Para uma tomada de consciência de uma nova etapa educacional com a Lei de Diretrizes e Bases
O texto a seguir, que aqui se divulga em primeira mão, é de uma conferência pronunciada por Anísio Teixeira, cujo texto (mimeografado) encontrei em 1999. Acredita-se que a conferência tenha sido pronunciada no ano de 1962, no auge do movimento, iniciado sob sua liderança, em torno do ano de 1951, visando à organização de um sistema nacional de educação.
A razão para estimar-se que a conferência tenha sido pronunciada no ano de 1962 decorre do fato de o momento ter sido, certamente, depois da entrada em vigor da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (dezembro de 1961) e antes da aprovação do I Plano Nacional de Educação (setembro de 1962).
Textos com um conteúdo semelhante, da autoria de Anísio, foram publicados na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, havendo inclusive um parecer com um conteúdo bem próximo ao aqui apresentado, com que ele fez aprovar, no Conselho Federal de Educação, o Plano Nacional de Educação, em setembro de 1962. Esse parecer tornou-se a terceira parte de seu mais famoso livro: Educação não é privilégio, a partir da 2ª edição.
Mas o que há de totalmente novo nessa conferência é uma extensa parte inicial dedicada a referências históricas, bem ao estilo do Anísio Teixeira político, que costuma fazer uso de eficientes recursos de oratória, em geral de caráter histórico, para buscar adesão para suas elaboradas propostas de educação pública. No caso, utiliza-se de duas longas citações: a primeira, do historiador William Gibbon, que trata da situação da Europa dois anos antes da Revolução Francesa, quando ele erra redondamente ao avaliar que a estabilidade da Europa estivesse longe de qualquer risco, e a segunda, de Geoffrey Barraclough, diz respeito ao impacto da educação sobre o desenvolvimento social e econômico no século XX.
João Augusto Lima Rocha (UFBA)
CONFESSO que uma reunião como esta me comove muito mais do que se poderia imaginar. Tinha a impressão que à medida que envelhecesse diminuísse a minha capacidade emotiva; venho verificando que será talvez o contrário; cada vez me sinto mais sensível ao terrível drama educacional brasileiro.
Peço aos meus colegas um pouco de paciência, porque vou preceder as considerações e observações que desejo fazer, com duas citações, uma delas extremamente remota.
Há 180 anos, o grande historiador inglês, William Gibbon, autor de Declínio e Queda do Império Romano, encerrava a sua magnum-opus levantando uma questão. Esta parte do seu livro deve ter sido escrita em 1785 e publicada em 1787, dois anos antes da Revolução Francesa. E vejam o que William Gibbon, que representava o que de melhor havia no pensamento liberal da Europa, perguntava: "- Poderia a civilização vir jamais a sofrer novamente colapso igual ao do Império Romano?". A sua resposta, que ilustra, admiravelmente, o estado de espírito da Europa, naquele tempo, foi a seguinte:
" Esta horrível revolução -a queda do Império Romano – poderá ser utilmente aplicada na proveitosa instrução da era presente. É dever do patriota preferir e promover o interesse exclusivo e de glória de seu país natal, mas um filósofo pode se permitir a liberdade de alargar a sua visão e considerar a Europa como uma grande república, cujos diversos habitantes atingiram quase o mesmo nível de polidez e de cultura. O equilíbrio das forças continuará a flutuar e a prosperidade de nosso próprio reino ou dos reinos vizinhos será, alternadamente, exaltada ou abatida. Mas tais acontecimentos parciais não podem ferir, na essência, o nosso estado geral de felicidade. O sistema de artes, de leis e costumes distingue, vantajosamente, acima do resto da humanidade, o mundo europeu e as suas colônias; as nações selvagens do Globo são os inimigos comuns das sociedades civilizadas. E podemos indagar com ansiosa curiosidade, se a Europa está ainda ameaçada de uma repetição das calamidades que vieram outrora ferir de morte as armas e as instituições de Roma. Talvez as mesmas reflexões possam ilustrar a queda daquele poderoso império e explicar as causas prováveis da nossa atual segurança.
