O núcleo do sistema elétrico brasileiro – suas grandes hidrelétricas – começou a ser estruturado em 1945, quando o presidente Getúlio Vargas criou a Companhia Hidrelétrica do São Francisco, a Chesf, para construir Paulo Afonso. A usina, inaugurada em 1955, foi a maior obra da engenharia brasileira na época e produzia 180 MW. Desde então, o sistema elétrico do país se expandiu e se integrou.
Vieram inúmeras hidrelétricas. E vieram Furnas, Itaipú e Tucuruí, que com a Chesf, passaram a formar o núcleo do sistema, um dos mais avançados do mundo. Tudo isso tem mais ou menos cinqüenta anos.

Há pouco mais de cinco anos, o presidente Fernando Henrique iniciou o desmantelamento desse conjunto. A crise energética que assola o país é resultado desse processo, e também a expressão mais acabada e de maior alcance popular do neoliberalismo imperante. Poder-se-ia dizer que Fernando Henrique vem destruindo nesses cinco anos o que foi construído em cinqüenta.

A nossa epopéia da construção de um sistema exemplar

Grande extensão territorial, proximidade da Cordilheira dos Andes, maciços no Norte e Planalto no centro; tais são as condições geofísicas que propiciaram a formação de uma vasta rede fluvial no Brasil. Os Andes impediram que os rios fossem ao Pacífico e jogaram para cá, entre outros, o maior rio do mundo, o Amazonas. Os maciços do norte propiciaram o surgimento dos grandes afluentes da esquerda do Amazonas. E o Planalto Central foi a ampla cabeceira de rios portentosos que demandaram o sul (Paraná-Paraguai), o norte (Tocantins-Araguaia) e o nordeste (São Francisco).
Surgiram, assim, no Brasil oito grandes bacias hidrográficas; cinco principais – as do Amazonas, do Paraná, do São Francisco, do Paraguai e do Uruguai –; e três secundárias – as do Nordeste, do Leste e do Sudeste. Diferenças no regime das chuvas fazem com que períodos de cheias em uma região correspondam a períodos de seca em outra e vice-versa, havendo rios de planície e de planalto, estes com muitas corredeiras e cachoeiras.

Naturalmente que essas condições excepcionais influenciaram, há muito tempo, no rumo que seguiu a construção da base elétrica do Brasil.

A eletricidade por aqui chegou mais ou menos na época em que os primeiros utensílios elétricos eram introduzidos nos EUA. E não tem muito tempo. A primeira experiência de iluminação elétrica entre nós foi feita em 1879, sob os auspícios de Pedro II. Seis lâmpadas, alimentadas por dois dínamos, iluminaram, por sete anos, a estação central da Estrada de Ferro D. Pedro II, atual Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Foi ainda Pedro II quem inaugurou a primeira iluminação pública da América do Sul, em 1883, na cidade de Campos, também no Rio. Trinta e nove lâmpadas lá estavam, com uma máquina a vapor. No mesmo ano, em Diamantina, Minas Gerais, no ribeirão do Inferno, embora com pequena potência, entrava em operação a primeira hidrelétrica do Brasil, e a primeira linha de transmissão, com dois quilômetros de extensão. Em 1887, Porto Alegre se transformou na primeira capital do país a ter luz elétrica, proveniente de uma termelétrica particular, da Fiat Lux. Ainda em 1887, foi criada no Rio de Janeiro a Companhia de Força e Luz, primeira empresa do ramo no Brasil, e com capital nacional. No ano da proclamação da República, em 1889, pouco antes da queda do Império, entrava em operação a primeira usina hidrelétrica brasileira de maior porte, a de Marmelos, em Juiz de Fora, Minas Gerais, obra do industrial mineiro Bernardo Mascarenhas.

