Numa conversa informal com editores que preparavam uma coleção fotobiográfica sobre o Modernismo brasileiro, o poeta Carlos Drummond de Andrade a certa altura foi instado a dizer alguma coisa sobre Mário de Andrade, amigo e colega de lides literárias. “E o Mário?”, indagou um dos editores.
Incontinenti, Drummond limitou-se a dizer: “Mário foi o maior e o melhor de todos nós”. (1)

Além do próprio Poeta, entre esses “todos” a que se referia figuram nomes como Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Cecília Meireles, Graciliano Ramos… Talvez não seja preciso invocar aqui a conhecida sobriedade do escritor mineiro para assegurar-se do arrazoado de sua declaração. Basta um rápido sobrevôo pela vasta produção legada por Mário de Andrade em seus curtos cinqüenta e dois anos de vida para dar-nos conta de que, se ele obviamente está longe de ser o melhor em cada uma das tantas áreas artístico-culturais a que se dedicou – música (como historiador, instrumentista, professor de conservatório e dicionarista), poesia, conto, romance, crítica (de música, literatura e artes plásticas), pesquisa folclórica, jornalismo, epistolografia, direção de departamento cultural, para dizer as que nos ocorre agora –, veio a destacar-se com reconhecido e extraordinário talento em todas elas, o que levou Pedro Nava a referir-se espirituosamente a ele como um “diabo d’homem”. (2)

Mas talvez seja ainda mais significativo o fato de Mário de Andrade não ter se limitado a distribuir talento como grande criador, virtuose e erudito que foi: ele soube viver as várias áreas da cultura como momentos de um projeto mais amplo de colaboração na construção da nação brasileira como espaço humano próprio, autônomo e justo. Não ficou na arte pela arte, ou na ciência pela ciência; não dispersou-se em seus múltiplos interesses, mas verteu-os no interesse maior de construir uma “realidade mais completa, mais alta e mais de todos”. (3) Transfundiu seu destino no destino de seu povo. Amou este povo com ferocidade e nada poupou para ajudá-lo a romper as cadeias que o prendem à miséria e – outra miséria – à ignorância de sua identidade e grandeza. A tal ponto que, se Mário de Andrade nada tivesse criado em arte ou em teoria, apenas o ardor e a fecundidade de sua entrega incondicional ao Brasil já seriam suficientes para fazer dele uma presença histórica relevante.

Portanto, quando Drummond se refere ao amigo como “o maior e o melhor de todos”, parece-nos ter em vista, em medida aproximada, tanto o fenômeno estético-intelectual quanto o fenômeno ético-social chamado Mário de Andrade.

A militância cultural de Mário irrompe com a Semana de Arte Moderna de 1922. É a partir da Semana que se projetará uma das faces mais conhecidas, e ainda hoje celebradas, do escritor paulista: o vanguardista, guerrilheiro cultural rasgador de novas vias de expressão estética. O arlequim libertário que dessacraliza formalismos acadêmicos importados d’alhures e ajuda a trazer para as artes nacionais o fogo de um novo começo. Mário tem, então, vinte e nove anos e já se encontra bastante decantado em sua formação cultural, com sólida base em humanidades e domínio das tradições e técnicas artísticas. A percuciência e convicção incomuns com que brandia os princípios da estética modernista, aliadas à espontânea ascendência que viera a ter sobre seus pares de movimento, dentro e fora de São Paulo, acabaram valendo-lhe a pecha, meio fabulosa, meio veraz, de “papa do modernismo brasileiro”. Posto à testa do movimento, polêmico, com sua figura excêntrica de quase dois metros de altura e largo riso prognata, tornou-se alvo fácil da fúria reativa dos literatos oficiais, representantes da “ordem” e dos “bons costumes”. Ainda em 1922, publica Paulicéia desvairada, livro de combate onde explode em versos livres na tentativa de trazer a arte poética de volta às fontes criativas do eu profundo, reintegrando-a à pletora da vida. São desse livro-libelo os versos de “Ode ao Burguês”, poema-desabafo onde Mário exorciza o amesquinhamento do espírito patrocinado pela sociedade de seu tempo: “Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,/ o burguês-burguês!/ A digestão bem-feita de São Paulo!/ O homem-curva! O homem-nádegas!/ O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,/ é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!”. (4) De fato, se o modernismo da primeira hora ainda não se formula como nacionalista, já se mostra francamente antiburguês, na medida em que, com seu espírito de apropriação, cálculo e acumulação, a burguesia intenta possuir e controlar a vida que os modernistas – inicialmente em plano estético, depois em plano sócio-histórico –, justamente ensejavam liberar em suas múltiplas dimensões. Sob o fragor do movimento, Mário assiste à deserção de seus alunos particulares de piano, muito provavelmente por iniciativa de atemorizados pais que receavam o contágio dos pupilos pela divine folie do mestre. O fato faz desequilibrar temporariamente suas finanças, mas em contrapartida força-o a concentrar-se com ainda mais independência e afinco no trabalho de desdobramento de suas concepções modernistas.

