A verdadeira face da Lei de Responsabilidade Fiscal
Os grandes jornais nacionais têm estampado mais uma grave mentira oficial. Com a preciosa “colaboração” da imprensa, os marqueteiros do governo federal vendem uma falsa imagem da Lei de Responsabilidade Fiscal, manipulando a opinião pública com ostensivas campanhas sobre os “esforços” para combater a corrupção e sanear as finanças públicas.
Na verdade, foi montada uma farsa pela equipe de FHC para cumprir à risca a agenda de compromissos com os credores internacionais e o capital financeiro. Aos que não leram a lei, ou se deixaram iludir com a propaganda do governo, uma iniciativa louvável e necessária à maturidade administrativa do país. Mas, aos olhos atentos, uma perigosa peça que desvia a atenção do verdadeiro propósito de serviço irrestrito ao pagamento de juros e amortização da dívida e o decorrente congelamento dos gastos sociais.
O governo federal insiste no discurso de que a lei está a serviço da austeridade fiscal e da moralidade pública. No entanto, a lei não dispõe sequer de um artigo que combata a corrupção. Não se busca a eficiência e a eficácia dos gastos públicos, mas sim o combate ao déficit e a manutenção da relação entre dívida pública e Produto Interno Bruto (PIB), conforme está textualmente explicitado na mensagem que encaminhou o projeto de lei ao Congresso Nacional.
FHC dissimula os reais objetivos da Lei de Responsabilidade Fiscal, responsabilizando prefeitos e governadores pela sangria do déficit público, pelo “excesso” de gastos. Mas, quem são os responsáveis pela gastança desenfreada, que sacrificaram o orçamento público e elevaram a dívida pública de R$ 60 bilhões para meio trilhão? As combalidas prefeituras e governos estaduais ou a política do governo federal de permissividade e liberalidade com os gastos financeiros?
É essa a essência da lei: tratar de forma assimétrica e hierarquizada os gastos públicos. De um lado, limita, restringe e condiciona as despesas não financeiras, especialmente as sociais. De outro, mão aberta e garantia absoluta às despesas financeiras. O objetivo central da nova lei nada mais é do que criar um ambiente propício para a produção de superávits primários (receitas menos despesas, excetuando juros), resguardando o pagamento do serviço da dívida com o sistema financeiro nacional e internacional.
Para tanto, enquadra no Código Penal prefeitos e governadores que não cumprirem as metas fiscais impostas, inaugurando um capítulo absurdo na história: a criminalização da gestão pública. Por isso, foi aprovada a nova lei penal (Lei 10.028/2000, conexa à LRF). O curioso é que para casos de negligência ou desvios de dinheiro público, a lei não prevê punições.
A LRF não visa condenar a corrupção, a improbidade administrativa e a falta de planejamento. Para esses itens, já vigoram a Lei Camata, que limita gastos com pessoal; a resolução nº 78 do Senado, que controla o endividamento público; e a Lei Eleitoral, que proíbe contratar e aumentar salários antes das eleições. Proibições redundantes, estabelecendo o que outras leis e resoluções já prevêem.
A lei ainda viola a Constituição e agride os princípios fundamentais do pacto federativo ao interferir na autonomia de estados e municípios, obrigando-os a cumprir metas impostas que atendem unicamente ao ajuste fiscal. O artigo 35 da lei proíbe o financiamento de um ente federativo a qualquer outro, não permitindo as operações de crédito entre as cidades e os órgãos estaduais e autarquias, engessando, assim, as condições de empréstimos atuais. O acordo entre partes é sumariamente violado por meio da imposição de uma lei complementar. O impacto é arrasador: os estados estão simplesmente impedidos de repassar mais de R$ 2 bilhões aos municípios brasileiros.
A LRF impede, na prática, a ampliação de despesas com pessoal e gastos com a manutenção ou melhoramento dos serviços públicos, ao exigir que essas despesas só possam ser acrescidas mediante aumento da carga tributária, mas deixando inteiramente livres os gastos financeiros. Já podemos avistar alguns exemplos: aos prefeitos e governadores que não demitirem policiais, médicos ou professores ou se “atreverem” a implantar programas sociais sem obedecer a todas as exigências da lei fiscal, a ameaça é clara: prisão de um a quatro anos.
A espinha dorsal da lei, que se apóia no congelamento dos gastos sociais, expõe outro grande absurdo. Mesmo com dinheiro em caixa, os governantes não têm autonomia para fazer valer seus compromissos diante da população.