Os romanos viviam na ignorância da extensão do seu perigo e do número dos seus inimigos; além do reino do Danúbio estavam os países do norte da Europa e da Ásia, repletos de tribos de inumeráveis caçadores e de pastores, fortes, vorazes e turbulentos, atrevidos nas armas e impacientes por arrebatar os frutos da indústria. O mundo bárbaro estava agitado pelo febril impulso da guerra e a paz das Gálias e da Itália era abalada pelas revoluções distantes da China. Os hunos, que fugiam perseguidos pelo inimigo vitorioso, dirigiam sua marcha para o Oeste, e a torrente se avolumava com o acréscimo gradual de cativos e de aliados. As tribos em fuga, que se rendiam aos hunos, assumiam, por sua vez, o espírito de conquista. A coluna sem fim de bárbaros carregou, por fim, sobre o Império Romano, com todo esse peso acumulado. Se os primeiros eram destruídos, o espaço vazio se enchia imediatamente com novos assaltantes. Tais formidáveis emigrações que já não iriam fruir do norte. O longo repouso que tem sido imputado à diminuição da população, é a feliz conseqüência do progresso das artes e da agricultura. Ao invés de umas rudes aldeias, tenuamente dispersas pelas suas florestas e pântanos, a Alemanha apresenta hoje uma cadeia de 2.300 cidades fortificadas; estabeleceram-se, sucessivamente, os reinos cristãos da Dinamarca, da Suécia, e da Polônia. Os mercadores hanseáticos, com os cavaleiros teutônicos, estenderam suas colônias do Golfo do Báltico, até o Golfo da Finlândia; e do Golfo da Finlândia até o Oceano Oriental, a Rússia assume, agora, a forma de um poderoso e civilizado império. O arado, o tear e a forja são introduzidos nas margens do Volga e do Lena e as mais ferozes das hordas tártaras aprenderam a tremer e a obedecer. O império de Roma estava firmemente estabelecido pela singular e perfeita civilização de seus membros, mas essa união era conseguida à custa da perda da liberdade nacional e do espírito militar. E as províncias, servis e destituídas de vida e movimento esperavam a sua segurança de governadores e tropas mercenárias, dirigidas por ordens de uma corte distante. A felicidade de centenas de milhões de criaturas humanas, os súditos do Império Romano, dependia do mérito pessoal de um ou dois homens, talvez crianças, cujos espíritos eram corrompidos pelo luxo, pelo poder de posse e pela educação.
A Europa está hoje dividida – vejam a Europa do século XVIII em doze reinos poderosos, embora desiguais; três respeitáveis repúblicas e vários estados menores, embora independentes. As possibilidades de talento entre reis ou ministros estão multiplicadas, no mínimo, pelo número de seus governantes. Um Juliano, Frederico, "O Grande", da Prússia; o Semíramis, Catarina, "A Grande", da Rússia, pode reinar ao norte, enquanto Arcades e Honório, Luís XVI, na França, e Carlos II, na Espanha dormitam de novo nos tronos da casa de Bourbon. Os abusos da tirania soam restringidos pela múltipla influência do receio e da vergonha; as repúblicas adquiriram ordem e estabilidade; as monarquias embeberam-se dos princípios de liberdade ou, pelo menos, de moderação. E certo senso de honra e de injustiça foi introduzido, mesmo nas mais defeituosas constituições, pelos costumes gerais do tempo. Na paz, o progresso do saber e da indústria é acelerado na emulação de tantos rivais ativos. Na guerra, as forças européias são exercitadas em competições moderadas e indecisas.