Já com a República, o século XX começou, no Brasil, com 12 MW de potência instalada e poucas usinas em operação, termelétricas em sua maioria. Momento esse em que chegaram as “Light”, a São Paulo Light and Power, organizada em Toronto, em 1899, e a Rio de Janeiro Light and Power, constituída também no Canadá, em 1904. Comprando empresas nacionais que já existiam, as duas grandes canadenses monopolizaram em suas regiões o serviço de força e luz, de bondes, de gás e de telefonia. E começaram a investir em hidrelétricas. A hidrelétrica de Parnaíba, na cachoeira do Inferno, no rio Tietê, em São Paulo, inaugurada em 1901, inicialmente com 2 MW de potência, foi a primeira hidrelétrica da Light no Brasil. (1) A Rio Light construía, depois, a hidrelétrica de Fontes, no ribeirão das Lages, no Rio, que em 1909, com 24 MW, era a maior do Brasil e uma das maiores do mundo. Delmiro Gouveia, um arrojado empresário brasileiro em luta contra um grupo têxtil inglês, fez o primeiro aproveitamento elétrico da cachoeira de Paulo Afonso, poucos anos antes de ser assassinado.
Nas décadas que se seguiram, várias empresas de eletricidade se organizaram no Brasil, e outras vieram do exterior. Novas usinas foram construídas a um ritmo acelerado. Muitas pequenas, de alcance municipal, termo e hidrelétricas. E nesse início dos anos 20 chegava ao Brasil a American and Foreign Power Company, a Amforp, empresa estadunidense, que se implantou no interior paulista, em cidades importantes do Sul e do Sudeste e em algumas capitais do Nordeste, como Recife, Salvador, Natal e Maceió. Um processo de centralização foi sendo feito em torno de algumas grandes empresas estrangeiras, de tal maneira que, quando a década de 30 chegava, quase todo o setor elétrico em funcionamento no Brasil era dominado por empresas estrangeiras. Mais do que isto. O setor elétrico de todas as áreas mais desenvolvidas do país, ou que tinha expectativa de desenvolvimento, era controlado por duas empresas estrangeiras, a Light e a Amforp. Nessa época ocorria a Revolução de 1930.

Um pensamento nacional tomava corpo no país, com a Revolução de 30. A mística do desenvolvimento passou a nortear os novos planos. Para viabilizá-los, iniciou-se a formação de um novo aparato estatal e institucional.

No terreno da eletricidade, até então, regulamentos e controles eram fluidos, as empresas aí estabelecidas tinham ampla autonomia. Em julho de 1934, foi promulgado o Código de Águas para regulamentar o uso das águas e o setor de energia elétrica. Todas as fontes de energia hidráulica se transformaram em patrimônio da Nação e o aproveitamento da energia elétrica para uso público passou a depender de concessão a ser assinada pelo presidente da República.

No período de 30 a 45 muitos estados começaram a elaborar planos estaduais de energia elétrica e a organizar companhias para implantá-los. A industrialização cresceu bastante com a política da substituição das importações, enquanto a importação de materiais de geração elétrica ficou difícil, no ambiente da II Guerra Mundial. Tudo isso fez com que, no período, a demanda crescesse mais que a oferta de energia elétrica, o que ocasionou um primeiro racionamento velado.

O ano de 1945 já terminava quando Vargas deu um passo decisivo para a constituição do moderno sistema elétrico brasileiro. Criava a Companhia Hidrelétrica do São Francisco, a Chesf, com a incumbência principal de construir a usina de Paulo Afonso, no rio São Francisco. Essa criação significou o início de um novo período de desenvolvimento do setor elétrico no Brasil, com projetos de grandes usinas e grandes represas. No ano de sua inauguração, 1955, Paulo Afonso já produzia 180 MW.

Em 1952, Juscelino Kubitscheck, governador de Minas, criava a Cemig, as Centrais Elétricas de Minas Gerais, que iria construir muitas hidrelétricas, entre as quais Três Marias, no rio São Francisco, outro marco importante na história da eletricidade brasileira. Três Marias entrou em operação em 1962, com uma potência de 130 MW.

Ainda na década de 50, São Paulo começava a ter suprimento deficiente de energia elétrica, por conta da falta de investimento por parte das duas grandes empresas estrangeiras que lá concentravam as concessões. O governo de São Paulo tomou então a iniciativa de intervir no setor, criando, em 1953, a Uselpa, que construiu a hidrelétrica do Salto Grande, no rio Paranapanema; em 1955, a Cherp, Companhia Hidrelétrica do Rio Pardo; em 1961, a Celusa, Centrais Elétricas de Urubupungá, todas elas construindo grandes hidrelétricas, como Jupiá e Ilha Solteira. O conjunto dessas empresas, com diversas outras, inclusive privadas, formaram, em 1966, a Cesp, Centrais Elétricas de São Paulo, que surgiu com uma potência instalada de 626 MW.