Sob o tacão do pagamento irrestrito de juros e amortização da dívida, os artigos 9º e 31 também penalizam a sociedade. A prioridade dada aos compromissos financeiros governamentais é constatada pelo mecanismo da limitação automática de empenhos em caso de desobediência das metas fiscais que ameacem a liquidez ou o pagamento do serviço da dívida. Nesse caso, os novos empenhos com as demais despesas ficam obstruídos, enquanto não se restabelecer a normalidade das “metas”. Esses cortes automáticos nas despesas não-financeiras são
Os principais artigos da LRF
Ao analisar lei tão vasta e complexa como essa, não podemos nos dispersar em minúcias e questões secundárias, mas sim concentrar os nossos esforços nas questões essenciais, para melhor compreender a sua essência. Por isso, gostaríamos de tecer alguns comentários sobre alguns pontos que são, em nosso entender, os mais importantes da lei:
A definição de responsabilidade fiscal e o equilíbrio das contas públicas (art. 1º, § 1º)
A responsabilidade fiscal é definida como a “ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas”.
Essa definição de “responsabilidade fiscal” é extremamente restrita; resume-se apenas, como já vimos, à questão financeira. Os aspectos da eficácia e eficiência da utilização dos recursos para atingir os objetivos programados pelo governante não são sequer citados. No entanto, para os cidadãos esses aspectos são os mais relevantes: por eles é possível aferir se o governo está atingindo as metas propostas e se há economicidade nos meios utilizados. A eficácia e a eficiência continuam sem nenhum instrumento de aferição e controle social.
O “equilíbrio fiscal” é entendido, de forma canhestra, como a simples proibição do déficit. Tal entendimento simplório não está de acordo nem com a boa prática fiscal nem com o conhecimento econômico. Equilíbrio fiscal não pode ser entendido como proibição de déficit, mas sim como a situação em que qualquer governo, mesmo deficitário, mantiver a sua solvência em longo prazo.
A decisão de aprovar e executar um orçamento superavitário ou deficitário é, e será, sempre uma decisão política dos governantes; decisão essa que só pode gerar, para estes, conseqüências também políticas e não pena de prisão como quer a Lei 10.028/2000, conexa à LRF.
Do ponto de vista macroeconômico – ao contrário do que afirma um “senso comum” construído por uma “macroeconomia de fundo de quintal” – o déficit público exerce papel relevante como medida anticíclica em conjunturas recessivas e como importante motor de estratégias de crescimento econômico de longo prazo. Dependendo da fase do ciclo econômico, esse equilíbrio pode ser até contraproducente. Como já observava o pai da economia política, Adam Smith, no século XVIII, o comportamento que pode ser considerado sensato para uma família, pode ser ruinoso para um reino.
A função macroeconômica do déficit público no desenvolvimento capitalista é amplamente comprovada por países de diversos continentes, de diferentes graus de desenvolvimento e em inúmeros momentos históricos no decorrer dos últimos setenta anos.
Vejam, por exemplo, os casos históricos, inclusive do Brasil, cujo déficit fiscal foi, durante décadas, motor imprescindível ao desenvolvimento nacional, como também os casos atuais do Japão, em que política fiscal é necessária e claramente deficitária como arma imprescindível de retomada de sua economia em estagnação. Daí, nota-se que um resultado fiscal desequilibrado não é necessariamente “gestão irresponsável”.
Segundo: o ataque contra o déficit fiscal leva sempre a supor que está na exorbitância das despesas fiscais, especialmente as não-financeiras, a causa do desequilíbrio. Isso sempre releva o fato de que, assim como a política fiscal, as demais políticas cambial e monetária têm também custos que se refletem, cedo ou tarde, no Tesouro Nacional, bem como nos custos de carregamento das dívidas estaduais e municipais.
Exemplo desses custos para o governo federal foi o prejuízo acumulado pelo Banco Central, que atingiu, de 1994 a 1999, o inacreditável valor de 34 bilhões de reais (em valores de dezembro de 1999). Outro exemplo está na metodologia de cálculo da “necessidade de financiamento do setor público” (que determina os resultados primário e nominal), que faz com que uma queda nas reservas de divisas se transforme, imediatamente, em um déficit para a União.
Ao objetivar, no abstrato, o “equilíbrio das contas públicas”, a LRF apenas positivou, na rígida letra da lei, um instrumento de política fiscal, determinada mais pela conjuntura e por um programa de governo do que pela ciência econômica. . Torna objetivo o que é instrumento. E ao contrário de tornar transparente a gestão pública, faz ainda mais opacos os custos das políticas econômicas praticadas, pois pode um governante se isentar da responsabilidade dos custos de uma política restritiva, que beneficie majoritariamente interesses financistas, escudando-se na necessidade de “cumprir a lei”.
