaixo". Como expressão desta mudança, no campo político, o autor ressaltou que a derrota fragorosa de Barry Goldwater em 1964 foi seguida de uma virada com a vitória de Ronald Reagan em 1980, sendo que os dois tinham as mesmas idéias.
Na introdução do livro, ele sintetiza seu conteúdo da seguinte forma:
"Seu tema principal [do livro] é o papel do capitalismo competitivo a organização da maior parte da atividade econômica por meio da empresa privada operando num mercado livre – como um sistema de liberdade econômica é condição necessária à liberdade política. Seu tema secundário é o papel que o governo deve desempenhar numa sociedade dedicada à liberdade e contando principalmente com o mercado para organizar a sua atividade econômica". (FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade. 2" ed., p. 5. Rio de Janeiro: Editora Artenova, 1985)
O autor procura resgatar o sentido original das concepções liberais como "doutrinas que dizem respeito ao homem livre". Para ele o liberal do século XIX considerava a "extensão da liberdade como meio mais efetivo de promover o bem-estar e a igualdade", enquanto o liberal do século XX considera "o bem-estar e a igualdade ou como pré-requisitos ou como alternativas para a liberdade" e, com tais objetivos, fizeram renascer as políticas de intervenção do Estado combatidas pelo liberalismo clássico. O sentido geral da obra de Friedman é um retorno ao liberalismo do "laissez- faire", da mesma forma que a de Hayek.
Ele afirma que a liberdade econômica existente no capitalismo é um importante meio para assegurar a liberdade política, já que "separa o poder econômico do poder político". Friedman estabelece, portanto uma clara relação entre a liberdade econômica (livre concorrência) e a liberdade política. E mais, considera que o único sistema que compatibiliza liberdade com democracia é o sistema capitalista, e que "uma sociedade socialista não pode ser também democrática" .
Para o autor só há dois meios de coordenar a atividade econômica: ou através da coerção, "a técnica do Exército e do Estado totalitário moderno", ou a técnica da cooperação voluntária dos indivíduos, "a técnica do mercado". Ele parte do princípio de que a troca permite a coordenação sem coerção, pois ambas as partes se beneficiam dela. Falando sobre o papel do Estado afirma:
"A existência de um mercado livre não elimina, evidentemente a necessidade de um governo. Ao contrário, um governo é essencial para a determinação das 'regras do jogo' e um árbitro para interpretar e pôr em vigor as regras estabelecidas. O que o mercado faz é reduzir sensivelmente o número de questões que devem ser decididas por meios políticos – e, por isso, minimizar a extensão em que o governo tem de participar diretamente do jogo". (Op. cito p. 23)
Para Friedman o mercado garante a liberdade econômica, mas tem outras implicações já que a preservação da liberdade implica na dispersão do poder assegurada pelo sistema da propriedade privada. Para ele o poder de coagir é a ameaça fundamental à liberdade. Enquanto o poder econômico pode ser dispersado, o poder político "é mais difícil de descentralizar" .
Ele reafirma o ponto de vista de que a separação entre poder econômico e político permite ao primeiro controlar o segundo. Diz que numa sociedade de mercado livre é suficiente ter fundos para propor mudanças radicais na estrutura da sociedade, o que não poderia ser feito numa sociedade socialista. Para isto seria necessário "apenas" convencer algumas pessoas ricas a lançarem qualquer campanha.
Discutindo o papel do governo numa sociedade livre, ele afirma que o liberal defende a discussão e a cooperação voluntária para se chegar a um objetivo comum, considerando inadequado o uso da coerção. Afirma que existem alguns problemas indivisíveis, como a proteção do indivíduo e da nação contra a coerção, onde a ação individual através do mercado não consegue dar respostas a tais problemas, exigindo a "utilização de canais políticos para reconciliar as diferenças".
Há, portanto, segundo o autor, áreas onde as questões não podem ser tratadas em termos de mercado. Nesse sentido o governo deve exercer o papel de legislador e árbitro, garantindo o cumprimento das "regras do jogo", regulando as diferenças sobre o seu significado e modificando-as quando necessário. Trata-se do respeito às "regras do jogo" capitalista, da defesa da propriedade privada e da economia de mercado.