A organização do setor elétrico no âmbito federal elevou-se a um novo nível a partir do segundo governo Vargas quando, sob inspiração de Rômulo Almeida, tomou a iniciativa de criar, entre outros instrumentos, em 1953, o Fundo Federal de Eletrificação (FFE) e, em 1954, a Eletrobrás, Centrais Elétricas Brasileiras. Vargas foi levado ao suicídio quatro meses após ter apresentado ao Congresso o projeto de criação da Eletrobrás.

Com Juscelino na Presidência, o governo federal fez sua segunda investida na construção de grandes usinas, fundando, em 1957, a Central Elétrica de Furnas, para construir a grande hidrelétrica do mesmo nome, no rio Grande. Foi a resposta do governo à crise de energia elétrica, que naquele momento atingia a região mais desenvolvida do país, o Sudeste. Furnas começou a funcionar em 1963, e já em 1965, estava com 900 MW instalados. Com Furnas, foi iniciada também a transmissão de energia elétrica na elevada voltagem de 345 KW, com o que integraram-se os sistemas de São Paulo, Rio e Minas.

Em 1962, a Eletrobrás, proposta por Getúlio em 1954, foi finalmente organizada por João Goulart, com as características de uma holding, que controlava inicialmente a Chesf, Furnas e outras. Já no regime militar, a holding adquiriu, embora a um preço extravagante, as onze empresas do grupo Amforp. E o Estado brasileiro, em 1965, já era o maior produtor de energia elétrica do Brasil.

Sob o comando da Eletrobrás, e com o fortalecimento que o setor estatal teve no regime militar, ocorreu então nova e significativa expansão do parque elétrico brasileiro. A Light foi comprada, em 1979, aliás por outra quantia extravagante, após o que o setor passou a ser basicamente estatizado. Quase todas as hidrelétricas foram ampliadas. E entre 1966 e 1980, quadruplicou-se a potência instalada no Brasil, atingindo-se a marca de 31 mil MW.

O sistema elétrico brasileiro transformou-se, assim, em um grande sistema, baseado na produção hidrelétrica. Algumas lacunas persistiam. E estas foram supridas com a construção de duas hidrelétricas portentosas, Itaipú, a maior do mundo, e Tucuruí, a maior da Amazônia. Itaipú, inaugurada em 1984, atingia, em 1991, a potência de 12.600 MW. E Tucuruí, inaugurada em 1984, tinha, em 1992, 4.200 MW, com previsão de chegar a 8 mil MW.

Esse sistema magistral foi interligado por extensas linhas de transmissão, que trabalhavam, em geral, com tensão até 500 KW (alta voltagem) em corrente alternada, mas que, em alguns casos, transportava energia a 750 KW, em corrente alternada, e 600 KW em corrente contínua (extra alta voltagem). (2) A Eletrobrás pôs-se, então, a organizar os Grupos Coordenadores para Operação Interligada, os GCOI, que passaram a coordenar, em escala nacional, a operação do sistema, especialmente o uso controlado dos grandes reservatórios. Se um sistema, por exemplo, do Nordeste, estivesse com pouca água em seus reservatórios, notadamente em Sobradinho, o GCOI diminuía a produção no sistema Chesf e despachava carga de outro sistema, onde naquele momento tivesse folga de água. Em setembro de 1989, a Eletrobrás inaugurou, em Brasília, o Centro Nacional de Operação de Sistema, o CNOS, ampliando e aperfeiçoando o controle das operações de conjunto, permitindo-lhe administrar racionalmente a diversidade hidrológica do país. (2)

Assim, o sistema elétrico brasileiro passou a ser um sistema exemplar, de alta confiabilidade, admirado no mundo inteiro; barato por ser baseado na hidreletricidade; moderno por ser integrado e coordenado segundo suas exigências de otimização; e grande, pelas características agigantadas que ostentava. O sistema tinha 63 mil MW instalados; dos quais, 91,1% (55.857 MW) provenientes de hidrelétricas; 12% da hidreletricidade em operação no mundo; mais 100 mil MW já inventariados e não usados; outros 100 mil MW estimados e não inventariados. Tinha, portanto, 260 mil MW de potencial hidráulico. Um portento!

