“A new wave da modernidade é inventar um sistema híbrido, meio socialismo, meio capitalismo”, disposto “a incorporar ‘outras tendências teóricas’ e ‘aberto’ às diversas correntes que se manifestam no movimento popular. Com a promessa de um novo modo democrático de organização”. Os teóricos dessa inovação abrigam-se sob a bandeira do pluralismo, e “consideram a existência de oposição organizada à direção e à linha do Partido como prova de democracia”. (1)

Essas palavras são de Rogério Lustosa, então editor de Princípios, na abertura de artigo onde enfrentou há mais de uma década, a crise do partido como forma de organização, cujo centro não é a crítica contra a existência dos partidos (embora haja quem os negue de forma radical), mas contra uma forma particular, o Partido Comunista. É moderno, para quem pensa assim, aquele que abandona os princípios leninistas – Partido de classe, que reúne a vanguarda do proletariado, valoriza a ação socialista consciente, e não espontânea: Partido que, organizado com base no centralismo democrático, é o instrumento para a superação revolucionária do capitalismo.

Estas teses proliferam mesmo entre dirigentes de uma organização avançada como o Partido dos Trabalhadores. No seminário sobre o “Socialismo e Democracia” (março de 2001), elas apareceram na afirmação de que o socialismo não está na ordem do dia, mas reduzido a um sonho, como disse o seu presidente de honra, Luís Inácio Lula da Silva.

Já a prefeita paulistana, Marta Suplicy, confunde socialismo com as etapas iniciais da transição entre o capitalismo e aquele regime, com controle político frouxo sobre a transição pois, pensa ela, deve haver eleições sob a forma democrático-burguesa (eleições livres), liberdade de imprensa (isto é, o direito de a burguesia ter seus próprios jornais), pluralismo sindical (o direito de cada corrente política organizar seus próprios sindicatos). Essa compreensão aproxima-se do padrão social democrata clássico e, por isso, condena regimes como o da República Popular da China, tachado por ela como “inimigo do socialismo” e “pior que os regimes capitalistas existentes”.

Para Lula, a passagem para o socialismo é uma espécie de evolução sem ruptura com o estado capitalista. Para ele, as administrações populares já constroem o socialismo, compreensão que denota uma visão processual e linear para aquele sistema. Lula tem, também, uma compreensão limitada do papel do proletariado como sujeito histórico. Ele acusa Marx de ter feito a previsão de que o proletariado seria, um dia, maioria na sociedade capitalista coisa que, garante, não ocorreu. Há aqui dois enganos. O primeiro, implícito, é aquele que avalia quantitativamente o papel do proletariado, e não qualitativamente.

É esta avaliação errada que está na base das teses segundo as quais o socialismo só estará na ordem do dia se o proletariado for maioria na sociedade. O segundo erro decorre da confusão entre proletariado e operário de fábrica. Ora, para Marx e Engels, proletários são todos aqueles que vivem da venda de sua força de trabalho. (2) Portando, a imensa maioria da sociedade capitalista moderna é formada por proletários, que vendem sua força de trabalho, embora regidos por regimes jurídicos diferentes e muitas vezes contraditórios.

Os princípios leninistas de organização são anátemas para os teóricos “modernos”, para quem falar em papel revolucionário do proletariado é uma fantástica mistificação. (3) Escandalizam-se, baseados numa compreensão empobrecida e falsificada da tese de Lênin de que a consciência socialista revolucionária surge de “fora” da luta econômica; luta essa que gera apenas uma consciência sindicalista.

É preciso esclarecer que a tese leninista não diz que a consciência socialista surge fora do proletariado, mas sim fora da luta econômica, e que a consciência socialista e revolucionária só pode surgir na política. (4) A compreensão da necessidade de superar o capitalismo é desenvolvida, e dominada, por uma vanguarda socialista e revolucionária de operários, intelectuais, profissionais, lutadores pelo progresso social, dotada da compreensão científica da necessidade e da possibilidade da derrota do capitalismo e sua substituição por uma formação social superior. A tese leninista desdobra-se, assim, na afirmação da vanguarda do proletariado, destacamento avançado que se organiza em um partido de classe, cujo programa é justamente – como escreveu Antônio Gramsci – “fundar um novo Estado”, e não apenas “corrigir” o Estado burguês. (5)