Discutindo a questão do monopólio técnico, o autor admite que, nestes casos, justifica-se "um monopólio público de fato", como no caso do serviço postal. Todavia, mesmo neste caso não se deve impedir que outros atuem nesta área até porque se o monopólio é técnico ninguém será capaz de competir com o governo. Identificando os limites do papel do governo, afirma:
"Um governo que mantenha a lei e a ordem; defina os direitos de propriedade; sirva de meio para a modificação dos direitos de propriedade e de outras regras do jogo econômico, julgue disputas sobre a interpretação das regras; reforce contratos, promova a competição, forneça uma estrutura monetária; envolva-se em atividades para impedir monopólio técnico e evitar os efeitos laterais considerados como suficientemente importantes para justificar a intervenção do governo; suplemente a caridade privada e a família na proteção do irresponsável, quer se trate de um insano ou de uma criança". (Op. cito p. 39)
A estas atividades reduz o autor o papel do governo, listando uma série de atividades nos Estados Unidos que não deveriam estar na esfera governamental. Entre elas destaca o controle dos aluguéis, a fixação de salários mínimos ou preços máximos legais, programas de habitação, serviço militar em tempo de paz e proibição legal de transporte de correspondência com fins lucrativos.
Desenvolvendo sua concepção monetarista, o autor afirma que a "Grande Depressão, de modo semelhante a outros períodos de grande desemprego, foi causada pela incompetência do governo – e não pela instabilidade inerente à economia privada". (10) Coerente com sua defesa intransigente do mercado, o autor imputa ao governo os problemas relacionados à economia norte-americana no período da Grande Depressão. E, por isso mesmo, defende uma redução do papel do governo na atividade econômica. Considera que as áreas mais importantes da política governamental para a estabilidade econômica são a política monetária e a política fiscal. Todavia foi exatamente a política keynesiana, com a intervenção do Estado na economia que permitiu a reativação da economia e o controle da crise capitalista.
Perguntando-se como poderia se estabelecer um sistema monetário estável "livre da influência do governo" o autor responde dizendo ser necessário um governo de leis e não de homens, com a fixação de normas para a direção da política monetária. Falando da norma legislativa o autor ressalta a necessidade de "uma diretriz legislativa às autoridades monetárias para manterem um nível de preços estável". (11) Sobre as dificuldades decorrentes de desequilíbrios na balança de pagamentos dos Estados Unidos, afirma que a ameaça mais séria para a liberdade econômica do país se relaciona com a adoção de controles econômicos cada vez mais extensos para revolver aquele problema.
O autor defende o ponto de vista de que a taxa de câmbio flutuante permite um comércio de mercadorias e serviços (internacional) livre. A taxa de câmbio fixa, ao contrário, não permite. Falando da política fiscal destaca que o aumento das despesas governamentais deu-se em decorrência da aceitação da idéia de que o governo deveria ter um papel mais importante em assuntos "privados e econômicos", triunfo da filosofia do Estado do bem-estar social. Argumenta que desde o New Deal procura-se justificar a expansão da atividade do governo para, através dos investimentos governamentais, ativar a economia e gerar mais empregos. Friedman destaca que uma política fiscal adequada deveria assegurar um programa de investimentos com base em taxas e impostos que garantam as despesas programadas. Aí a crítica essencial se relaciona com gastos públicos maiores do que os recursos disponíveis.
Friedman diz que o capitalismo conduz à redução da discriminação de cor e religiosa ao afirmar:
"A manutenção das regras gerais da propriedade privada e do capitalismo constituíram a principal fonte de oportunidades para os negros e lhes permitiu fazer maiores progressos do que fariam em outras circunstâncias. Para dar um exemplo mais geral, os preservadores da discriminação em qualquer sociedade são as áreas de características mais monopolísticas, enquanto a discriminação contra grupos em termos de cor ou religião é menor nas áreas onde existe maior liberdade de competição".
