As negociações da ALCA são muito mais amplas do que as de formação de uma área de livre comércio tradicional. Seus efeitos poderão ser muito mais profundos do que a mera ampliação do comércio de bens e serviços.

Assim, as estimativas que vêm sendo apresentadas de quanto aumentariam as exportações brasileiras, e de que setores e empresas se beneficiariam com a derrubada de barreiras tarifarias e não-tarifarias nos EUA e nas Américas, discutem apenas a questão mais superficial dessa iniciativa estratégica dos EUA, a Hiperpotência, e ocultam suas principais conseqüências.

A principal conseqüência da ALCA será a radical limitação, e até mesmo eliminação por tratado internacional de que participará a maior potência do mundo, da capacidade soberana do Estado brasileiro de articular, estimular e promover, por meio de políticas comerciais, industriais, tecnológicas, agrícolas e de emprego, o desenvolvimento econômico, como tal entende-se a acumulação de capital; a diversificação e integração do parque produtivo; o aumento da produtividade e o emprego da mão-de-obra; e a redução gradual das disparidades, inclusive regionais, e da vulnerabilidade externa.

O corolário desse processo de redução negociada da soberania será, como é natural, a diminuição da possibilidade do Brasil promover e defender seus interesses de toda ordem, inclusive políticos e estratégicos, na dinâmica de um mundo multipolar que está emergindo, com a progressiva formação do Estado europeu, a emergência econômica e política da China – futuro maior PIB do Planeta –, e, em um segundo plano, o Japão, a Rússia e a Índia. Este mundo multipolar será, como tudo indica, violento, arbitrário e concentrador de riqueza, poder e conhecimento.

O Brasil, por suas características de extenso território, grande população, recursos naturais abundantes, nível de desenvolvimento industrial, capacidade tecnológica, unidade de idioma, ausência de agudos conflitos religiosos e étnicos, reúne condições mais do que suficientes, mesmo quando comparado àqueles países, para participar desse processo de forma autônoma, caso não se deixe incorporar a nenhuma das esferas de influência que se organizam, levado pelas sereias ideológicas do pan-americanismo, do “livre” comércio e da integração.

A ALCA tem como objetivo central criar um conjunto de regras, que, limitando a capacidade de formular e executar política econômica, incorpora de forma assimétrica e subordinada a economia brasileira ao território econômico (e ao sistema político) norte-americano.
Somente remotamente tem ela a ver, na concepção estratégica norte-americana, com os micro, mini, pequenos e médios Estados das Américas.

Depois da ALCA, o Brasil não mais poderá exercer políticas capazes de atrair e disciplinar os investimentos estrangeiros, de forma a ampliar a capacidade instalada, estimular a criação e integração das cadeias produtivas, promover a transferência efetiva de tecnologia e o fortalecimento do capital nacional.

As mega-empresas multinacionais poderão vir a adquirir, no espírito do esdrúxulo projeto de Acordo Multilateral de Investimentos (AMI), um poder superior ao dos Estados nacionais.
Depois da ALCA, o Brasil não mais poderá exercer políticas comerciais, industriais e tecnológicas efetivas, capazes de criar novas vantagens comparativas dinâmicas pelo estimulo ao surgimento de empresas, pois não terá mais nenhuma possibilidade de proteger tais empresas da competição avassaladora das mega-empresas já existentes nesses setores, pois não terá mais tarifas e barreiras, em especial e provavelmente em setores de tecnologia mais avançada.

Depois da ALCA, o Brasil não mais poderá utilizar o poder de compra do Estado para fortalecer a empresa nacional, desenvolver novas tecnologias, aumentar sua escala de produção e ter empresas capazes de disputar mercados no exterior, em qualquer região do mundo, por não estarem vinculadas aos esquemas de divisão de mercados praticados pelas multinacionais.

Depois da ALCA, o Brasil se tornará ainda mais indefeso diante do poder, agora acrescido, dos detentores de tecnologia e não disporá mais dos investimentos necessários para combater os abusos decorrentes do uso anti-social de patentes, como o caso das patentes farmacêuticas revelou de forma escandalosa.

Depois da ALCA, não haverá, para todos os fins práticos, mais Brasil, como possibilidade e visão de construção de uma sociedade mais democrática, mais justa, menos desigual, mais próspera, de acordo com os traços nacionais e culturais que a duras penas os brasileiros vinham construindo ao longo de séculos, contra a crua opressão colonial e, hoje o sofisticado controle neocolonial.
Samuel Pinheiro Guimarães é embaixador e ex-diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais do Itamaraty. Este artigo foi publicado originalmente no Jornal do Brasil, de 20/4/2001.

EDIÇÃO 61, Mai/Jun/Jul, 2001, PÁGINAS 12, 13