Outro aspecto da crítica ao modelo de partido leninista é a valorização da ação espontânea das massas como “garantia” contra a tendência ao autoritarismo dos dirigentes sobre o movimento. O espontaneísmo (“autonomia” dos movimentos ou da ação das “bases”), é visto aqui como a prova da autenticidade democrática de qualquer movimento contestatório ou reivindicativo – esquecendo-se, como lembrava Lênin, que esta separação é artificial, pois “o ‘elemento espontâneo’ não é mais do que a forma embrionária do consciente” que, deixada a si própria, dissipa-se em embates que têm o horizonte estreito são dos limites do capitalismo, cujas estruturas de poder não ameaçam. (6) Forma embrionária que é preciso desenvolver e elevar à “consciência da oposição irreconciliável” entre os interesses do movimento e “o regime político e social existente”. (7) Gramsci, um teórico comunista revolucionário injustiçado pela apropriação reformista que o transformou num campeão do antileninismo, é um continuador de Lênin nesse aspecto. O fato de que “em cada movimento espontâneo existe um elemento primitivo de direção consciente, de disciplina”, escreveu, é demonstrado indiretamente pela própria existência de “correntes e grupos que defendem a espontaneidade como método”. (8)

A crise da forma partido, dizem os renovadores, resulta de exigências da sociedade moderna. As novas formas de produzir baseadas nos avanços tecnológicos teriam criado um novo capitalismo. O impacto do fracasso da experiência socialista na URSS e no Leste Europeu espalhou a descrença em projetos coletivos de mudança social, e as formas de atuação política teriam de acompanhar essas mudanças, renovando-se.

Há um dogma aqui, a idéia de que as transformações técnicas provocaram o fim da centralidade do trabalho, levando a classe operária a um “processo terminal na história” (9). A conseqüência imediata desse dogma é o rebaixamento da luta de classes e sua limitação ao âmbito do sistema, a luta entre o capital e o trabalho, transformou-se num “simples conflito distributivo, a luta por parcelas do excedente”. (10)

Todos estes fatores teriam levado à “descoesão” da sociedade de classes e a “novos padrões de formação da identidade”. (11) A queda do Muro de Berlim afastou as classes e o coletivo, e pôs o indivíduo na base da democracia social. Com o Muro, diz o espanhol Manoel Escudero, dirigente do PSOE, caiu também a crença no progresso histórico, levando à fragmentação, à imprevisibilidade e ao ceticismo quanto a projetos reformistas. (12)

Idéias como essas estão no coração da crítica do partido como forma de organização para a luta política e revolucionária. “A forma do partido tradicional”, escreveu Tarso Genro, prefeito de Porto Alegre e dirigente do Partido dos Trabalhadores, “não consegue mais abranger” o enorme contingente das demandas contemporâneas. (13)

Essas constatações levam a duas posturas renovadoras fundamentais. Uma, anarquizante, recusa os partidos e enfatiza o papel dos movimentos sociais e das Organizações Não Governamentais (ONGs). Outra, reformista, social-democrata, oscila entre a afirmação da autonomia dos movimentos (sendo, assim, próxima da postura anterior), e a democracia burguesa radical. São temas recorrentes no debate político onde, há mais de um século, os marxistas combatem concepções anarquistas, de um lado, e reformistas, de outro.

A postura anarquista recupera temas do velho debate da década de 1870, que opôs Bakunin a Marx e Engels. Estes temas reapareceram no período revolucionário russo, no começo do século XX, e ressurgiram após o movimento contestatório de 1968. Os anarquistas, seguindo Bakunin, não aceitam a noção de classe social, e preferem falar em “massas”; rejeitam o papel dirigente do proletariado na revolução, trabalhando com o conceito da “unidade entre os oprimidos contra a dominação burguesa”. (14) É “nas aspirações comuns e no movimento espontâneo das massas populares de todos os países” que está a verdadeira unidade da Internacional, escreveu Bakunin. (15)