O movimento modernista corresponde, em nível estético, a um “sentimento de arrebentação” (5) que percorre a espinha dorsal da sociedade brasileira, atingindo de modo especial os setores sociais mais sensíveis às transformações aqui operadas com a penetração das engrenagens técnico-industriais. A produção econômica, desde a Colônia concentrada em torno do latifúndio, gradualmente passa a deslocar-se para a indústria, já em vapor no início do século XX. As cidades – São Paulo à frente – crescem em ritmo veloz, os mercados se expandem e, com o auxílio dos novos meios de transporte e comunicação, encurtam distâncias, em proporção inversa ao fosso que se vai abrindo entre o novo e o antigo, o futuro e o passado. Com efeito, o ideal de progresso da burguesia estenderá a todos os âmbitos da vida social o critério cortante que aprendeu com o setor da produção tecnológica, segundo o qual está sumariamente desqualificado como ultrapassado tudo – concepções, crenças, valores, linguagens – que venha do passado. É a cisão modernidade-tradição, urbano-rural, civilizado-primitivo que se vai definindo e revolvendo as entranhas da nacionalidade, e à qual parte significativa dos modernistas, e muito especialmente Mário de Andrade, permanecerá bastante atenta. Entre o campo e a cidade, onde está o Brasil? Quem, afinal de contas, é o brasileiro, se é que a esse respeito se possa falar em identidade? “Tupy or not tupy, that is the question” (6) – dirá mais tarde Oswald de Andrade em seu Manifesto antropófago.

Sob o impacto de semelhantes transformações, onde valores morrem, outros surgem, paisagens mudam, esses profissionais da inquietação, os artistas, não tinham como permanecer aferrados a modelos de expressão – metros, ritmos, rimas – que na própria Europa já davam mostras de exaustão. Pois, como disse Wilson Martins, até fins do século antepassado o nosso colonialismo estético nos abastecia com modas européias que aqui já chegavam com “vários lustros de atraso”. Ou seja: quando afinal nos julgávamos atuais, ainda estávamos no passado em relação ao tempo mundial.

Os modernistas passam a pesquisar, para tempos novos, um canto novo. E passam a trabalhar, a golpes de humor e muita coragem, na renovação da crostra de formalismo e academicismo que impedia os artistas nacionais de se expressarem de um modo que melhor correspondesse às suas mais profundas vibrações líricas. A linguagem artística desses moços muitas vezes apenas balbuciava.

Mas, por força de sua sinceridade vital, é raro que ela não fale. Nem se pense que a atitude de confrontação com o passado artístico teve vida longa para além da Semana de 22. Setores significativos do modernismo logo alcançariam a consciência de que não se tratava de rejeitar sem mais as formas legadas pela tradição, mas de tão somente não limitar-se a elas. Em nome da primazia do que Mário de Andrade chama de “fluxo lírico”: o próprio elã criador que move a arte. Em obediência a esse fluxo e seus imprevisíveis entretons, o artista tanto poderia transgredir as formas definidas no passado quanto acabar encontrando nelas os melhores recursos para esta ou aquela expressão. Dá-se aqui a redescoberta da linguagem como Eloqüência – nem ruptura com o passado nem mera adaptação a ele, mas criação pura, acontecer originário do sentido –, por oposição à retórica, que é o recurso a formas fixas de expressão para chegar a um intencional e presumido “bem dizer”.