Quantos gostariam de voltar a essa época! Que um conquistador selvagem irrompesse dos desertos da Tartária, teria ele de vencer, sucessivamente os robustos camponeses da Rússia, os numerosos exércitos da Alemanha, os galantes nobres da França e os intrépidos homens livres da Britânia, os quais talvez se unissem numa confederação para a defesa comum. Pudessem os bárbaros, vitoriosos, levar a escravidão e a desolação tão longe quanto o Oceano Atlântico, e dez mil navios transportariam para além de sua perseguição os remanescentes da sociedade civilizada, e a Europa reviveria e floresceria no mundo americano que se acha repleto das suas colônias e instituições. O frio, a pobreza e uma vida de perigos e fadigas fortalecem o vigor e a coragem dos bárbaros. Em todos os tempos, eles têm oprimido as nações polidas e pacíficas da China, da Índia, da Pérsia, que negligenciaram, e ainda negligenciam, equilibrar esses poderes naturais com os recursos da arte militar. Os estados guerreiros da antigüidade, a Grécia, a Macedônia e Roma, educaram uma raça de soldados, exercitaram seus corpos, disciplinaram a sua coragem, multiplicaram as suas forças por evoluções regulares e converteram o ferro que possuíam em armas fortes e úteis. Mas essa superioridade, insensivelmente, decaiu com as suas leis e costumes e a Carta Política de Costantino e seus sucessores armou e instruiu as ruínas do Império no rude valor dos bárbaros mercenários. A arte militar transformou-se com a invenção da pólvora e habilitou o homem a comandar os dois mais poderosos agentes da natureza: o aço e o fogo. A matemática, a química, a mecânica, a arquitetura foram aplicadas ao serviço da guerra e as partes adversárias opunham, umas às outras, os mais elaborados efeitos de ataque e defesa. Os historiadores podem, indignadamente, observar que os preparativos de um sítio bastariam para a fundação e manutenção de uma nova colônia, de uma florescente colônia. Todavia, como nos poderemos aborrecer pelo fato de constituir a destruição de uma cidade, trabalho de custo e dificuldade? Nem nos devem agradar as circunstâncias que permitem que um povo industrioso seja protegido por aquelas artes que sobrevivem e suprem a decadência da virtude militar. O canhão e as fortificações foram agora uma barreira inexpugnada contra o cavalo tártaro, e a Europa está segura, seguríssima, contra qualquer futura irrupção de bárbaros; antes que possam eles conquistar, devem cessar de ser bárbaros."
E termina, então este trecho que ora citamos dizendo que se não bastam estas conjecturas, poderemos ainda consolar-nos com a crença no progresso indefinido da natureza humana e a capacidade de virtude e aperfeiçoamento do homem.
Assim falava, em 1787, um pensador cujo sentimento do passado de tal modo dominava, e o impedia de ver e sentir o futuro. Creio que podíamos dividir os homens exatamente entre aqueles que assim tem a capacidade de sentir o passado, chegando a admitir que algo aconteça de modo diferente do que vinha acontecendo no passado, e os que são capazes de sentir e prever o futuro.
Quando William Gibbon, na sua admirável segurança, imagina que jamais outra invasão de bárbaros poderia vir a acontecer, dormitava naqueles próprios reinos, felizes e seguros, um outro barbarismo, o barbarismo da pobreza que, dois anos após iria ensangüentar a Europa na sua maior Revolução. Nada disso podia sentir nem imaginar um dos homens mais inteligentes e cultos da época.
Outros homens são os que têm o sentido do futuro e vêem o que está para acontecer, não o que já aconteceu. O meu maior mestre, John Dewey, recebeu, aos 70 anos de idade, uma grande homenagem de aniversário. E, em seu pequenino discurso, assim se exprimiu:
"Nada mais quis ser do que um homem de certo modo sensível às coisas em torno de mim. Capaz de certo sentimento a respeito das coisas que estava passando e iam morrer e das coisas que estavam nascendo e iam crescer. E nesta base previ certas coisas que iam acontecer no futuro. Ao completar os meus 70 anos oferecem meus amigos uma festa de aniversário em que vêm dar-me crédito por haver previsto as coisas que iam acontecer e que agora começam a passar."
Desse modo, reconhecia ele que, embora um profeta para sua época, também suas idéias iriam passar pelo mesmo declínio e outras iriam sucedê-Ias. A segunda citação é de outro conservador, como William Gibbon. Trata-se do professor Geoffrey Barraclough, que embora nada tenha de revolucionário, tem uma estranha sensibilidade para o que está acontecendo e o que vai acontecer. Em dezembro de 1960, escreveu uma página que vou procurar resumir:
Considerando-se que jamais a educação se defrontou com desafios iguais aos que irá defrontar nestas últimas quatro décadas do nosso século; considerando que as mudanças em curso excedem incomensuravelmente tudo o que tenha ocorrido no Renascimento, na época das grandes descobertas e no período posterior à Revolução Industrial, e se processarão com tal velocidade que todos os processos conhecidos de lenta adaptação da educação às mudanças estão superados; que as mudanças em 1945 e 1960 foram apenas o começo do que esta por vir e já exigiram reajustamentos consideráveis, a questão hoje é: "Como, dentro do curto período que separa a ignorância infantil da ignorância adulta, poderá a educação enfrentar as explosivas novas dimensões que, se viermos a sobreviver – sente-se que ele não está tão seguro quanto Gibbon – moldarão as nossas vidas no último quartel do século XX?"