Assim, a depender da conjuntura e do momento vivido um déficit é tão fiscalmente responsável como um superávit; gastar ou arrecadar, mais ou menos, poderá ser também, a depender da conjuntura, economicamente correto e socialmente benéfico. E deverá sempre depender da escolha política da sociedade e da decisão de seus representantes políticos.
Por fim, note-se que dentre os objetivos colocados como fundamentais para o Estado brasileiro no preâmbulo da nossa Constituição, não consta a máxima do “equilíbrio das contas públicas”; mas sim, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento, a erradicação da pobreza e das desigualdades sociais e regionais.
Anexo de metas fiscais, o coração da Lei
A grande inovação da LRF, no que diz respeito às contas fiscais, é a introdução, em seu art. 4º, da obrigatoriedade de que as Leis de Diretrizes Orçamentárias (LDO) tragam um anexo de metas fiscais, em que serão estabelecidos objetivos anuais de resultado nominal primário para os exercícios seguintes.
A elaboração do orçamento, e particularmente a sua execução, tem de se pautar pelo que é estabelecido nesse anexo. Além disso, devem constar na LDO os critérios e as formas de limitação de empenho, ou seja, de contigenciamento de gastos. Caso na execução se identifique qualquer possibilidade de que o superávit primário não seja alcançado, será obrigatória a redução de gastos para cumpri-lo. O superávit, por sua vez, garante o pagamento das dívidas financeiras. Também no caso de crescimento da dívida acima do limite, mesmo por razões alheias à vontade dos governantes, como o aumento da taxa de juros, é imposto o corte de gastos.
Em relação às metas contidas nesse anexo se desenvolve, bimestralmente, o controle de limitação aos empenhos de despesas não-financeiras. Como vimos, a ameaça de desequilíbrio financeiro que puser em risco os compromissos do serviço da dívida, logo dispara impedimento de realizar outras despesas (previstos no art. 9º), até que se garanta o caixa necessário ao pagamento. Note-se que isso não se aplica a dívidas com fornecedores e empreiteiros, ou em relação aos pagamentos judiciais de precatórios, mas apenas e exclusivamente com as dívidas financeiras, seja contratuais com bancos seja em títulos. Estes últimos credores passam a ser os únicos agentes a negociar com o setor público sem correr risco de não recebê-las.
A camisa de força do art. 17 e suas conseqüências, previstas nos arts. 21 e 24
O art. 17 e seus parágrafos determinam, entre outras coisas, que os atos que criarem ou aumentarem despesa de natureza continuada deverão ser acompanhados de comprovação de que a despesa criada ou aumentada não afetará as metas de resultados fiscais, devendo seus efeitos financeiros nos períodos seguintes ser compensados pelo aumento permanente de receita ou pela redução permanente de despesa.
O problema é que o seu § 3º define como “aumento permanente de receita” apenas aquela “decorrente ou proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição”. Assim, não importa que haja previsão de um aumento duradouro de arrecadação pela elevação do nível da atividade econômica ou pelo aumento da arrecadação por uma maior eficiência da máquina fiscal.
Dessa maneira, um reajuste para servidores, a contratação de médicos, professores ou policiais, mesmo para substituir os aposentados, precisarão, para serem válidos e legais, que o governante adote pelo menos uma destas quatro medidas: a) crie um novo imposto; b) aumente a alíquota de um existente; c) inclua uma nova classe de contribuinte em um imposto; ou d) corte, diminuindo, outra despesa obrigatória. E algum desses procedimentos deve ser adotado mesmo que haja disponibilidade de caixa.
Vale destacar que no caso de compensação por corte na despesa, ela só poderá ser feita em despesa de caráter permanente. Pelo que se deduz da parte final do § 2º, a compensação não poderá ser feita com base em corte de despesa ocasional ou passageira, como investimento, ou mesmo a reserva de contingência.
A razão de tal rigidez, aparentemente sem sentido, só pode ser entendida pela intenção política de “congelar” o volume de gastos correntes, em especial aquele destinado à manutenção dos serviços públicos, em especial as despesas sociais (art. 24) e de contratação de pessoal (art. 21).
Essas medidas são tão draconianas que o governo federal está flexibilizando na prática a sua aplicação, porque o rigor da lei a torna impossível de ser cumprida. Assim, o governo tem dado uma interpretação, nas mensagens que envia ao Congresso que tratam de aumento de gastos de natureza continuada, de que o aumento da arrecadação pode ser usado para compensar esses gastos. Esse entendimento, na verdade, minora a crueza da lei, mas é uma maneira sorrateira de burlar a sua letra sem trazer a questão ao debate aberto com o Congresso e a sociedade.