Há um eco anarquista indisfarçável na denúncia do autoritarismo que seria inerente aos métodos leninistas, reiterada por Claude Lefort. (16) Na recusa, por Coenéluis Castoriadis, do conceito de classe, acentuando “a atividade pela qual os homens, nos lugares sociais onde estão situados, vivem e agem o conflito social e, mais exatamente, constituem-no como conflito social". (17) Na monótona ladainha de Michel Foucault sobre o poder "que vem de todas as partes" (18), e sua valorização da ação direta como antídoto contra ele. (19) Na "revolução molecular", de Félix Guattari. (20) Nos "pequenos grupos" de Gilles Deleuze, onde não há mais a representação, mas apenas a ação. (21) Ou na convicção de André Gorz de que os partidos não passam de "correias de transmissão do poder" contra os movimentos autônomos que não querem exercer o poder de Estado sobre a sociedade, mas subtraí-la ao controle estatal para ampliar o espaço de autonomia e de autodeterminação. (22)

Estas teses de fundo anarquista, libertário, formam as linhas de defesa da autonomia dos movimentos sociais, que seriam "puros" por não estarem contaminados por intenções políticas. Capazes de apresentar suas reivindicações diretamente ao Estado sem a intermediação dos partidos, eles são hoje, para Anthony Giddens, a vanguarda do movimento "transformador". (23)

A postura reformista, social-democrata, que também emerge no quadro atual, incorpora elementos da crítica "libertária" e autonomista. Fazem uma crítica superficial, unilateral e formalista da ossificação e do autoritarismo dos métodos de direção adotados sob influência de Stálin, defendendo uma organização partidária onde a oposição ao estilo leninista é fortemente inspirada em Rosa Luxemburgo. Crítica da tomada do poder pelos bolcheviques, dirigidos por Lênin, em 1917, a revolucionária e marxista polaco-alemã formulou uma das pérolas do autonomismo, inscrita no programa da Liga Spartacus (que depois transformou-se no Partido Comunista Alemão): nosso partido não tomará o "poder enquanto a grande maioria da classe operária não tiver inequivocamente expresso seu voto". (24)

O partido de "novo tipo" preconizado pelos renovadores rebaixa, ou recusa, a compreensão classista do partido, numa visão reformista baseada ora na compreensão equívoca e deformada de Antonio Gramsci, ora em teóricos como Jurgen Habermas ou Anthony Giddens; e quase sempre na ciência social convencional.

Essa concepção pretende construir um partido transformador, mas sem uma filosofia oficial. A idéia de um partido de classe é vista como mitológica e mesmo anti-humanista (25). Nele, não há lugar para o centralismo democrático, que o revisionista Partido Comunista Brasileiro trocou, em 1990, por uma assim chamada "unidade democrática". Declaram-se plurais, isto é, partidos do socialismo democrático que abrigam "visões necessariamente diferentes das diversas camadas trabalhadoras (tomadas em seu sentido amplo) que coexistem em uma sociedade cada vez mais diversificada e complexa", como diz Tarso Genro, permitindo a livre e pública veiculação de opiniões “inclusive as que são minoritárias no partido". (26)

O espanhol Manuel Escudero faz a defesa mais radical desta forma gelatinosa de partido, pretendendo que eles sejam controlados por seus eleitores e simpatizantes que podem, filiados ou não, participar da escolha de candidatos e da própria administração partidária, abolindo “os últimos vestígios de modos de organização e comportamentos inspirados no centralismo democrático” (27)

Em muitos aspectos, esta renovação é uma rendição às formas burguesas, capitalistas, de organização da ação política e uma homenagem desmedida à teoria política convencional, acadêmica, que fundamenta e legitima teoricamente a ordem política capitalista e atribui aos partidos a dupla função de agregar votos, constituindo-se num canal para a participação dos cidadãos; cabe-lhe também conceber programas alternativos que poderão ser postos em prática quando o partido chegar ao governo via eleições. (28) Outra forma de ver a questão atribui a eles articular e agregar interesses: a) expressando ou dando voz a interesses dados na "arena político institucional", e b) somando ou agregando "interesses diversos, de maneira a dar-lhes peso e significação". (29)