É importante também assinalar que o modernismo não se limitou a pesquisar uma linguagem estética contemporânea. Sua aspiração foi mais profunda e, nessa medida, marcou um divisor de águas na história da cultura brasileira. Nas palavras de Mário de Andrade, o modernismo tratou de assegurar à intelligentsia brasileira o “direito permanente à pesquisa estética”. (10) Tratava-se, portanto, não apenas de ser atual naquele momento da história, mas de abrir caminho para uma permanente atualização da criação artística nacional. Com efeito, como ainda reconhece Mário, uma das outras duas contribuições fundamentais do modernismo brasileiro foi, justamente, a “atualização da inteligência artística brasileira”, além da “estabilização de uma consciência criadora nacional”. (7)

Ora, essa busca permanente de uma expressão estética atual acabará enviando os modernistas à (re)descoberta da nacionalidade. Porque, se na fase heróica do movimento se exercia a liberdade sobretudo como direito de recusa do velho e busca de novas possibilidades, essa liberdade predominantemente negativa e exploratória terá como desdobramento conseqüente uma positiva aspiração à conquista da própria identidade. Não mais negar o alheio, mas encontrar e afirmar o próprio. Liberdade como autenticidade, da qual a condição nacional irromperá justamente como uma das principais fontes. Assim, para ser autêntico já não bastava ser atual, mas era preciso ser atual a partir das diferenças locais. Ou, como resume Oswald de Andrade no Manifesto Pau-Brasil, “O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional. Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época”.

O dilema nacional-internacional, que não era mais que a amplificação do dilema rural-urbano, vai tomando, assim, uma linha de solução conciliadora.

Estamos aqui diante do “abrasileiramento do brasileiro”, um dos principais lemas do intelectual Mário de Andrade. Mas, antes mesmo de o ideal do Brasil como nação una e diferente aparecer na obra marioandradiana com o vigor que a marcará em definitivo, é preciso recordar, com Afrânio Coutinho, que esse ideal não nasceu com o modernismo, mas, antes, constituiu-se numa linha mestra que atravessa a história da cultura brasileira, na qual se observa “uma marcha constante no sentido da integração do país e de sua gente em si mesmos, de um aprofundamento no magma nacional, de uma prospecção na realidade de nossa civilização, uma civilização diferente, diferenciada nos trópicos pela ação de elementos só aqui estabelecidos”. (8)

É preciso ressalvar ainda que, se Mário se destacou sobremaneira entre os modernistas, no trabalho de nacionalização das artes, tampouco esteve isolado nesse esforço, sendo acompanhado, com maiores ou menores dissonâncias, por figuras de relevo como Menotti del Picchia, Sérgio Buarque de Holanda, Cassiano Ricardo e o próprio Oswald, para ficar com alguns dos mais importantes – embora também devamos sublinhar o destaque que lhe dá Wilson Martins ao dizer que o autor de Macunaíma foi, “de todos os modernistas, o mais moderno e o menos futurista, sofrendo pouco da inquietação vanguardista”, chegando a reconhecer, nele, nada menos que “a fonte de todo o ‘brasileirismo’ modernista”.

A tendência nacionalizante reponta no pensamento de nosso autor com certa precocidade. Devorador de revistas das vanguardas européias, terá lido e concordado com Apollinaire quando este afirma, já em 1917, numa conferência sobre o Espírito Novo e os Poetas, que “das diferenças étnicas e nacionais nasce a variedade das expressões literárias, e é esta mesma variedade que é preciso salvaguardar.”

Terá sido afetado pela onda defensiva movida no Brasil a partir da “sanha nacional das nações imperialistas” decorrente da I Guerra Mundial. O fato é que, seis anos antes do momento (Wilson Martins situa-o em 1924) em que o ideal nacionalista se aglutina ao modernismo como tendência coletiva, um Mário católico-brasileiro lamenta que o “erro de construir igrejas nos mais estrangeiros dos estilos” tenha quebrado “bruscamente a cadeia da arte religiosa nacional”. E torce para que, afinada com o movimento inculturador nas artes, a Igreja “nos dê ainda templos nossos, capelas brasileiras onde a comoção religiosa da raça palpite, como num lar avoengo (…)”. (9)