O tratamento dos juros e encargos da dívida (§ 6º do art. 17)
Mas a rigidez extraordinária, que vimos no item anterior, estabelecida para a majoração de despesas correntes é substituída pela completa liberdade quando se trata de aumento de encargos financeiros. O § 6º do art. 17 libera os atos que autorizem aumento das “despesas destinadas ao serviço da dívida” de qualquer obrigação de compensação pelo corte de outras despesas ou da necessidade de majoração de tributos disposto no § 3º do mesmo artigo. Mesmo que esse aumento dos encargos financeiros decorra de uma elevação de taxas de juros flutuantes, que em nada dependem da intenção ou vontade do prefeito ou governador. Para o aumento dessa despesa, não só não haverá dificuldade, como haverá obrigatoriedade de arregimentar fundos através de cortes nas demais dotações.
Além disso, esse corte não precisará ser discutido pelo Poder Legislativo nem pela sociedade. Enquanto a melhoria ou expansão de um serviço público só poderá ser feita mediante o corte em outro serviço, em discussão e votação aberta e pública, os cortes necessários para financiar a majoração do serviço da dívida poderão ser decididos nos gabinetes do Poder Executivo, longe dos olhos dos cidadãos, que deles só tomarão conhecimento pelos seus efeitos.
A renegociação das dívidas de Estados e Municípios (art. 35)
Em 1997 e 1998 o governo renegociou as dívidas de Estados e Municípios, principalmente as dívidas mobiliárias (títulos em poder do público). Essa renegociação veio beneficiar principalmente os detentores desses títulos, que estavam ameaçados de não serem honrados, após terem “explodido” os seus valores, em decorrência dos altos juros praticados no País para atrair capital externo.
O art. 35 proíbe o financiamento de um ente da Federação a qualquer outro, diretamente ou através de suas autarquias e estatais dependentes, inclusive a “novação, refinanciamento ou postergação de dívida contraída anteriormente”. Esse dispositivo engessa completamente as condições dos empréstimos atuais, eternizando as condições pactuadas entre 1997 e junho de 2000.
Essa proibição de renegociação causou prejuízo para Estados e municípios já para este exercício de 2001. Em agosto de 2000, o Governo Federal negociou com o FMI uma diminuição da meta de superávit primário do setor público para 2001, reduzindo-o em 0,35% do PIB. No entanto, toda a redução foi repassada apenas para o resultado da União, cuja necessidade de superávit baixou de 2,60% para 2,25% do PIB; para os governos subnacionais as metas continuaram as mesmas.
Por que isso aconteceu? Porque o teto de comprometimento de 13% da receita com a dívida do refinanciamento feito pela União aos Estados e às grandes prefeituras, representa também o teto mínimo do resultado primário desses entes. E como os contratos dos refinanciamentos não podem ser renegociados, nem mesmo se a lei que os autorizou seja alterada, as metas de superávits primários dos Estados e Municípios não puderam ser alteradas para baixo. Com isso, governadores e prefeitos perderam a oportunidade de renegociar o teto do comprometimento de seus contratos de refinanciamento e de terem de volta uma parcela de suas receitas.
A intervenção na autonomia dos Poderes Legislativo e Judiciário (art. 20)
A Lei de Responsabilidade Fiscal concentra no Poder Executivo superpoderes, afetando o princípio republicano básico da separação dos Poderes.
O § 3º de seu art. 9º, por exemplo, autoriza o governo a promover uma verdadeira intervenção no Legislativo e no Judiciário: se for verificado que a realização de receitas poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou o resultado nominal estabelecido no Anexo de Metas Fiscais da lei orçamentária, e esses poderes não realizarem espontaneamente uma limitação dos seus empenhos, o Executivo promoverá essa limitação por eles.
Dessa forma, parte-se do princípio de que os outros Poderes são irresponsáveis, ou que o Executivo é mais responsável do que eles; e por isso deve exercer uma tutela sobre os mesmos. É bom ressaltar que o Supremo Tribunal Federal, apreciando em caráter liminar Ação Direta de Inconstitucionalidade impetrada pelo PCdoB, PSB e PDT contra diversos artigos dessa Lei, suspendeu a aplicação desse dispositivo, até a apreciação do mérito, por vislumbrar nele fortes indícios de inconstitucionalidade.
Além disso, em conformidade com o disposto no art. 17 e seus parágrafos, se um desses poderes precisar realizar despesas de caráter continuado, como contratar novos servidores para substituir os que se aposentarem, só poderá fazê-lo se for feita uma compensação, que terá de ser obrigatoriamente o corte de despesa assemelhada, a criação de um novo tributo, ou ainda a majoração ou ampliação da base de cálculo de um tributo já existente. Como o Poder Judiciário, por exemplo, não pode instituir, majorar ou alterar a base de cálculo de tributo, perde grande parte de sua autonomia.