Isto é, o papel do partido é veicular os anseios e demandas presentes na sociedade e funcionar como grupo de pressão sobre o governo ou o Parlamento, ou mesmo disputar o comando do governo, no âmbito da "arena político institucional", ou seja, no espaço constituído pelo Estado.
Esse é outro aspecto fundamental: o Estado é visto como “arena” ou "espaço do regramento dos conflitos sociais". (30) É a versão sofisticada da tese burguesa do Estado neutro em relação às classes – aqui, ele é visto também como o local adequado para a solução dos conflitos sociais, tirando a luta de classes das ruas, da sociedade, e submetendo-a, na forma de "conflito de interesses", às regras previsíveis, desradicalizadas e controladas dessa "arena político institucional". Nessa linha, Escudero defende uma política domesticada, sem o "pathos trágico e heróico”, mas com “um ar de normalidade cívica"; os políticos devem ser "cidadãos normais desempenhando uma função cívica". (31) Político comunista como tribuno da plebe, como queria Lênin, nem pensar…

O objetivo dessa política é a colaboração de classes, a conciliação entre a burguesia e os trabalhadores, cujas exigências são crescentes em situações de normalidade democrática prolongada. A singularidade desse "compromisso democrático estável" reside na criação de regras para equacionar as contradições geradas pelo capitalismo, no interesse de sua integridade e permanência, evitando a eclosão aberta e explosiva dos conflitos sociais (32). Seu modelo é a social democracia, cujo "compromisso social básico disciplina de maneira bastante explícita as relações entre o capitalismo e a democracia", atenuando os conflitos sociais de tal forma “que os trabalhadores aceitam a propriedade privada e o conseqüente controle dos investimentos pelos capitalistas, enquanto estes aceitam a democracia e as políticas sociais do Estado em favor dos trabalhadores que tendem a decorrer da operação continuada de um Estado democrático e aberto". (33)

Entretanto, mesmo esse compromisso desradicalizado é insuficiente para a defesa do capitalismo, exigindo também a "neutralização" dos partidos revolucionários. Parece clara, diz Fábio Wanderley Reis, "a conexão existente entre a neutralização mais ou menos cabal de partidos políticos de orientação contestária e revolucionária” e “a criação de condições gerais de governabilidade básica no plano da sociedade e de eficiência administrativa por parte do Estado". (34) Não podia ser mais claro: ou desradicalizar os partidos e neutralizar aqueles que defendem a revolução.

Um dos slogans da moda é a “democracia dialógica”, conceito introduzido por Jurgen Habermas, e cuja importância é frisada por Anthony Giddens como método para resolver questões controversas na arena pública, ou pelo menos tratar delas, através do diálogo e não da força. (35) Habermas criou-o para afastar a idéia de revolução, opondo “o poder comunicativo dos cidadãos" à "visão clássica da revolução – a conquista e a destruição do poder de estado". (36)

A perda de substância dos partidos socialistas e comunistas nos principais países europeus é real, levando de fato à fragmentação, descoesão, perda da identidade de classe, imprevisibilidade, descrédito no projeto revolucionário, etc.

É preciso notar, contudo, que essa realidade precede à derrocada do socialismo no Leste Europeu e, ao contrário das afirmações correntes, decorre da política e não da técnica. O oportunismo e a incapacidade dos partidos social-democratas e reformistas em encontrar respostas proletárias para a crise do capitalismo dos anos 60 e 70 criaram as condições políticas para a vitória capitalista da década de 1980. Foi a impotência política do oportunismo social-democrata e a adesão de muitas lideranças aos programas de ajuste neoliberal que permitiram a imposição, pelo capitalismo, de “novas formas de produzir” que, incorporando os avanços tecnológicos da informática e da robótica, reestruturaram as relações de trabalho em prejuízo do proletariado.

Este cenário, onde o neoliberalismo foi vitorioso com Thatcher, Reagan e a onda conservadora que veio com eles, resulta da longa história de oportunismo daqueles partidos que representavam os trabalhadores mas estavam integrados à engrenagem do capitalismo, e das conseqüentes derrotas da revolução na Europa.

Duas dessas derrotas tiveram conseqüências mais permanentes: o fracasso da revolução alemã de 1918 e o da insurreição de 1968.