Em carta ao escritor pernambucano Joaquim Inojosa, escrita em meados da década de 20, Mário formula em termos bem definidos o que pretende com o seu nacionalismo estético: “Nós temos de criar uma arte brasileira. Esse é o único meio de sermos artisticamente civilizados… (…) nós teremos nosso lugar na civilização artística humana no dia em que concorrermos com o contingente brasileiro, derivado de nossas necessidades, da nossa formação por meio da nossa mistura racial transformada e recriada pela terra e clima (…)”. (10) Atentemos para o novo sentido de civilização que se abre no texto acima. Para ser civilizado “artisticamente” – ou em qualquer outra esfera – já não basta sintonizar-se com o que de melhor se produz no assim chamado “mundo civilizado”, o mundo regido pelas demandas da técnica-indústria, como pretende um projeto secular de poder que hoje vigora com o nome de globalização. Para ser civilizado, na arte ou em qualquer outra esfera, é preciso corresponder às condições geo-humanas do próprio lugar, e, nesse sentido, Mário ousa afirmar que muito brasileiro de “Belo Horizonte e São Paulo”, existindo em um lugar que não corresponde à sua paisagem, e num tempo que não corresponde à sua história, flutuando, assim, numa espécie de limbo da História, é menos civilizado, por exemplo, do que “os tupis nas suas tabas”, apesar de naquelas cidades medrarem possantes manifestações de avanço tecnológico. (11)

É nesse sentido que o Brasil parecia ao nosso escritor vastamente incivilizado. Inspecionando suas entranhas, a princípio no âmbito da produção artística e, em seguida, nas tantas outras dimensões de sua vida sócio-cultural, Mário constata a presença de uma fratura insanável a opor, de um lado, os interesses e modus vivendi da elite urbana, ajustada ao projeto das elites internacionais e, de outro, a existência bruta do povo sub-infra-urbano e rural, a afundar raízes no solo pantanoso da nacionalidade.

Vê um ideal de progresso técnico-social atropelar sem remissão tradições que há séculos vêm pacientemente tecendo, ao sabor do acaso de delicadíssimas permutas etno-culturais, aquilo que mais acima Afrânio Coutinho chama de magma da nacionalidade. Para Mário, há no Brasil um projeto de poder – que nas artes reveste-se de boçalidade imitativa – cuja dinâmica implica numa sistemática recusa de imersão nesse magma. E isto pela simples razão de esse projeto desenvolver-se num espaço homogêneo no qual todas as diferenças locais precisam ser diluídas. Admitir o direito que tem uma nação como o Brasil de afirmar-se em sua pujante diferença – com outras necessidades e respostas históricas – seria, para esse projeto, reconhecer um lugar que ele não pode englobar – o que contraria sua lógica de fundo. Observando alguns de seus efeitos sobre a tradição das danças dramáticas do Norte-Nordeste, Mário anota com alguma amargura: “A civilização criou um preconceito de cidade moderna e progressista, com boa-educação civil. E como em Paris, Nova York e São Paulo não se usa danças dramáticas, o Recife, João Pessoa e Natal perseguem os Maracatus, Caboclinhos e Bois, na esperança de se dizerem policiadas, bem-educadinhas e atuais. São tudo isto, com cheganças ou sem elas. Mas quem pode com o delírio de mando dum polícia ou dum prefeito, ou com a vergonha dum cidadão enricado que viajou na Avenida Rio Branco! Cocos viram besteira, Candomblé é crime, Pastoril ou Boi dá em briga. Mas ninguém não se lembra de proibir escravizações ditatoriais, perseguições políticas, e ordenados misérrimos provocadores de greves, que de tudo isso nasce crime e briga também (…)”. (12)