O art. 20, por sua vez, estabelece uma repartição entre os Poderes dos limites globais de despesa total com pessoal, nas esferas federal, municipal e estadual. Nessa última, por exemplo, o limite do executivo corresponde a 49%, o do Judiciário a 6%, o do legislativo a 3% e o do Ministério Público a 2%.
Além de ser inconstitucional essa inovação de limites por Poder, esses limites foram estabelecidos sem nenhum critério razoável. O Judiciário, que é uma instância fundamental para as sociedades democráticas de direito, é o mais afetado. Dificulta-se o acesso dos cidadãos à Justiça e impede-se a criação de uma moderna rede de prestação jurisdicional, que facilitaria o desenvolvimento econômico, que depende em grande parte da segurança das relações jurídicas. Não se examina o número de comarcas, a quantidade de ações ajuizadas em cada Estado, nem a qualidade da prestação jurisdicional; por exemplo, a criação dos modernos juizados especiais que dão celeridade e segurança a essa prestação. Cria-se uma situação esdrúxula, em que o Judiciário de alguns Estados é obrigado a reduzir o limite de seus gastos de 11% para 6% de um ano para outro; o que é impraticável.
Essas medidas escondem a concepção de fortalecer o Executivo em detrimento dos demais Poderes, de concentrar e centralizar as decisões do Estado nas mãos daquele Poder hipertrofiado.
A liberdade do Banco Central
Ao contrário do rígido controle sobre as despesas não-financeiras, o Banco Central ganhou, pela LRF, o privilégio de ter seus prejuízos automaticamente cobertos pelo Tesouro Nacional (art. 7, § 1º, LRF, e art. 3º, inciso II, da MP 2.101-28/2001). Essa transferência automática permite que a ação do Banco Central na gestão da política monetária e cambial e na assistência ao sistema financeiro fique livre de qualquer restrição orçamentária, já que os resultados do Banco, se negativos, serão cobertos integralmente pelo Tesouro Nacional no décimo dia útil do exercício seguinte, qualquer que seja o seu montante.
Deste modo, passou a não existir nenhum limite orçamentário para o prejuízo do Banco Central, pois não só o Poder Executivo é obrigado a incluir o saldo negativo na mensagem do orçamento para o exercício seguinte, como o Congresso Nacional não pode negá-lo, pois se trata de obrigação decorrente de mandamento legal, não podendo a lei orçamentária, por ser lei ordinária, revogar dispositivo da LRF, por ser esta lei complementar.
Não bastasse a liberdade orçamentária inaudita, o Poder Executivo está propondo, através de mensagem ao Senado (Mensagem 154/2000, que estabelece limites de endividamento para o setor público), que o Banco Central também fique isento de qualquer limite de endividamento, exceto para a sua dívida mobiliária interna (que aliás será extinta até maio de 2002). O que significa que poderá o Banco Central contratar dívida externa, em qualquer montante ou condição, sem limites. mantidos mesmo face à queda ocasional da receita tributária – ainda que decorrente de um desastre natural – ou à elevação unilateral da taxa de juros.
Ao contrário do rígido controle sobre as despesas não financeiras, dá folga confortável ao mercado financeiro e ao Banco Central. Prova disso é a transferência automática dos prejuízos do Bacen para o Tesouro Nacional. Assim, as ações do Banco Central – seja na contratação de empréstimos externos, na fixação de juros da dívida pública, no “socorro” ao sistema financeiro – estão livres de qualquer restrição orçamentária. A conta do “socorro” aos bancos – nada menos que R$ 34 bilhões desde 1994 – passou a ser prioridade de governo. Desse modo os gastos com o serviço da dívida pública permanecem sem qualquer controle ou visibilidade.
O cerco fechado a estados e municípios nos quesitos de autonomia e gastos públicos dá a exata medida do autoritarismo do governo e das suas reais intenções de manter as unidades federativas reféns da política oficial. O tratamento é tão desigual, que FHC parece fazer “vista grossa” quando o próprio governo da União descumpre a lei. Os exemplos são tantos que já compõem uma galeria que ilustra a inadequação da lei em muitos casos e a conveniência do governo em descumpri-la. Outra característica importante da lei, como também veremos, é que ela parece ter sido editada para ser cumprida pelos estados e municípios, mas não pela União, nos seus aspectos mais relevantes.
Ainda nessa questão da transparência fiscal, é interessante notar que os demonstrativos determinados pela LRF servem apenas para elucidar a situação financeira do ente público, sua solvência e capacidade de pagamento. Não servem para o cidadão controlar a eficácia dos gastos sociais ou com a máquina administrativa. Ou seja, a “melhora” na transparência serve mais para os eventuais credores do erário do que para o cidadão.