A traição dos chefes da social-democracia alemã à revolução alemã em 1918 enfatiza o prejuízo que é a falta de um partido conseqüentemente revolucionário à frente de um processo de luta radical e que envolveu toda a nação após a derrota na I Guerra Mundial. A direção do Partido Social Democrata Alemão (SPD) – o partido que fora, no passado, de Marx e Engels – imprimiu um rumo contra-revolucionário ao movimento desde que assumiu o governo da República, depois que as massas levantadas varreram a monarquia.

Era uma conjuntura revolucionária francamente insurrecional, cujo sujeito histórico se constituía pelos operários e soldados organizados em mais de 10 mil conselhos semelhantes aos sovietes (número maior que o de sovietes existentes na Rússia de 1917). Friedrich Ebert, o primeiro ministro social-democrata (que assumiu o governo com o afastamento do kaiser) era um desses sindicalistas com o fetiche da ordem, que dizia "odiar a revolução como um pecado". Seu governo recomendou aos manifestantes que "deixassem as ruas e assegurassem a calma e a ordem". Contra o poder popular que se constituía, apregoou a Assembléia Constituinte, que faria a "democracia de todo o povo", contra a "ditadura de uma só classe". Em defesa dessa "democracia", aliou-se aos generais do monarca deposto, para "lutarem juntos contra os bolcheviques". Fomentou os esquadrões da morte (os "corpos livres" dirigidos pela direita), que lavaram com sangue o sonho proletário de uma sociedade superior, assassinando mais de 15 mil comunistas em toda a Alemanha, entre eles Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht; eliminando assim os elementos mais dinâmicos da revolução. (37)

Foi sob os cadáveres desses milhares de lutadores da classe operária e do progresso social que se ergueu, na Europa do entre guerras, aquele arranjo institucional que permitiu a desradicalização da luta de classe, cabendo aos líderes social-democratas o papel de pacificadores da militância esquerdista, “sobretudo quando conduzida ou inspirada por comunistas". Esse papel acentuou-se após a II Guerra, transformando os "partidos social-democratas em inestimáveis aliados dos partidos conservadores". A tendência dos partidos comunistas à social-democratização foi confirmada, na década de 1970, com sua adesão ao eurocomunismo e a "total aceitação do sistema parlamentar, do pluralismo político e da crença num avanço para o socialismo por meios constitucionais". (38)

O arranjo institucional formado após a I Guerra Mundial manteve-se e aprofundou-se depois da II Guerra, quando os partidos comunistas (particularmente o italiano e o francês), desistiram de tomar o poder, como Palmiro Togliatti assegurou no discurso que pronunciou em 1944, em Nápoles, de volta do exílio na União Soviética, afirmando o objetivo mais limitado de construir uma democracia antifascista e progressista. Foi ali que ele lançou a idéia de um "novo partido de massas", um partido reformista, amplo e ilimitado. (39)

Esse arranjo político permitiu a reconstrução capitalista da Europa no pós-guerra. Nele, coube aos partidos socialistas e comunistas agregar e articular os interesses dos trabalhadores dentro do regime político e social existente, tornando-se parte desse regime. Enquanto puderam, bem ou mal, atender tais objetivos limitados, tiveram grande êxito eleitoral, alcançando, de 1944 e 1978, entre 40 e 50% da votação na maioria dos países europeus. (40) Ao afastar-se do objetivo de alcançar uma sociedade superior, para além do capitalismo, aqueles partidos transformaram-se em "partidos da ordem", cujo oportunismo era denunciado, já em meados da década de 1960, mesmo por analistas ligados aos revisionistas soviéticos: "Que perspectivas apresentam o movimento operário e o socialismo em países nos quais algumas das mais poderosas organizações que atuam há decênios em nome da classe operária vão tão longe em sua política de colaboração de classes que é justificado perguntar-se se entre suas forças dirigentes existe pelo menos a vontade de transformar radicalmente as relações sociais?". (41)

O imobilismo, resultado do oportunismo e da desradicalização, ficou nítido na explosão insurrecional de 1968. Nos dois países emblemáticos daquele levante, a França e a Itália, a ação das massas colocou a ordem capitalista em xeque. As manifestações de rua, os conflitos com as forças da ordem, generalizaram-se. O espectro da Comuna de 1871 voltou a assombrar a burguesia de Paris. O norte industrial italiano parou em conseqüência das greves, das barricadas e dos conflitos.