Traça, então, o quadro não do mundo governado pela tecnologia – dizer isso já seria uma banalidade -, mas de um mundo governado pela automação, em que o trabalho humano sobre o qual sempre repousou a civilização, mais do que sobre as armas de Gibbon, será uma atividade em declínio, em que o corrente credo de produtividade estará superado e a força decisiva será a eletrônica. Os computadores substituirão o cérebro humano e o pensamento e as decisões, mesmo nos grandes problemas da paz e da guerra, serão resultados dos impulsos elétricos daqueles computadores. Mas, além dessas mudanças, que afetarão a vida cotidiana de cada um de nós, e que ainda não se fizeram óbvias, já estamos todos conscientes da grande revolução demográfica, pela qual a gravitação do mundo passará da dominação da raça branca para a dos povos de cor, inclusive a das populações mistas da América Latina, concluindo com esta afirmação:
"A questão tão ansiosamente debatida quinze anos atrás – quero dizer, em 1945 de saber se iria o mundo cair sob o tacão da URSS ou dos EUA ou se repartido entre as duas superpotências, perdeu seu sentido. Hoje, podemos ver na linha do horizonte o surto dos novos centros de influência – Pequim, Nova Delhi, talvez, eventualmente, Brasília – os quais, na medida em que o século corra para o seu final, estarão esperando deslocar Moscou e Washington, como Washington e Moscou deslocaram Paris e Londres. Ao mesmo tempo a África e o mundo árabe vêem-se sacudidos por nacionalismos potencialmente tão sequiosos de sangue como os que lançaram a Europa no melting-pot de 1914. O mundo à nossa frente tem potencialidades que jamais foram vistas – pois não é o que o homem logrou afinal o velho sonho de conquistar os céus? – mas apresenta também subcorrentes de violência e irracionalidade mais cruas e apocalípticas do que tudo que mesmo Blake poderia imaginar. Neste mundo explosivo, composto, como sempre, de forças divinas e forças satânicas, se a educação quiser conservar a sua missão de força de reajustamento e equilíbrio terá de livrar-se de todo passado e abraçar esse mundo novo com ambos os braços."
Trouxe essas duas citações que me parecem profundamente típicas. De um lado, um pensador sensível ao futuro; do outro lado, um pensador sensível só ao passado. Aqui no Brasil temos muitos William Gibbon; somos, talvez, até umas das pátrias privilegiadas dos Gibbon. Somos muitos, o que nos faz sentir seguros e tranqüilos, calmamente convencidos de que não temos senão de repetir o que já foi feito, sendo possível fazer, se antes não já houvemos feito.
Insusceptíveis de prever o que possa acontecer, são sempre tomados de surpresa ante o que vem a acontecer. E, curiosamente, logo que o novo acontece fazem-se conservadores desse novo. Já agora é mais uma tradição que dificilmente há de mudar. Sejamos contudo razoáveis. Já há muitos entre nós que sentem o futuro e, como Barraclough, julgam que temos de esquecer o passado e, abraçar com ambas as mãos o futuro. Pois não é verdade que o país está mudando e mudando aceleradamente? A partir de 1945, fizemos a nossa revolução política. Mas, uma coisa seria levar a efeito essa revolução de métodos políticos, nos sossegos do século XIX, com uma ordem econômica tranqüila e uma sociedade que, embora ao tempo julgada tumultuária, hoje parece-nos acadêmica e requintada como uma edição popular do século XVIII, e outra concretizar, como estamos concretizando, o governo representativo, o voto livre e verdadeiro, em plena efervescência social, com a transformação econômica, a súbita participação de todos nos benefícios da civilização e a eclosão de seções novas, populares e inesperadas, na conjunção de forças em operação na vida do país.
A verdade é que estamos em pleno processo de integração social, já não bastando a mudança de estrutura política mas impondo-se a mudança de estrutura econômica e da estrutura social. E a essas mudanças terão de suceder as mudanças de estrutura agrária, de estrutura tributária e de estrutura educacional.