É importante ressaltar, também, que o governo federal se omitiu em relação à regulamentação da LRF, que é uma norma técnica, de aplicação complexa, muito confusa e generalizante para ser aplicada diretamente à diversidade de um país continental e multiforme como o nosso. Deixou inteiramente em aberto sua interpretação pelos Tribunais de Contas Estaduais, gerando decisões controvertidas e díspares de um lugar para outro, criando uma gigantesca balbúrdia jurídica.
Além disso, o governo prima pela aplicação aleatória e seletiva dos princípios dessa lei. Em assuntos de seu interesse, não os assume, mas recorre a esses princípios para impedir que recursos sejam destinados a áreas sociais, usando-os como justificativa para o veto que apôs ao Plano Nacional de Educação, por exemplo.
A recente edição do decreto que corta R$ 8 bilhões da lei orçamentária, sem qualquer justificativa, bate de frente com a LRF, segundo a qual só pode haver contigenciamento quando houver queda na receita que impeça o cumprimento das metas fiscais.
Mesmo quanto aos possíveis méritos da lei, como o divulgado aumento da transparência fiscal, a lei peca pelo exagero – como o de exigir de uma pequena prefeitura complexos demonstrativos e simulações semelhantes aos obrigatórios para o governo da União.
Sua verdadeira face de favorecimento dos interesses do grande capital financeiro e de controle severo de despesas sociais está encoberta pelo esforço de FHC de vender a falsa imagem da lei – a da luta contra a corrupção e a malversação de dinheiro público, apelo que coincide com o sentimento do povo, que não tolera mais governantes desleixados e desonestos.
O desrespeito e desobediência do próprio governo em relação à lei são a prova cabal de que, para encher os bolsos do mercado financeiro, a equipe oficial age de maneira conivente e providencial. A punição está destinada somente à população, a governadores e prefeitos, previamente condenados pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
A origem da LRF
As primeiras iniciativas de criação da LRF apareceram no segundo semestre de 1998, a partir da eclosão da crise cambial que terminou com a assinatura do acordo com o FMI, em dezembro do mesmo ano, e com a desvalorização do Real em janeiro de 1999.
A dívida pública registrou um enorme crescimento nos últimos anos. Impulsionada principalmente pelas altas taxas de juros, foi multiplicada por cinco.
Quase desprezível foi a influência dos gastos públicos não-financeiros sobre o volume da dívida pública, que se agigantou simplesmente pela “rolagem” e pela incorporação dos elevados juros.
A dívida, portanto, é fruto dos custos financeiros das políticas monetária e, especialmente, cambial, adotadas pelo Plano Real. Essa situação se agravou especialmente após a desvalorização da moeda, quando a absorção pelo Tesouro Nacional e Banco Central de riscos privados chegou a elevar em mais de 60 bilhões de reais a dívida líquida do setor público.
A necessidade de estabilizar e deter o crescimento em “bola de neve” da dívida pública fez o governo federal patrocinar a edição de uma lei que limitasse os gastos públicos de forma draconiana, com o objetivo confesso de gerar recursos para financiar os custos financeiros, diminuindo a “rolagem”.
Esse objetivo em relação à dívida está claramente afirmado na mensagem com a qual o presidente da República enviou o projeto da LRF ao Congresso no início de 1999.
Mas apesar de ter estabelecido essas regras para dar sustentação fiscal à dívida pública, e apesar da mudança no regime cambial, manteve sem mudança o cerne da política econômica que gerou tão gigantesca dívida: a vulnerabilidade externa, a baixa taxa de crescimento e a volatilidade das taxas de juros.
Quando o presidente Fernando Henrique Cardoso, então candidato à reeleição, pronunciou seu famoso discurso de setembro de 1998, no Itamaraty – dirigido aos credores externos e com o qual estabeleceu tacitamente os seus compromissos com o “ajuste fiscal” depois formalizado no Acordo com o FMI – já afirmava o “equilíbrio fiscal” como seu principal objetivo.
Aproveitou também para conclamar governadores, prefeitos e os outros Poderes a fazer o mesmo. Mas naquela data não fez nenhuma alusão à necessidade de uma lei para obrigá-los a tanto.
Só após a assinatura do acordo com o FMI, em dezembro daquele ano, quando o Fundo trouxe o modelo de lei de “responsabilidade fiscal” que tinha sido aplicado no México e na Argentina, é que a necessidade dessa legislação entrou nos planos do governo federal e se transformou em prioridade no Congresso Nacional.
