Com satisfação estamos comemorando duas décadas de Princípios, revista teórica e de informação, que nesse período enfrentou desafios e conseguiu desenvolver importante contribuição ao debate de idéias – uma carência em nosso país. Ao abordar o tema proposto, à luz do que aconteceu no Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, podemos situar esse evento no contexto histórico e mundial em que vivemos.

O processo de globalização – enquanto idéia de ocupação dos espaços econômicos e de relações sociais no mundo – é um fenômeno marcante na atualidade, pois o mundo caminha para derrubar as fronteiras; porém, a globalização que pensamos é a de união e da solidariedade entre os povos do mundo, com o respeito a suas diversidades nacionais, para alcançar desenvolvimento, progresso e bem-estar para toda a humanidade. Contudo, não é essa a globalização que presenciamos; na realidade, vivenciamos um processo inelutável decorrente do próprio desenvolvimento das formas de acumulação capitalista. Marx, mesmo sem fixar prévia e detalhadamente, afirmava que o capitalismo caminhava para um processo de globalização e de universalização financeira. No final do século XIX e início do século XX, Lênin, apoiado em trabalhos de conceituados economistas, analisou o processo de universalização do capital, de monopolização capitalista e a formação e o crescimento do capital financeiro, que se estendia pelo mundo. Hoje, esse processo de globalização está ligado à política – neoliberal – do capitalismo, uma espécie de “reprise” do liberalismo nas condições presentes.

A política neoliberal, na atual fase desse sistema, supera o próprio capitalismo clássico em selvageria e irracionalidade, e a anarquia provocada atinge um nível extraordinário de desenvolvimento na esfera financeira. Essa política neoliberal tem por característica, primeiro, um gigantesco e inédito processo de concentração e centralização dos capitais, da riqueza e da propriedade; segundo, a contenção do trabalho vivo; e, terceiro, justamente esse processo de desenvolvimento do capital financeiro que atingiu um nível inédito de hipertrofia especulativa. E, ao contrário de um movimento econômico neutro, tem seu centro num sistema mundial de poder, numa fase de globalização neoliberal sob a hegemonia dos Estados Unidos. Há, no presente, mesmo considerando suas contradições econômicas e políticas, uma unidade entre as grandes potências capitalistas no processo de exploração dos povos e em cujo centro encontra-se nos Estados Unidos. A política neoliberal surge como uma necessidade desses interesses.

Esse processo de globalização neoliberal vai provocando crises do capitalismo em escala mundial. Nesse contexto, o Fórum Social Mundial de Porto Alegre é – objetivamente – um reflexo dessas crises no âmbito mundial entre os povos e os diversos setores sociais, sobre os quais pesa o maior custo da globalização neoliberal. Desse modo, vivemos essa nova realidade e presenciamos o novo fenômeno da internacionalização objetiva da resistência e da luta contra o neoliberalismo. O Fórum de Porto Alegre expressa parte dessa resistência, bem como os atos internacionais que se sucederam e congregaram pessoas do mundo inteiro – ativistas políticos, sociais e culturais das mais diversas origens – para denunciar e travar sua luta contra o curso mundial dominante – em cidades como Seattle, Washington, Nice e Praga onde se reuniram instituições que expressam a política neoliberal (FMI, Banco Mundial, OMC etc). Na realidade, essa luta antineoliberal vai tomando, cada vez mais, uma feição de luta anticapitalista. Evidentemente, há diversas matizes e formas de ver as questões envolvidas, mas há um processo objetivo de resistência em crescimento na fase atual e que, como toda luta social em ascensão, envolve setores com posições e origens heterogêneas.

Desse modo, o Fórum Social de Porto Alegre expressou essa variedade – e riqueza – de toda a movimentação social mundial atual. Reuniu 18 mil pessoas de 122 países, em mais de 400 atividades, que trataram dos mais variados temas, levando em conta questões como “a produção de bens e serviços para todos”; “as cidades sustentáveis”; “a democratização e a identidade cultural”; e “os fundamentos da democracia e do novo poder”; refletindo, assim, as grandes preocupações desses setores sociais do mundo inteiro. O Fórum teve um traço de união na crítica antagonista ao modelo neoliberal vigente e na disposição de lutar contra o mesmo – apesar da diversidade de entendimentos e da apresentação de saídas ilusionistas.

Nesse debate, devemos alertar para o fato de, na fase atual, ainda não podermos considerar o neoliberalismo como um modelo esgotado. Seria um erro fatal para seu enfrentamento. Tal modelo é transitório do ponto de vista histórico, porém não chegou ao seu fim, apenas se desenvolve cumprindo determinadas fases que se esgotam e busca novas fases de reciclagem para sua continuidade, implementando reformas em seu próprio âmbito. Essa constatação é fundamental ao processo de resistência a esse modelo, pois o movimento político e social não pode se confundir com algumas “reformas sociais” no projeto neoliberal; tampouco com a idéia de que bastaria a elaboração de um programa econômico alternativo tecnicamente perfeito para a abertura de novos caminhos.