(Op. cito p. 101)
Com isso ele pretende justificar sua opinião de que a autonomia da esfera econômica conduz à liberdade, pois a eficiência econômica, a busca do lucro, superaria aspectos discriminatórios. Assim "o comprador de pão não sabe se ele foi feito de trigo cultivado por um homem branco ou negro, por um cristão ou judeu". (12)
Falando das comissões criadas para estudar a discriminação nos empregos por motivos de raça, cor ou religião, o autor faz uma crítica afirmando tratar-se de uma interferência na liberdade individual de estabelecer contratos de trabalho. Na verdade, sob a alegação de respeito à liberdade individual e de que o mercado supera as discriminações, ele de fato se coloca contra medidas antidiscriminatórias. E evidencia sua posição contrária a qualquer tipo de intervenção estatal não somente na atividade econômica, mas também nas relações sociais.
Friedman critica as leis do direito do trabalho que exigem o registro do trabalhador num sindicato como condição para que ele possa ser contratado. Criticando o que chama de monopólio do trabalho, propõe uma "ação anti-trusteínais efetiva e mais ampla no campo do trabalho". (13) Enquanto procura minimizar o significado do monopólio dos grupos econômicos, propõe medidas radicais contra os trabalhadores. Reconhecendo a existência dos monopólios diz, no entanto, que:
"O monopólio dá origem a duas classes de problemas para a sociedade livre. Primeiro, a existência do monopólio significa uma limitação nas trocas voluntárias através da redução das alternativas disponíveis aos indivíduos. Segundo, a existência do monopólio levanta a questão da 'responsabilidade social', como é em geral denominada, do monopolista". (Op. Cit. p. 111)
Todavia a limitação do poder do monopólio é entendida pelo autor como uma doutrina que "destruiria uma sociedade livre". Ele reconhece que a competição é um "tipo ideal", mas que de fato não existe a competição pura. Procurando minimizar a importância dos monopólios, afirma:
"Tenho a impressão de que existe convicção bastante geral de que o monopólio é bem mais importante do que sugerem os estudos feitos, e que tem crescido consistentemente nas últimas décadas. Uma das razões para essa crença errada é a tendência a confundir volume absoluto com volume relativo. À medida que a economia foi crescendo as empresas tornaramse maiores em tamanho absoluto. Tal fato foi tomado como indicando que possuem agora fatia maior do mercado, quando o mercado pode também ter crescido de modo ainda mais rápido" (Op. cito p. 113)
Ele afirma que existem três tipos de monopólios, destacando o monopólio da indústria, o monopólio do trabalho e o monopólio produzido pelo governo. Com isto confunde questões de natureza diferente para justificar a liberdade completa do capitalista para explorar o trabalhador. Procura minimizar o significado do monopólio na indústria afirmando que ele é relativamente pouco importante "do ponto de vista da economia como um todo". E, ao mesmo tempo, procura ressaltar a importância do que de chama monopólio do trabalho afirmando: "Enquanto não parece ter havido nenhum aumento significativo na importância do monopólio empresarial nos últimos cinqüenta anos, houve certamente aumento da importância do monopólio do trabalho" (14).
Como causas geradoras do monopólio o autor destaca o aspecto técnico, o papel do governo e o conluio privado. Sobre este último aspecto cita Adam Smith quando diz: "As pessoas do mesmo ramo de negócios raramente se encontram, mesmo para festas ou diversões, mas a conversação termina numa conspiração contra o público ou em algum acordo para aumentar os preços". ( Op. cito p. 121)
Todavia termina por afirmar que tais arranjos "são instáveis e de breve duração" a não ser que tenham assistência do governo. Ou seja, em seu ponto de vista os monopólios não decorrem essencialmente do próprio sistema capitalista, mas, sobretudo da ação governamental.