Os reais e imediatos objetivos da Lei de Responsabilidade Fiscal
A mídia oficial tem vendido uma falsa imagem da LRF, com o precioso apoio da grande imprensa, que tem agido como coadjuvante do governo numa gigantesca manobra de manipulação da opinião pública. Além do conteúdo da lei ser bastante diferente do que foi divulgado, a LRF terá, também, efeitos bem diferentes do alardeado. Além do propósito essencial da lei, já citado, ela tem objetivos imediatos, que podem ser assim resumidos:
a) proteger os interesses financeiros, reduzindo seus riscos e aumentando a tendência à concentração de renda;
b) perpetuar em lei a atual política neoliberal, “engessando” as futuras administrações de qualquer dos entes da Federação, impondo a todos, agora e no futuro, independentemente da orientação política de seus governantes, a aplicação da linha econômica de viés financista do atual governo federal;
c) impor penas ao gestor administrativo que não se submeter aos ditames da política neoliberal institucionalizada nessa LRF. Chegou-se ao extremo de aprovar uma outra lei, de caráter penal, criminalizando as decisões de gestão administrativa que se afastarem da linha imposta pelo atual governo;
d) quebrar o princípio federativo, restringindo a autonomia de estados e municípios na gestão de seus recursos, fixando os parâmetros de metas fiscais dos governos subnacionais, concentrando na União a gestão macroeconômica e minimizando a influência desses governos na atividade econômica;
e) congelar os gastos públicos correntes, em especial as despesas com pessoal e outras com a manutenção ou melhoramento dos serviços públicos, inviabilizando a adoção de melhorias e expansão desses serviços, já que novas despesas de natureza continuada só podem ser adotadas mediante a criação de novos tributos, não podendo utilizar-se de aumento da arrecadação de tributos já existentes; e
f) em última instância, a finalidade da lei é dar garantias ao credor financeiro.
Governo da União não cumpre a LRF
Um fato é evidente: a União não vem cumprindo a Lei de Responsabilidade Fiscal. Esse fato é uma prova de que o governo federal parece entender que a lei foi feita para Estados e Municípios e não para a União; no máximo, podendo ser obedecida, ou invocada, para inviabilizar pleitos de ministérios como o da Educação ou o da Saúde, dentro do próprio Executivo. Além disso, a desobediência também revela a inadequação de muitos dispositivos da LRF para com a prática da gestão pública. Com efeito, o Poder Executivo e sua maioria no Congresso Nacional vêm seguidamente infringindo ou fazendo tábula rasa de suas disposições, no curto espaço de sua vigência.
Já na aprovação do orçamento do exercício de 2001, por força da revisão das metas fiscais fixadas no acordo com o FMI, o governo federal editou Medida Provisória em agosto de 2000 alterando a meta de superávit primário da União, menos de 60 dias depois do Congresso aprovar a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Isso mostra que as metas fiscais também podem, quando conveniente, ser “flexibilizadas” e, para o Governo Federal, que dispõe de Medida Provisória, sequer precisa ser aprovada pelo Legislativo para vigorar.
Para assegurar a produção dos resultados fiscais, a LRF introduz um minucioso mecanismo de controle sobre as receitas públicas e as despesas correntes associadas à prestação dos serviços públicos.
Sobre as receitas, o texto é taxativo: “Constituem requisitos essenciais da responsabilidade na gestão fiscal a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação”. Prevendo, em seguida, uma das muitas sanções cabíveis: “É vedada a realização de transferências voluntárias para o ente que não observe o disposto no caput, no que se refere aos impostos”. Estabelece ainda restrições para a concessão ou ampliação de incentivo ou benefício que resulte em renúncia. É preciso sempre demonstrar que a renúncia não afetará as metas de resultado previstas. A mesma deve estar prevista na lei orçamentária ou ser acompanhada de compensação, através do aumento da receita de outros tributos, através de elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.
Um controle similar é feito sobre as despesas. Qualquer ato que crie ou amplie despesas deve sempre demonstrar que o resultado fiscal previsto está assegurado. Quando o aumento incidir sobre uma despesa obrigatória e de duração superior a dois exercícios, o controle é ainda mais rígido. Será necessária a compensação, mediante corte em outra despesa também obrigatória ou aumento da receita. E, não vale qualquer aumento. A LRF somente considera como aumento real, o resultante da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.
Cabe à lei de diretrizes orçamentárias apresentar um demonstrativo com a “margem de expansão” dessas despesas, equivalente a esse aumento real da arrecadação. Nos termos da LRF, o aumento das despesas não pode se dar por conta de medidas como o combate à sonegação ou a melhoria da máquina fiscal e nem mesmo pelo crescimento da economia.