Apesar de havermos estabelecido a Federação, só muito modestamente demos começo a uma melhor distribuição da renda tributária do país. A responsabilidade de administrar as populações brasileiras está com os municípios e os estados, mas estes pouco recebem para dar cumprimento a suas funções e deveres. A União continua com parcela agigantada da arrecadação total do país, deixando aos estados e, sobretudo, aos municípios parcelas diminutas. Deste modo, não foi possível aproveitar-se a descentralização federativa e a Nação continua lembrando antes um império, com suas colônias, do que uma real federação de estados.
Por isso mesmo, é de suma importância o fato de termos afinal aprovado a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Esta lei não é apenas uma lei de educação, mas a reforma de base de nossas estruturas educacionais para nos adaptarmos às forças novas que estão integrando e unificando a Nação.
O plano, assim, que aqui viemos debater não é propriamente um plano pedagógico, nem um simples plano administrativo, mas um plano político de descentralização e de reconhecimento do estado de integração de nossa sociedade, para o cumprimento de suas tarefas básicas.
Sobretudo é um plano diretor para todos os 22 governos estaduais e mais os 3.300 governos municipais e, em especial, para todo o povo brasileiro dividido entre as lideranças de todos esses governos. Com efeito, a base de operações para o plano é o município, já que não pode ser o distrito municipal. É ali que está a população a ser convocada para a tarefa de emancipação educacional. A Lei de Diretrizes e Bases prevê a chamada da classe de sete anos, na área do governo municipal. Este é um ponto de contato legal entre o governo do município e o governo estadual, que já não pode ser afastado, e que exigirá um núcleo administrativo estadual de educação em cada município. Esses dois órgãos – a direção do ensino municipal e a direção, no município, do ensino estadual- vão trabalhar juntos em uma tarefa comum. Depois, o órgão de direção geral da educação estadual e os órgãos da direção federal, por sua vez, só irão se encontrar no plano nacional.
A máquina propulsora do plano é, pois, complexa e envolve as três ordens de governo. Por isto mesmo, o plano de educação se terá de fazer por município. Que será esse plano? Em essência um plano de oferta de oportunidades educacionais crescentes à população do município. As suas etapas seriam as seguintes: um centro de educação em cada vilarejo de menos de 500 habitantes, com uma escola primária, os agentes postais de correio, telefone ou telégrafo, o agente social rural e um começo de biblioteca; uma escola primária organizada por séries escolares, em todas as localidades de mais de de 500 até 1.000 habitantes, para dar educação até a quarta série, e constituir-se também em um centro social, com biblioteca e sala de reuniões para os adultos; escolas primárias de seis séries em todas as localidades de mais de 1.000 até 2.000 habitantes; centros educacionais, com escolas primárias de seis anos, escola-parque e ginásios em todas as cidades de mai.s de 2.000 até 5.000 habitantes; escola primária de seis séries, escola-parque, ginásios e colégios em todas as cidades de mais de 5.000 habitantes; sistemas escolares completos em todas as capitais. Esse o conjunto do sistema escolar propriamente dito e que oferecerá em cada povoado, em cada vila, em cada cidade, as oportunidades locais de educação.
O plano se completa com o sistema de bolsas. O sistema de bolsas é o sistema de mérito que se deverá, agora, introduzir-se sistematicamente em todo o país. Em cada povoado haverá a oportunidade para que uma criança pobre mas excepcionalmente bem dotada para os estudos possa prosseguir seus estudos na cidade vizinha e, depois, na cidade vizinha dessa cidade vizinha e, depois, na capital.
E se a capital não tiver ensino superior, na cidade de outro estado. Além das oportunidades locais, pois, a criança excepcionalmente inteligente terá todo sistema a seu dispor.
Esse será o plano que cada estado organizará, à luz dos planos de cada município. E com esse plano estadual é que o governo do estado se dirigirá ao governo federal para assinar o convênio de cooperação educacional.
E qual será o plano federal? Na realidade um plano de assistência financeira, de assistência técnica e de assistência política, para que se tornem possíveis os planos financeiros de empréstimos para levar avante a tarefa.