A percepção dos impasses que atingem a incivilização brasileira leva Mário de Andrade a referir-se a ela como “monstro molengo”, de “alma indecisa” e “caráter noturno” e a reconhecer, difusa em sua gente, uma “dor dos irreconciliáveis” que, antes mesmo da luta por pão e teto, reside na insegurança vital de quem não dispõe do abrigo de uma tradição e só tem “a infelicidade do acaso pela frente”.
Essa dor Mário projeta literariamente em Macunaíma, o “herói sem nenhum caráter”, “produto do caos humano, mexendo-se no abismo brasileiro”. (13) “Caráter”, aqui, não tanto no sentido moral de personalidade conscientemente orientada para o bem – já que, como sustenta Alfredo Bosi, mal se pode dizer que Macunaíma seja uma “pessoa” –, quanto no sentido psicológico de “entidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes, na ação exterior, no sentimento, na língua, na História, na andadura, tanto no bem como no mal”. Espécie de “barro vital, ainda amorfo, a que o prazer e o medo vão mostrando os caminhos a seguir” (14), Macunaíma não é, a rigor, “coisa alguma”: nem menino nem adulto, nem negro nem branco, nem índio nem citadino. Filho do “mato virgem”, decide ir à cidade em busca da pedra “muiraquitã” (referência à dimensão de solidez-base) que lhe daria a felicidade; contrafeito, volta ao rincão de origem mas aí só encontra devastação. Sem ânimo, declara a si que não veio “ao mundo para ser pedra!” e resolve ir viver “do brilho inútil das estrelas” (15), o que antes trai sua incapacidade para viver em qualquer lugar. Referindo-se ao final da rapsódia, em carta a Álvaro Lins, Mário confessa tê-lo escrito “com os olhos umedecidos”, porque “não queria que fosse assim!”. Não é difícil perceber o doloroso expurgo daquela tendência desagregadora da incivilização brasileira que o personagem, afinal e a seu modo, encarna. Podemos mesmo dizer que, em certa medida, a missão intelectual de Mário de Andrade consistiu em trabalhar pela desmacunaimização do Brasil, apesar da dimensão iluminada do herói – com sua riqueza vital, sua vivacidade e sua inocência –, que de outro lado também anuncia “o maravilhoso destino de nossa gente”. (16)

Assim, estaria longe de compreender Macunaíma quem o reduzisse à divertida narrativa das peripécias de um anti-herói que passa a vida “fazendo coisas de sarapantar”. Escrito de um jorro “em seis dias ininterruptos de rede, cigarros e cigarras” na chácara de um primo em Araraquara, após extensa e intensiva pesquisa – folclórica, antropológica, sociológica, geográfica, estética etc – sobre o Brasil, Macunaíma é um livro-catarse em que se opera uma verdadeira descida aos subterrâneos da nacionalidade.

Em seu trabalho para “civilizar” as artes brasileiras, Mário orienta-se pela convicção de que “a arte nacional já está feita na inconsciência do povo” – fato esse menos tese-guia do que constatação, a que chega com o auxílio de paciente exame de mais de uma centena de documentos do populário musical. Cotejando peças de Norte a Sul do país, nosso musicólogo encontra nelas um “imperativo étnico” – “a mesma doçura molenga, a mesma garganta, a mesma malinconia, a mesma ferocia, a mesma sexualidade peguenta, o mesmo choro de amor” – a lhes conferir unidade interna e distinção face às produções musicais estrangeiras, o que o leva a reconhecer na música popular “a mais completa, mais totalmente nacional, mais forte criação de nossa raça até agora”. (17) Ora, semelhante constatação tem, para Mário, o efeito de uma revelação: porque, se desde 1500 o Brasil já existe como país – um mesmo território governado por um mesmo Estado –, já não se pode afirmar, pelo menos até o século XVII, semelhante unidade no plano cultural, desarticulados que ainda estavam os elementos étnicos que aqui viriam a se compor. Pois essa relativa unidade cultural os documentos do populário musical segredam ao pesquisador. A par de uma língua comum, o Brasil já apresenta, vindo de suas camadas profundas, um certo jeito de cantar, de criar, de sofrer, de compreender o mundo, o qual, se obviamente não é igual em suas várias regiões, aponta para um instigante núcleo identificador.

Em suma, Mário observa que o Brasil já tem tradição cultural. E trabalha pela com-solidação de um continuum temporal entre presente e passado, visando a uma temporalidade que “anule as distâncias entre momentos temporais diferentes, compondo como um fundo do tempo, uma dimensão duradoura, em que se enraízam as manifestações culturais que possuem um caráter genuíno”; e de um continuum social entre erudito e popular, para que este não se feche àquele – o que seria sua estagnação –, nem aquele desconsidere este, condenando-se à inanição. Trata-se, portanto, de acolher a tradição e partir dela, quaisquer que sejam os caminhos expressivos que se devam abrir a partir dos direitos criativos da arte e, em particular, do ímpeto transformador do mundo contemporâneo. Recusar o caldo dessa tradição e os séculos de cultura que nele se condensam, em nome de pretensa “liberdade estética”, seria arriscar-se a cair ingenuamente na “moxinifada moluscóide” de uma arte-arremedo do que se faz no estrangeiro, este “cabaré das nações”. Porque o que muitas vezes parece espontaneidade criadora não passa, no fundo, de imitação inconsciente.