Assim, nosso desafio é romper com esse modelo neoliberal. A saída é antes de tudo política. Envolve a aglutinação de amplas forças políticas e sociais interessadas em seguir por outro rumo. Essa ruptura não é uma questão simples porque, mesmo no seio da oposição e da resistência, pode haver ilusões em relação a certas reformas no modelo neoliberal, e que isso seria suficiente para uma mudança – as chamadas “políticas sociais compensatórias”, por exemplo, bastariam; poderia ser mantida a matriz econômica adicionada de um bom plano social; e, até mesmo, a equipe responsável pela política econômica, à qual apresentaríamos uma nova política social. Assim, vem se manifestando um conjunto de opiniões ingênuas e também oportunistas. Essa compreensão de encontrar soluções de parâmetro tecnocrático serve para encobrir o atual pacto político de poder que comanda nosso país e para impedir que seja mudado o projeto dominante. Alguns setores governistas, de perfil mais centrista, também falam na possibilidade de se pleitear uma certa retomada de desenvolvimento, “agora que já se alcançou a estabilidade”. Tal opinião faz adeptos no seio de parcela da oposição. Tais reformas do próprio modelo neoliberal não passam de mera ilusão – torna-se necessário um rompimento com o projeto e a derrota do pacto de forças que o conduzem.

Em nosso país necessitamos levar em conta a premência de um novo caminho: um novo modelo, a partir de uma ruptura que envolva – articuladamente – fatores políticos, econômicos e sociais. Não há como separar esses elementos indissociáveis sem incorrer em equívoco, pois não há solução ideologicamente neutra.

Se não construirmos um novo pacto de forças políticas e sociais, um novo bloco de poder, não há meio de abrir caminho para um novo modelo de caráter antineoliberal, visando alcançar uma soberania nacional diante da ordem global neoliberal. A burguesia brasileira, cada vez mais rentista, se encontra, na sua quase totalidade, associada e comprometida com os centros financeiros mundiais. O Estado brasileiro está crescentemente a serviço dos monopólios transnacionais – mínimo para as exigências nacionais e sociais, máximo para atender aos interesses dos grandes especuladores e da burguesia brasileira associada – e transfere um volume significativo de riqueza para esses setores. É basicamente esse o seu papel – o último orçamento destina mais de 40% para o pagamento do serviço da dívida pública (se considerarmos a rolagem desta, compromete quase 60%) –, configurando uma imensa transferência de capital para uma determinada camada articulada ao capital financeiro mundial e às transnacionais. Tais interesses intervêm em nossa sociedade conformando um novo perfil político hegemônico. Sem um poderoso pacto de forças com grande base político-social – nos trabalhadores e na maioria da população – é impossível tal ruptura. Construir esse processo não é simples, pois vivenciamos uma situação em que a aplicação do projeto neoliberal criou uma série de contradições no país e, com isso, levou a maioria da população a se conscientizar aos poucos de que o mesmo é contrário aos seus interesses fundamentais; mas, por outro lado, diversificou as opiniões políticas – pelo novo perfil resultante da reestruturação neoliberal de nossa sociedade.

Essa realidade heterogênea gerou a atual diversificação política. Dessa forma, a dificuldade que enfrentamos, hoje, é – exatamente – conceber e construir uma grande frente de resistência e alternativa ao neoliberalismo. Como é grande a diversificação no seio da oposição, com suas diferenças de candidaturas políticas, romper com o atual esquema de forças hegemônicas e com os interesses poderosíssimos que submetem nosso país é tarefa complexa que requer persistência e mobilização popular ampla. Por sua vez, a luta de resistência não passa apenas pela ação interna, sendo de alcance mundial – o exemplo que o Fórum Social nos dá reforça esse sentido. Hoje, a luta contra o neoliberalismo é mundial e reúne países, povos, setores sociais, culturais e outros elementos. Em nosso país será muito difícil, para um governo de esquerda, buscar um novo caminho em meio à ordem mundial unipolar, pois o rompimento necessário é custoso e complexo e requer grande esforço político e social.

Assim, nosso maior desafio é reunir essas forças e conduzir o movimento de formação de uma ampla frente social e política. Necessitamos ampliar essa frente – além dos partidos de esquerda – para mais amplos setores políticos, sociais, culturais, científico-acadêmicos. Algumas iniciativas como o Conselho Político da Frente de Oposição e o manifesto Em defesa do Brasil, da democracia e do trabalho – que unifica posições e expõe as grandes bandeiras contra o neoliberalismo – precisam se transformar em extenso movimento cívico nacional. Isso demanda um gigantesco esforço político e uma luta conseqüente sem perder de vista a união de todas as forças possíveis. Para galvanizar tal união necessitamos, como base, de uma plataforma de ruptura com o atual projeto dominante – um projeto de alternativa ao neoliberalismo para o Brasil – e provocar esse debate na população, nas instituições, nas universidades, nas organizações e entidades da sociedade civil e populares, nos sindicatos e movimentos sociais; enfim, necessitamos envolver toda a nação.

Renato Rabelo é vice-presidente do PCdoB.