Com efeito, será impossível colocar todos os ônus atuais imediatos desse grande plano sobre os ombros dos brasileiros que pagam impostos em cada ano. Precisamos dividir esses encargos por uma série de anos. Daí poder correr a manutenção dos serviços de ensino, com a receita de cada ano, mas os ônus da implantação do sistema, dos vários milhares de terrenos a serem adquiridos para escolas, dos milhões de metros quadrados a construir, das dezenas de milhares de metros quadrados a reparar, deverão correr à conta de empréstimos por quinze, vinte e trinta anos. O governo federal terá de ser o fiador desses empréstimos nacionais e internacionais.
Os planos de financiamento obedecerão às seguintes normas:
1. Os orçamentos serão baseados no custo individual do aluno;
2. Esse custo será calculado pela forma prevista de salário do professor (70%), de despesas materiais de manutenção e administração (20%) e de despesas do prédio e sua conservação (10%); e
3. Os 10% desse custo do aluno (municipal e estadual) junto com os 10% do auxílio federal constituirão o fundo para empréstimos, tomando possível a negociação dos mesmos em bases nacionais e internacionais.
Com o plano de construções em operação e, ligado a ele o da expansão de matrículas, se articulará o plano de preparo de professores. É indispensável chamar a atenção especial para esse plano. Até hoje pensamos reformar a educação por meio de leis. São elas, sem dúvida, necessárias para tomar possível a reforma, mas leis não fazem a reforma.
As reformas se fazem pela mudança de estrutura da sociedade que está em marcha, queiramos ou não queiramos, e pelo preparo e aperfeiçoamento do professor.
Até ontem preparávamos os professores nas escolas normais, que foram atingidas pela voragem da expansão do ensino médio. Por outro lado, percebemos, agora, que o preparo profissional faz-se melhor depois de uma boa educação geral e, tanto quanto possível, pela prática, acompanhada de cursos intensivos.
No nível de assistência técnica federal elaborou-se, então, um plano de treinamento e aperfeiçoamento do magistério, mediante a instalação de 40 centros, dois, no mínimo por estado, destinados a formar 16 mil professores por ano e 128 mil nos próximos oito anos.
Assim justificou o Brasil esse plano em Santiago do Chile: “Todas as reformas e desenvolvimentos em marcha estão, entretanto, a depender fundamentalmente da adequada formação dos professores.
Será nesse setor que residirá um dos esforços maiores do Ministério da Educação, sua nova fase, como órgão de propulsão dos 21 sistemas educacionais dos estados, que a Lei de Diretrizes e Bases veio ampliar aos três níveis de ensino (antes, somente o ensino primário estava sob o controle dos estados) e como administrador do sistema federal de ordem apenas supletiva.
Ao lado do auxílio financeiro pelo qual a União buscará restabelecer o equilíbrio entre os contrastes econômicos das diversas regiões do país, cogita ela de ampliar os seus serviços de assistência técnica dando ênfase à preparação do magistério.
Como as chamadas escolas normais e os cursos de regentes vêm sendo transformados, cada vez mais, em cursos de nível médio, para o que concorreu sobremodo a adoção dos ginásios secundários como seu primeiro ciclo, toma-se possível a criação de novas modalidades de formação de magistério, com a instalação de centros de treinamento destinados aos que tenham concluído os estudos do segundo nível no primeiro ou segundo ciclo, e desejem devotar-se ao magistério.
Estes centros seriam substancialmente centros de demonstração de ensino, desde o nível de jardim de infância até a última série do segundo nível, com jardins de infância, escolas primárias e escolas de segundo nível nos quais grupos de estagiários, entre 200 e 300 viriam residir como internos, para tratar e estudar as artes do magistério infantil, primário e médio.
Os estudos seriam rigorosamente articulados com essa prática direta do ensino. As escolas – funcionando como hospitais de clínicas nas escolas de medicina – existiriam em três modalidades: escolas de demonstração, escolas experimentais e escolas de prática. Dado o volume de professores a preparar e aperfeiçoar, tais escolas devem ter a amplitude necessária para permitir treino individual. Ao lado das escolas de demonstração e experimentais, que poderão ser razoavelmente pequenas, haverá escolas de prática, com classes em número suficiente para o treinamento individual, aproveitando-se as próprias escolas do sistema escolar vizinho.