Mário de Andrade estava convencido de que a cultura brasileira passava, no primeiro quartel do século XX, por uma fase de “fundação étnica”: construção voluntária da arte nacional a partir do elemento popular. Sabia, e exprobava, os perigos dessa opção: a confusão de popular e “exótico”, a fácil concessão ao gosto popular – o chamado “popularesco” –, a recusa xenófoba do estrangeiro. Sabia, ainda, da limitação que esse trabalho voluntarioso implicava para a liberdade “mais trágica da arte”. E previa, para a evolução da cultura brasileira, a passagem gradual da tese nacionalista para o sentimento nacional, e deste para a inconsciência nacional. Nessa etapa – não mais nacionalista, nem meramente nacional, mas já “cultural” ou estética –, a “sinceridade da vontade” e a “sinceridade do hábito” coincidiram; e o artista expressaria, sem esforço e como por transpiração, o pathos de sua condição. Mas, considerando o abismo que se estabeleceu entre elite e povo, e o influxo desagregador exercido pelas engrenagens modernas, esperar isso do momento atual seria, para nosso autor, perigoso engano.

Resumindo, se para Mário civilizar significa, em parte, nacionalizar; nacionalizar significa, sob qualquer aspecto, socializar.

Luciano Santos é professor de Filosofia das Universidades Católica de Salvador e Estadual da Bahia, mestre pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, com a dissertação Mário Vário: Mário de Andrade e a Superação da Subjetividade Moderna.

Notas
(1) In A Imagem de Mário – Fotobiografia de Mário de Andrade, Nota Editorial. Rio de janeiro, Ed. Alumbramento, 1998.
(2) Cf. Andrade, Mário de. Correspondente Contumaz, p. 29. Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1982.
(3) Andrade, M. de. Aspectos da Música Brasileira, p. 195. Belo Horizonte, Ed. Vila Rica, 1991.
(4) Andrade, M. de. Poesias Completas, págs 88-89. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, 1987.
(5) Andrade, M. de. Aspectos da Literatura Brasileira, p. 241. São Paulo, Livraria Martins Editora S.A, 5a ed.
(6) In Teles, Gilberto M. Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro, p. 353. Petrópolis-RJ, Ed. Vozes, 1987.
(7) Andrade, M. de. Aspectos da Literatura…, op. cit., p. 242.
(8) In Teles, G. M., op. cit., p. 330. Grifo nosso.
(9) In Teles, G. M., op. cit., p. 152.
(10) Andrade, M. de. A Arte Religiosa no Brasil, págs 92 e 96. São Paulo, Ed. Experimento, 1993.
(11) Apud Jardim, E. Atitude estética e nacionalismo em Mário de Andrade, págs 5-6. Texto manuscrito.
(12) Cf. Andrade, Carlos D. A Lição do Amigo – Cartas de Mário de Andrade a Carlos D. de Andrade, p. 30. Rio de Janeiro, Ed. Record, 1987.
(13) Andrade, M. de. Danças Dramáticas do Brasil – Tomo I, págs 69-70. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, 1982.
(14) Bosi, A “Situação de Macunaíma”. In Andrade, M. de. Macunaíma, p. 179. Florianópolis, Ed. da UFSC, 1988.
(15) Bosi, A “Macunaíma: o encontro da literatura com o folclore”. In Macunaíma, Rio de Janeiro, op. cit, p. 362.
(16) Andrade, M. de. Macunaíma, p. 131. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia, 1984.
(17) Andrade, M. de. Ensaio sobre a Música Brasileira, p.16. São Paulo, Livraria Martins Editora, s/d.

EDIÇÃO 61, Mai/Jun/Jul, 2001, PÁGINAS 74, 75, 76, 77, 78, 79