Discutindo a questão da distribuição de renda, considera que se consolidou neste século uma opinião sobre a necessidade do Estado promovê-Ia como um objetivo social. Friedman questiona, todavia, a razão ética para justificar esta intervenção para promover a igualdade, afirmando:
"O princípio ético que justificaria diretamente a distribuição da renda numa sociedade de mercado livre seria 'a cada um de acordo com o que ele e seus instrumentos de trabalho produzem'. Mesmo a operação deste princípio exigiria a intervenção do Estado. Os direitos de propriedade são questões de lei e de convenções sociais". (Op. cito p. 147)
Procurando justificar as desigualdades em função de capacidades naturais ou da herança, o autor reconhece que a ética capitalista não é aceitável, mas revela ser difícil para ele "justificar qualquer princípio alternativo". Fugindo do princípio ético, ele diz preferir outro como "corolário da liberdade". (15)
Falando sobre a desigualdade afirma:
"A alocação de recursos sem compulsão é o papel mais importante, no mercado da distribuição de acordo com o produto. Mas não é o único papel instrumental da desigualdade resultante. Já vimos no capítulo 1 o papel que a desigualdade desempenha no fornecimento de focos independentes de poder para contrabalançar a centralização do poder político, bem como o seu papel na promoção da liberdade civil, por meio de 'patronos' para financiar a divulgação de causas impopulares ou simplesmente de idéias novas ( … ) permite que a distribuição ocorra de modo impessoal, sem necessidade de uma 'autoridade' – uma faceta especial do papel geral do mercado de permitir cooperação e coordenação sem coerção". ( Op. cito p. 153)
Após criticar o chamado "seguro social", o autor critica também as leis de salário mínimo, os subsídios à agricultura, a assistência médica para grupos particulares, programas de ajuda. Friedman procura analisar a questão da pobreza afirmando que a empresa privada reduziu-a. Prega o caminho da "caridade privada" para combatê-Ia, como sendo, em muitos aspectos, o mais desejável. (16) Afirmando que alguns podem argumentar que a caridade privada seria insuficiente para solucionar o problema, ele considera que o caminho seria a adoção de medidas que não distorcessem o mercado, como a adoção do imposto de renda negativo. Se uma pessoa receber abaixo de um limite fixado, ele terá um subsídio até atingir aquele nível.
Falando da relação entre liberdade e igualdade o autor afirma que a igualdade é um produto secundário numa "sociedade livre" e que a igualdade entra em conflito com a liberdade quando se pretende "tirar de uns para dar para outros".
Milton Friedman termina seu livro falando da necessidade de "persuadirmos nossos concidadãos de que as instituições livres oferecem uma via mais segura, embora às vezes mais lenta, para a obtenção dos fins que perseguem, em comparação com a coerção do Estado". (17)
Aldo Arantes é deputado federal pelo PCdoB/GO, advogado e mestrando em Ciência Política pela UnB.
Notas (*)
(1) ANDERSON, Perry. "Balanço do neoliberalismo", p. 9, in Boron, Atílio e Sader, Emir (orgs.) – Pós-neoliberalismo. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1995.
(2) HAYEK, F. A. O caminho da servidão, 5a• ed., p. 40. Editora Instituto Liberal.
(3) Ibid; p. 45.
(4) Ibid; p. 51.
(5) Ibid. p. 77.
(6) Ibid. p. 131.
(7) Ibid. p. 137.
(8) Ibid. p. 214.
(9) COLASUONNO, Miguel. "Introdução", p. XII. FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade. 2a• ed. Rio de Janeiro: Editora Artenova, 1985.
(10) FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade. 2a• ed. p. 43. Rio de Janeiro: Editora Artenova, 1985.
(11) Ibid. p. 56 .
(12) Ibid. p. 102.
(13) Ibid. p. 106.
(14) Ibid. p. 115.
(15) Ibid. p. 150.
(16) Ibid. p. 173.
(17) Ibid. p. 185.
(*) A bibliografia utilizada neste trabalho será publicada juntamente com a parte final desta série.
EDIÇÃO 60, FEV/MAR/ABR, 2001, PÁGINAS 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27