A participação da hidreletricidade na produção elétrica do país, da ordem de 91%, é ultrapassada em poucos lugares do mundo, como a Noruega, com 100% de sua energia elétrica de origem hídrica. Países como os EUA têm só 15%, Canadá 25%. Mas, o dado mais importante é que talvez nenhum país tenha possibilidade de dobrar sua potência hidrelétrica, enquanto o Brasil tem condições de quase quadruplicá-la.

Como muito bem lembrou o centro de estudos Ilumina, em potencial elétrico – por conta da base hidrelétrica já instalada, e da que pode vir a ser –, o Brasil é como a Arábia Saudita em petróleo.

A destruição do sistema exemplar

Com tributos vinculados à expansão do serviço, e com a venda da energia produzida, o sistema se auto-sustentava, financiando seu desenvolvimento até o fim da década de 1970. A partir dos anos 80, problemas financeiros sérios começaram a aparecer.

Não que o sistema elétrico descrito tenha provocado esses problemas. Mas, o Brasil começou a ter avultados problemas financeiros nessa década de 80, por conta da política neoliberal que lhe era crescentemente imposta. Todos os setores da sociedade foram por eles atingidos, e o setor elétrico pagou caro. É parte da história da década perdida de 80; a primeira, pois a de 90 também o foi.
Para pagar juros e dívidas, o governo precisava de moeda forte e passou a apelar para os endividamentos. Estes, contudo, tinham de ser feitos em nome de empresas prestigiadas, com vasto patrimônio e crédito. Aí entraram as nossas empresas elétricas, que começaram a assumir dívidas vultosas, não para prover suas necessidades mas para passar o dinheiro para o governo pagar dívidas. Por outro lado, na luta contra a inflação, o governo começou a usar o expediente mais fácil e à mão, de limitar as tarifas de energia elétrica. Num quadro em que todos os custos subiam, as estatais de eletricidade não podiam aumentar o preço de seu produto, o quilowatt/hora, e assim ficavam cada vez mais descapitalizadas.

A década de 90 chegava sob a égide do neoliberalismo dilapidador das riquezas nacionais. E foi constatado que nossas ex-robustas estatais de eletricidade estavam com dívidas cruzadas que chegavam a 50 bilhões de dólares. E pronto. Estava posto o argumento “irrespondível” para justificar o assalto ao setor, ou, em outras palavras, sua privatização. Para preparar o bote foi contratada uma empresa inglesa, especialista em assaltos “juridicamente corretos”, a Coopers & Lybrand, com a orientação de que tudo deveria ser privatizado, e rápido. Como na Inglaterra não existe hidreletricidade, o relatório da Coopers foi uma lástima e, em parte, afastado. Mas a decisão de privatizar de qualquer jeito, continuava, iniciando-se ao tempo em que se criavam novos órgãos para conformar o novo modelo elétrico que queriam formar no Brasil.

Como vimos, o ponto alto do sistema era o seu planejamento integrado, coordenado nacionalmente pela Eletrobrás. Esse planejamento tinha caráter terminativo e as diversas unidades do sistema obedeciam ao plano da economia e eficiência máximas. Pois, em 1999, o Governo resolveu extinguir o planejamento integrado e terminativo, criando em seu lugar um órgão a que apelidaram de Comitê Coordenador do Planejamento da Expansão dos Sistemas Elétricos, o CCPE, cujo objetivo seria o de fazer um “planejamento indicativo”. E criou-se ainda um canhestro organismo privado, o Operador Nacional do Sistema, com poderes de controlar a parte estatal e privada da geração elétrica do país. Ao mesmo tempo, começaram a esquartejar as empresas e privatizá-las por partes. (3)

