O Fórum de Porto Alegre teve a capacidade de “desnaturalizar” as atuais relações neoliberais, e colocou em cena a existência de uma alternativa a elas
Com satisfação participo deste debate que comemora os 20 anos da revista Princípios, que tem dado importante contribuição para o debate teórico e político do país – o qual ainda nos faz falta, devido à certa tendência ao normativismo e ao autoritarismo acadêmicos existentes em nossa cultura política e história ideológica.

Ao fazer uma reflexão sobre o Fórum Social Mundial, podemos iniciar por uma crítica ao pensamento tradicional da esquerda sobre questões dessa natureza. Não significa invalidar o pensamento desta, mas de uma forma tradicional de abordagem dos grandes acontecimentos internacionais a partir das internacionais históricas, cuja centralidade analítica se localizava na categoria das classes sociais.
Esta categoria não perdeu a centralidade para a compreensão da sociedade capitalista, mas tem de ser contextualizada dentro de um movimento, hoje, completamente diferente daquele que constituiu as bases de sustentação materiais e políticas das grandes revoluções burguesas e também – do ponto de vista estritamente econômico – da segunda revolução industrial.

Esse acontecimento de grande magnitude – a primeira concentração de resistência política, ideológica e cultural ao neoliberalismo em escala mundial – estabeleceu uma identidade geográfica a partir de um cenário de diversas origens políticas e culturais. Desde um grupo guerrilheiro tradicional, reconhecido como força beligerante pelo próprio poder político de seu país, como as Farc da Colômbia, até as organizações pacifistas budistas, todos se encontraram sob uma consigna de que outro mundo é possível – com racionalidades diferentes e motivações políticas distintas, mas unificados nessa centralidade. Suas contestações tanto podem ser abertamente revolucionárias quanto de caráter reformistas, conjunturais ou democráticos.

O Fórum Social Mundial representa, assim, elementos que podem ser deduzidos dessa situação histórico-universal. Um deles é o estilhaçamento, a fragmentação e a dissolução dos padrões estruturais clássicos da segunda revolução industrial – com seu grande pacto social-democrata, sua classe operária industrial forte e seus sindicatos negociando contratos sociais e jurídicos de integração e coesão social, que resultaram nos grandes movimentos reformistas vigentes por cerca de 40/50 anos neste século. Essa sociedade fragmentou-se completamente: mudou o perfil da classe operária e das classes trabalhadoras em geral, aguçaram-se as formas de exploração pela intensidade dos ritmos de trabalho e também pelo aumento crescente da reserva de mão-de-obra pela exclusão, que permite um rebaixamento dos padrões sociais dos assalariados. Em suma, o capitalismo ficou mais moderno e tecnologizado; mas, ao mesmo tempo, mais bárbaro, insensível e violento – ao contrário do que dizem os neoliberais.

Assim, os grandes confrontos de classe da segunda revolução industrial começam a tomar outras formas, especialmente com as mudanças ocorridas nos últimos vinte anos. Isso se dá dentro de uma profunda “desordem” da ordem capitalista – nas relações jurídicas, no desordenamento das funções do Estado, e na legitimidade, credibilidade e governabilidade das elites tradicionais da burguesia. Tudo isso, estranhamente, tem se dado com maior capacidade de amortecimento, cooptação e manipulação da vida social, disponibilizada pelas transformações tecnológicas ocorridas nesse período – em que a própria informação foi transformada em mercadoria e instrumento de dominação política. Esse processo passa até mesmo a criminalizar a grande política de uma maneira jamais vista na história do capitalismo – grandes lideranças de países centrais terminam ou interrompem seus governos como casos de polícia. Isso forma um novo fator de ordenamento social dentro dessa desordem na medida em que, ao se tornar regra, tal criminalização cria um sistema normativo determinado e, este, por sua vez, polariza as equações, os diálogos políticos e as composições nesse desordenamento. Esse processo ocorre hoje também no Brasil, quando, por exemplo, da disputa entre essas “grandes figuras morais”, Jader Barbalho e Antônio Carlos Magalhães.

Essa situação vem, gradativamente, reduzindo a importância dos partidos políticos nas grandes mobilizações sociais – vitais na sociedade – e, por isso, é preciso pensar uma forma de renovar as velhas concepções de partido. A forma partido moderno, que serve tanto aos conservadores quanto aos partidos operários clássicos, parece insuficiente para apreender e conter no seu interior a fragmentação e a desordem da atualidade. Tanto que, por dentro do Fórum Social Mundial, passava uma resistência – contida, mas sentida – a todos os partidos. Isso não pode ser abordado simplesmente como algo imediatista ou fenomênico, que lá havia pessoas com visões um pouco acadêmicas, economicistas, basistas ou meramente movimentistas daquele evento. Deve se compreender que algo de transformador está ocorrendo nas relações de dominação, nas relações políticas, nos processos de contenção da sociedade de classes que geram determinadas influências.
O Fórum Social Mundial foi, assim, um momento de tecelagem dessa constelação e desses fragmentos, unificados em torno dessa visão de outro mundo ser possível.