Naquele momento, os partidos francês e italiano renunciaram a seu papel dirigente e agiram como partidos da ordem, para conter as massas e trazer o conflito para o âmbito do “arranjo institucional”, atuação condenada de forma clara e incisiva pelo líder albanês Enver Hoxha quando afirmou que “o Partido Comunista Francês impediu que a classe operária entrasse em ação e assumisse a direção da rebelião". (42)

Aquela foi a segunda derrota de envergadura da revolução na Europa. A verdade histórica de que, sem direção política, os levantes e motins populares não rompem os limites do sistema social existente, foi confirmada em 1968. A colaboração de classes que as lideranças social-democratas e reformistas disfarçaram sob o pretexto de defender a “ordem democrática” e a luta institucional, deixou o movimento sem uma direção socialista e revolucionária, permitindo a emergência e o fortalecimento das tendências anarquizantes e, depois, de uma reciclagem reformista que preconiza a “renovação” das velhas formas de ação e organização dos trabalhadores.

O nexo entre o anarquismo e o oportunismo já havia sido indicado por Lênin: "o anarquismo tem sido, com freqüência, uma expiação dos pecados oportunistas do movimento operário", escreveu ele. (43) Há um nexo semelhante entre o oportunismo daqueles partidos e lideranças proletárias integradas política e socialmente ao capitalismo, e a atual crise da forma partido.

O eurocomunismo, dos anos 70, aprofundou o oportunismo e significou o rompimento radical com a tradição leninista. Ele foi uma tentativa de resposta, pela direita, para a crise daqueles partidos cujo esforço é afastar a pecha de radicalismo. Ao lado da rendição incondicional à democracia burguesa e suas instituições, foi uma última e vã tentativa de apresentarem-se ao eleitorado de seus países com uma face burguesamente respeitável, no esforço de recompor, com o apelo às outras classes, os votos operários perdidos.

A defesa da ordem, em 1968, está na raiz da fragmentação, da perda de confiança nos partidos, que cresceu nos anos 80 e hoje é apresentada como conseqüência da modernidade. "Quando deixaram de cumprir de forma plena e eficaz a função de integração social, os grupos de interesses se desorganizaram e os eleitores começaram a adotar atitudes imprevistas". (44) Eis aí a fragmentação e a imprevisibilidade! Ela não resultou da alegada revolução técnico-científica, mas do oportunismo da direção proletária que renunciou ao socialismo e à revolução e que não podia mais refugiar-se "em princípios ideológicos para reter os seus eleitores, agora que encontravam dificuldades para agregar interesses. (45)

A derrocada dos partidos e do movimento operário integrados ao capitalismo começou nos levantes e barricadas de 1968, e traduziu-se na perda crescente de votos, filiados e influência social e política. A falência da União Soviética apenas acelerou esse processo de degeneração, que já estava avançado. A liquidação do Partido Comunista Italiano, em 1991 (e, no Brasil, do velho partido revisionista, o PCB, em 1992) faz parte do fim de uma época de predomínio do oportunismo. Ele foi liquidado pelas mesmas picaretas que derrubaram o Muro de Berlim. Uma nova fase abria-se, sombria para o proletariado de todo o mundo, sob o tacão do neoliberalismo e sob a proclamação da vitória final do capitalismo. Uma fase de predomínio do apoliticismo e do antipartidismo, de hegemonia das idéias políticas da burguesia que, como mostrou Lênin, tende para o sem-partidarismo, "pois a ausência de partidos entre os combatentes da liberdade da sociedade burguesa significa a ausência de uma luta contra essa própria sociedade burguesa". "O sem-partidarismo é uma idéia burguesa", diz ele, enquanto o "partidarismo é uma idéia socialista". (46) Época onde generaliza-se a descrença nos políticos ("são todos iguais"), na política e na impossibilidade de saídas coletivas, socialistas, para as mazelas do capitalismo.