Estes centros deverão, com efeito, ser localizados de preferência em cidades ou próximos a cidades que ofereçam tais oportunidades. A criação de 40 desse centros nos 21 estados brasileiros representaria a cooperação específica do Governo Federal na sua obra de assistência técnica aos governos dos estados. Representaria isto, entretanto, tamanho investimento que seria de crer pudessem vir a contar com auxílio internacional, à maneira de certos tipos de ajuda que tanto o Ponto IV quanto a UNESCO vêm oferecendo em esforços mais modestos, tais como os do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo (UNESCO) e o do Centro de Belo Horizonte (PABAE-Ponto IV).
Já nos referimos anteriormente ao problema do magistério e à extraordinária proporção de mestres desprovidos de preparo pedagógico, tanto na escola primária quanto na escola média.
Nas condições atuais do ensino, entretanto, já não se trata apenas de aumentar o número de professores diplomados pelas atuais escolas normais, mas de modificar profundamente essas próprias escolas normais, lançando as bases de um tipo novo de formação de magistério."
Os gérmens desses centros já se encontram nos Centros de Pesquisas Educacionais instalados em 1955 no Ministério.
Vejamos, em resumo, pois, em que consiste o Plano Nacional de Educação, em vias de desenvolver-se:
1. ataque maciço ao problema de educação de todos os brasileiros, na área de cada município, pelo levantamento individual da população a educar;
2. marcha da educação dos núcleos mais avançados para os mais retardados;
3. compreensão da chamada educação rural, como educação comum limitada pelas condições rurais. Em oposição ao conceito de educação rural para a vida rural: o rural vai se fazer rurbano. O Centro Rural de Educação se poderia chamar: Centro Rurbano;
4. orçamento de educação baseado no custo do aluno;
5. sistema de bolsas, pelo qual o sistema local se ligará ao sistema estadual e ao sistema nacional. As bolsas serão como pontes e permitirão a articulação de todo sistema -local, estadual e federal;
6. sistema de preparação do Magistério, com candidatos possuidores da educação geral ministrada pelos Estados, em centros regionais, mantidos, em cada estado, pelo Governo Federal, com residência para 800 bolsistas, recrutados proporcionalmente pelos municípios. Aí se formará a força de trabalho do sistema escolar de cada estado. O recrutamento dos alunos pelos municípios é fator fundamental desse plano. Como tais centros serão altamente dispendiosos, podendo comparar-se, à sombra da Medicina, com os respectivos hospitais de clínicas, ficarão eles a cargo do Governo Federal;
7. política de auxílio financeiro federal pelo qual se vá, gradualmente, visando à certa equalização de recursos para a educação em todos os estados da Federação Brasileira;
8. revisão da estrutura educacional para uma educação para a produção e não apenas para o consumo, com a instituição de um sistema contínuo e integrado, no qual estejam superadas todas as divisões do passado entre educação geral e especial, humanista e científica, prática e teórica e se busque em todas as instituições educacionais todos esses valores, que apenas se distinguem por ênfase e não por separações.
São estes os esclarecimentos que me cabe trazer, no momento em que os educadores brasileiros se reúnem para urna tomada de consciência dessa nova etapa educacional, em que vamos entrando com a Lei de Diretrizes e Bases.
Antes de concluir, permitam-me ainda sublinhar a grandeza da tarefa:
1. na evolução da educação entre os países desenvolvidos pode-se perceber, claramente, três períodos:
Século XIX – ensino primário para todos;
Século XX – a partir da I Guerra Mundial, ensino secundário para todos; Século XX – a partir,da II Guerra Mundial, ensino universitário em alta expansão; e
2. cada um desses períodos corresponde a uma reestruturação da educação:
Século XIX – educação prática e universal, primária e seletiva e técnica para poucos;
Século XX-a partir de 1914, educação universal e prática secundária para todos;
Século XX – a partir de 1945, reestruturação e expansão do ensino superior, pelo reconhecimento da interdependência entre as ciências e a sociedade e a educação como supremo instrumento.
O Brasil tem de realizar as três tarefas nestas próximas décadas do século XX. É uma corrida entre elas e a sobrevivência. Não estamos reunidos para um debate acadêmico mas para o planejamento de uma batalha. Não há batalha sem planos. O nosso plano é uma série de decisões sobre a estratégia e a tática dessas batalhas. Possamos fazê-Ia e vencê-Ia.
EDIÇÃO 60, FEV/MAR/ABR, 2001, PÁGINAS 70, 71, 72, 73, 74, 75