Há duas categorias de dois grandes marxistas que remetem de uma forma muito sábia para a situação histórico-universal em que vivemos. Para Frederich Jameson, marxista norte-americano, a vida manipulatória do neoliberalismo maduro, articulado mundialmente, promove a histeria do sublime; e isso remete a outra categoria de George Lucáks, que afirmava a tendência da sociedade capitalista em promover sempre a centralidade do presente – um presente sem passado e sem futuro. Essa histeria do sublime e essa centralidade do presente são importantes para entender a luta política, ganhar consciências e tentar construir novas formas de coesão política e solidariedade e, até mesmo, para reconstituir o que pode se apresentar como um novo sujeito transformador – uma constelação de partidos, ou uma constelação de partidos com organizações não-governamentais, ou núcleos de direções políticas articuladas sobre uma visão que possa romper com essa inércia elaborada, com essa dominação sofisticada vigente.

As formas de exclusão geradas pelo desenvolvimento capitalista nessa fase são mais agudas do que as da velha exclusão do desemprego da segunda revolução industrial. Geram uma brutal exclusão social, fragmentando os sujeitos das lutas sociais e das lutas transformadoras das demandas sociais advindas da classe trabalhadora organicamente articulada na fábrica e nos sindicatos; e gera uma outra exclusão tão aguda e violenta – a exclusão do conhecimento, da informação, da verdade, da cultura –, fazendo com que as pessoas e os grupos sociais se prendam cada vez mais à sua imediatidade. Assim, a política passa a ser um grande ritual formal de cenas simbólicas referenciadas pela mídia, e as pessoas passam a viver mais intensamente a sua realidade isolada, fragmentada – ou seja, sua histeria do sublime ou sua centralidade do presente.

O Fórum Social Mundial teve a capacidade de “desnaturalizar” essas relações e colocou na cena pública e política mundial a existência de um contraponto possível a essa situação aparentemente estagnada e sob controle. Ao reunir um conjunto de personalidades, organizações, partidos e governos que se chocam frontalmente com o projeto neoliberal, que contestam Davos, que dizem não haver apenas um caminho, traz um novo dado político-cultural em um novo patamar de disputa sobre os futuros da sociedade e do país – sobre o futuro da humanidade.

Nesse processo, segundo o sociólogo Boaventura de Souza Santos, um dos grandes pensadores da pós-modernidade, levantar hoje a questão da igualdade não é suficiente, pois ela é importante quando nos sentimos realmente inferiores; hoje, neste mundo fragmentado, é importante também levantar a questão da diferença – quando a diferença nos exclui e nos humilha. Assim, ao lado da questão da classe social – permanente e estrutural – existem as questões de gênero, raça, exclusão pelo conhecimento, sexual, ou seja, um conjunto de questões que passaram a ter uma nova importância política em função dessa nova situação estrutural. Temos de reconhecer, portanto, que se os partidos chamassem o Fórum Social Mundial, talvez ele não tivesse a representação que teve. E essa constatação deve ser o ponto de partida metodológico para a reflexão sobre a forma de fazer política, as velhas e as novas, incluindo a velha forma partido – não para se dissolver, mas para se adequar a essa situação histórico-universal até mesmo para recuperar sua capacidade de se tornar um sujeito transformador democrático-radical, socialista reformista ou que se proponha uma transformação revolucionária da sociedade.

Segundo Boaventura de Sousa Santos – e discordo dele – um novo nome para o socialismo é “democracia sem fim”, fazendo recordar a antiga formulação de que “o movimento é tudo”. Porém, mesmo com as limitações de seu pensamento, a questão democrática – com a atual fragmentação social, com o reconhecimento das diferenças – é poderoso instrumento de legitimação e transformação revolucionária. A questão democrática adquire uma nova dimensão e especificidade na atualidade, fundamentalmente no que se refere à questão do Estado. É impossível pensar um Estado democrático sem pensar nesse conjunto de diferenças organizadas e articuladas socialmente – das classes trabalhadoras com suas formas específicas até esses outros fragmentos de mobilização em torno das questões específicas (raciais, sexuais, culturais…) – e nas formas das novas esferas de controle do Estado de fora para dentro. Isso faz com que se retome a velha visão do direito público, que vem da Comuna de Paris de 1871, readequando-a a uma nova sociedade de classes e a novas formas de dominação, onde a questão democrática se torna um instrumento imprescindível para enfrentá-las.
Desse modo, o Fórum Social Mundial não pode ser apreendido pela esquerda socialista – em que me incluo – apenas como um grande evento político de contestação ao neoliberalismo. Ele é também uma “crítica das armas”, sólida e contundente, aos limites que estamos apresentando para enfrentar – hoje – as grandes lutas sociais e as novas formas por onde verte a luta de classes, pois pretendemos recuperar a utopia da igualdade e da transformação democrática e socialista da sociedade, que nos unifica.

Tarso Genro é prefeito de Porto Alegre e coordenador do Conselho Político da Frente de Oposição