Muitos procuram formas de "ação direta", longe da política, nas ONGs. Outros, em programas de voluntariado patrocinados pelo governo neoliberal ou por grandes empresas capitalistas, recriando antigas formas de ação social caritativa que eram baseadas na religião.

Há ainda aqueles que reiteram esforços para criar partidos democráticos burgueses, de participação ampla e, convenientemente afastados da tradição leninista, respeitáveis para a ordem burguesa e "cidadã", para usar uma expressão da moda.

São partidos adequados aos que abandonaram a perspectiva do socialismo, deixado para um futuro tão longínquo que se torna um "sonho", e que buscam a acomodação ao sistema social e político da burguesia. Não são partidos para a luta proletária e para o enfrentamento dos problemas que o capitalismo coloca, e provoca.

A crise da forma partido e a descrença nas virtudes da ação unitária e organizada em defesa de um programa andam juntas. A resposta dos renovadores a este desafio é formal; eles supõem que o caminho mais adequado para enfrentá-lo é trazer, para a própria organização do partido, a mesma ênfase no particular, no individual ou no específico. Daí pluralismo e a aversão frontal ao princípio do centralismo democrático. A debilidade desta forma de pensar está justamente no desconhecimento de que a dispersão e a fragmentação resultam, justamente, da falta de um programa comum, coletivo que, respeitando o individual e o específico, seja capaz de extrair o universal do particular e, assim, exprimir a vontade coletiva transformadora. A dialética entre as formas organizativas e os conteúdos programáticos implica, para o destacamento de vanguarda dos trabalhadores, o esforço permanente, cotidiano, organizado e consciente de articular essa vontade coletiva e construir, assim, um programa avançado e revolucionário. Na Revolução Russa de 1917, havia duas alianças possíveis para o proletariado. Os mencheviques pregavam a união com a burguesia liberal; os bolcheviques, com o campesinato, conscientes de que essa aliança não se traduziria em sua subordinação, pura e simples, mas na exigência de uma luta árdua pela hegemonia proletária e socialista dentro da aliança. Desafio semelhante está posto, hoje, para o proletariado. Agora, trata-se de construir uma ampla aliança dos trabalhadores assalariados (operários ou não) e dos trabalhadores rurais com aqueles cuja condição proletária é mascarada pela forma jurídica do contrato de venda da força de trabalho para a burguesia (terceirizados, autônomos, etc). E, dentro dessa aliança, lutar pela hegemonia, pelo desempenho do papel dirigente e avançado.

Um partido capaz dessa tarefa, escreveu Rogério Lustosa, é aquele que tem um "programa com objetivos definidos, estratégia e táticas adequadas para alcançar as transformações necessárias à classe que representa", que "age como vanguarda ao despertar os menos conscientes, ao educar o conjunto dos trabalhadores, levando-os a juntar concepções teóricas avançadas com a experiência concreta". (47) O partido para cumprir esta missão histórica é o partido de tipo leninista, e não outro.

José Carlos Ruy é jornalista.