Listamos em seguida uma série de leis federais que, apenas no período posterior a 20 de outubro de 2000, quando entraram em vigor as penas criminais (Lei 10.028/2000), foram sancionadas ao arrepio da LRF, exatamente por ferirem esses preceitos:
a) diminuição do imposto de renda da pessoa jurídica – (MP 2.062): a compensação da queda de receitas foi feita através de cortes na reserva de contingência;
b) ampliação do Sistema Integrado de Imposto e Contribuições das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte – SIMPLES (Lei 10.034/2000): não estimou nem fez qualquer compensação para a renúncia fiscal;
c) isenção de contribuição previdenciária de instituições religiosas para ministros de confissão religiosa (Lei 10.170/2000): não estimou nem fez qualquer compensação para a renúncia fiscal;
d) aumento aos militares (MP 2.131/2000): aumento de despesa continuada sem a respectiva compensação ou aumento da base tributária;
e) incentivo fiscal à informática (Lei 10.176/2001): não estimou nem fez qualquer compensação para a renúncia fiscal; e f) utilização, na LOA 2001, de previsão de aumento de receita tributária com expansão do PIB e com o combate à sonegação como margem de expansão permanente de receita, desrespeitando o § 3º do art. 17.
Nada temos em contrário quanto ao mérito das normas legais aqui apontadas como exemplos de violação da “responsabilidade fiscal”; elas são perfeitamente legítimas. As renúncias fiscais e os aumentos de despesas concedidos nesses atos são também perfeitamente compatíveis com a receita estimada para o exercício de 2001 e seguintes, em nada comprometendo nem o “equilíbrio fiscal” nem a solvência fiscal da União. Apenas não se enquadram nas draconianas e irrazoáveis regras da Lei Complementar nº 101/2000.
A grande quantidade de exemplos de descumprimentos literais da LRF por parte da União, em um período de apenas 100 dias, mostra o quanto a Lei é irrealista na sua rigidez. Apesar da edição de tantos atos ilegais, há total impunidade para o governo da União. Isto demonstra a conveniência; o resultado poderia ser bem diferente se os atos que descumprissem a lei tivessem emanado de qualquer outro ente, federal, estadual ou municipal.
A possibilidade de um agir seletivo quanto ao descumprimento da LRF deve ser uma das principais preocupações dos governos estaduais e municipais. Ao contrário do que vem acontecendo à União, as desobediências dos demais entes federativos podem não ter a mesma complacência. O Ministério Público, a imprensa, os adversários políticos, ou o próprio governo federal – quanto às denúncias e retaliações – e os tribunais de Contas e da Justiça – quanto aos julgamentos – podem atuar como irredutíveis fiscais da lei, por mais legítima que tenha sido a causa. Essa seletividade pode ainda ser utilizada de forma proporcional, considerando a importância política do ente ou o grau de divergência ou incômodo político causado ao governo central. A LRF é uma candidata perfeita a se transformar em norma de conveniência política, uma lei para os adversários.
A quem serve essa Lei?
Essa é a pergunta fundamental, pois permite penetrar em sua essência e no âmago de seus propósitos. A lei tem um beneficiário certo: o capital financeiro – foi feita para dar garantias ao credor financeiro, para cortar quaisquer outros gastos e canalizar os recursos para o pagamento da dívida financeira. Os próprios demonstrativos que ela exige que sejam apresentados pelos gestores administrativos têm a clara finalidade de manter esses credores informados sobre os riscos que correm.
Todo o resto é marketing: a lei não veio para punir os corruptos, não veio prevenir ou remediar a malversação dos dinheiros públicos. Veio sacramentar a atual política do governo brasileiro, de subserviência aos credores financeiros. Veio institucionalizar a atual política pró-capital financeiro do governo FHC, tentar engessar as futuras administrações. Isto é: o governo pretende que mesmo que a oposição ganhe as eleições, a nível federal, estadual ou municipal, se veja forçada a continuar a mesma política neoliberal de hoje, por força de lei. É isso a LRF.
É preciso combater a falsa imagem dessa lei. É necessário questioná-la na Suprema Corte, criar um amplo movimento pela revisão de suas disposições mais draconianas, se a correlação de forças não permitir a sua derrubada pura e simples.
Apesar de seu caráter essencialmente antipopular, aqui desmascarado, é possível aos movimentos populares fazer uso dessa lei? Entendemos que sim. Em casos pontuais, como instrumento de pressão política, pode-se recorrer a ela. Em alguns casos, com certa perspicácia jurídica e política, o feitiço pode se voltar contra o feiticeiro.
Na maioria das vezes, porém, ela pode ser usada, preferencialmente, pelos adversários dos movimentos populares, quando estes conquistarem alguma administração. Por isso, entendemos que o mais importante é a luta política pela alteração da LRF.
Sérgio Miranda é deputado federal pelo PCdoB/MG
EDIÇÃO 61, Mai/Jun/Jul, 2001, PÁGINAS 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65