Notas
(1) Rogério Lustosa, "O canto da sereia
de um partido para todos", Princípios,
nº 19, SP, novembro de 1990.
(2) Karl Marx e Friedrich Engels, "Manifesto Comunista", in Marx e Engels, Obras Escogidas, t. 1, Madrid, Ed. Ayuso, 1975.
(3) Marcos Rolim, Teses para uma
esquerda humanista e outros textos,
Porto Alegre, Sulina, 1999.
(4)"A consciência política de classe não pode ser levada ao operário senão do
exterior, isto é, de fora da luta econômica, de fora da esfera das relações entre
operários e patrões". V. I. Lênin, Que fazer? – Problemas candentes do nosso movimento. São Paulo, Alfa-Omega, 1979.
(5) Citado por Christine Buci-Glucksmann, Gramsci e o Estado, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980.
(6) Ralph Miliband, Socialismo & ceticismo, São Paulo/Bauru, Editora Unesp / Edusc, 2000.
(7) V. I. Lênin, Que fazer? – Problemas candentes do nosso movimento. São Paulo, Alfa-Omega, 1979.
(8) Antonio Gramsci, Obras Escolhidas, São Paulo, Martins Fontes, 1978.
(9) Marcos Rolim, idem; Tarso Genro, Utopia Possível, Porto Alegre, Artes e Ofícios, 1994.
(10) Roberto Freire e Caetano Ernesto Pereira de Araújo, "Nova e velha esquerda: balanço e perspectivas", in Política Comparada – Revista Brasiliense de Políticas Comparadas, nº 1, Brasília, 1997.
(11) Tarso Genro, "A Internacional dos fragmentos", FSP, 27 fev. 2001.
(12) Manuel Escudero, "Reinventando a política", in David Miliband (org), Reinventando a esquerda, São Paulo, Editora Unesp, 1997.
(13) Tarso Genro, idem.
(14) Sergio Augusto Queiroz Norte, "Bakunin versus Marx: conflito de titãs
na Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT)”, in Mikhail Bakunin, Escrito contra Marx –
conflitos na Internacional, Brasília,
Novos Tempos, 1989.
(15) Mikhail Bakunin, Escrito contra Marx – conflitos na Internacional, idem.
(16) Claude Lefort, A invenção
democrática: os limites do totalitarismo, São Paulo, Brasiliense, 1983.
(17) Cornelius Castoriadis, A experiência do movimento operário, São Paulo, Brasiliense, 1985.
(18) Michel Foucault, História da Sexualidade. I: A vontade de saber, Rio de Janeiro, Graal, 1984.
(19) Michel Foucault, Microfísica do Poder, Rio de Janeiro, Graal, 1981.
(20) Félix Guattari, Revolução Molecular, São Paulo, Brasiliense, 1977.
(21) Diálogo entre Deleuze e Foucault,
in Michel Foucault, Microfísica do Poder, idem.
(22) André Gorz, Adeus ao proletariado – para além do socialismo, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1987.
(23) Anthony Giddens, As conseqüências da modernidade, São Paulo, Editora Unesp, 1991.
(24) Rosa Luxemburgo, Textos escolhidos, Lisboa, Estampa, 1977.
(25) Marcos Rolim, idem
(26) Tarso Genro, Utopia possível, idem.
(27) Manuel Escudero, idem.
(28) Claus Offe, O capitalismo desorganizado, São Paulo, Brasiliense, 1994.
(29) Fábio Wanderley Reis, "Governabilidade, instituições e partidos", Novos Estudos, nº 41, 1995.
(30) Marcos Rolim, idem.
(31) Manuel Escudero, idem David Miliband (org), idem.
(32) Fábio Wanderley Reis, idem.
(33) Idem.
(34) Idem.
(35) Anthony Giddens, "Admirável mundo novo: o novo contexto da política".
(36) Jurgen Habermas, "Uma conversa sobre questões de teoria política"
(entrevista), Novos Estudos, nº 47,
São Paulo, 1997.
(37) Gerard Cornillet e Claude Montagny, “República Federal da Alemanha, o ‘modelo’”, in J. C. Poulain e outros, A social-democracia na atualidade, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980; Ângela Mendes de Almeida, A República de Weimar e a ascensão do nazismo,
São Paulo, Brasiliense, 1999.
(38) Ralph Miliband, Socialismo &
ceticismo, idem.
(39) Enver Hoxha, O eurocomunismo é anticomunismo, São Paulo, Anita Garibaldi, 1983; Paolo Spriano, “Marxismo e historicismo em Togliatti”, in Hobsbawn, Eric, História do marxismo, vol. X, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
(40) Ralph Miliband, idem.
(41) Branko Pribichevich, "Força e debilidades do movimento operário nos países desenvolvidos do Ocidente", Revista Civilização Brasileira, janeiro/fevereiro de 1968 (traduzido de Problemas Atuais do Socialismo, out/dez de 1966).
(42) Enver Hoxha, idem.
(43) V. I. Lênin, La enfermedad infantil del “izquierdismo” em el comunismo, Moscou, Editorial Progreso, 1976.
(44) Marcos Novaro, "O debate contemporâneo sobre a representação política", Novos Estudos.
(45) Idem.
(46) V. I.Lenin, "O partido socialista e o revolucionarismo sem partido" (1905), in V. I Lênin
(47) Rogério Lustosa, idem.

EDIÇÃO 61, Mai/Jun/Jul, 2001, PÁGINAS 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56