As primeiras privatizações começaram pelas empresas distribuidoras, que César Benjamin chama de a “bilheteria” do sistema, a parte que recolhe dinheiro vivo do contribuinte. E a propósito, três observações podem ser feitas: a primeira, que as vendas começaram antes da constituição da Aneel, que seria o novo órgão regulador, o que mostra que quem comprava as distribuidoras não sabia de suas obrigações; a segunda, que negociatas prosperaram na fixação dos preços, nos compromissos perante os ágios, na diferença enorme que se permitia entre o preço da energia vendida pela produtora estatal e a vendida ao consumidor pelo novo comprador privado; (4) e a terceira, que as privatizações efetuadas, que alcançaram também usinas hidrelétricas, foram levando para mãos estrangeiras o controle do sistema elétrico brasileiro, que ainda não se consumou, pelas resistências e pelos desastres que têm surgido. E o fato é que a Eletrosul virou belga; a Cerj (RJ), chilena; a Cee-NNE (Norte e Nordeste), a Cee-CO (Centro-Oeste), a Eletropaulo, a Elektro e a Cesp-Paranapanema, todas estas viraram norte-americanas; a Coelce (CE), a Coelba (BA) e a Celpe (PE), tornaram-se espanholas. (5)

Caminha-se ao encontro da situação que existia antes de 1930, quando o negócio da eletricidade no Brasil era das empresas estrangeiras, o que, aliás, muito está de acordo com o juramento feito por Fernando Henrique de que acabaria com a era Vargas. Esqueceu-se de dizer que acabaria com o que de nacional trouxe a Revolução de 30, e também com suas conquistas trabalhistas.

Esse caminho, brutalmente lesivo aos interesses nacionais, foi agravando-se devido a fenômeno correlato extremamente grave – a submissão do Brasil ao FMI – que levou Celso Furtado a dizer: “O que se passa é que o governo é dependente na sua capacidade de fazer política, pois o Fundo Monetário Internacional tutora o país”. (6) E o FMI, com sua política de reduzir os déficits públicos a qualquer custo, para que não falte dinheiro para as obrigações financeiras, levou o governo de Fernando Henrique Cardoso a assumir o compromisso de não permitir às estatais investirem em infra-estrutura. Na linha desse comportamento, o BNDES ficou proibido, pela Resolução 2.668 do Banco Central, assinada em 1999, de fazer empréstimos a estatais brasileiras – ele, que empresta a estatais estrangeiras para comprar as nacionais. Como tinha sido feito, há alguns anos, um ajuste de contas entre essas estatais e o Tesouro, para saneá-las, para serem vendidas, ocorreu que as grandes empresas, ao cabo de algum tempo, passaram a ter muito dinheiro em caixa, que poderia ser usado para investimentos, se o FMI deixasse. Como este não deixava, as estatais foram, e estão sendo, orientadas a investir cerca de 30 bilhões de reais em títulos do Tesouro, na compra de papéis.

Criou-se então a seguinte situação: mesmo com o pequeno crescimento econômico do país, a demanda por energia elétrica cresceu e os investimentos no setor diminuíram. Enquanto isso, na década de 90, o consumo cresceu 49,3% (4,1% ao ano) e a capacidade instalada 33% (2,9% a.a.). Desde 1995, quando o setor elétrico começou a ser efetivamente aberto ao setor privado, os investimentos reduziram-se em quase 50% por ano. Eram de 13,1 bilhões de reais em média anual, nos anos 80, e passaram a 6,7 bilhões. Os reservatórios passaram então a ser usados, em excesso, para suprir a demanda crescente. As reservas de água começaram a diminuir. Percebia-se a crise energética no horizonte. Se o país crescesse um pouco mais, haveria aumento da demanda a um nível que, sem novas usinas, ou sem novas linhas de transmissão, resultaria no esvaziamento dos reservatórios. Se não chovesse bem acima da média, também os reservatórios não agüentariam, mesmo com baixo crescimento do país. E não deu outra.

O governo insiste em dizer que há falta de água nos reservatórios devido à falta de chuva. Não é verdade. Nos anos de 1996, 1997, 1998 e 1999 choveu no Brasil entre 10% e 18% acima da média. E, apesar disto, os reservatórios, desde 1997, baixavam gradativamente seus níveis. É que o consumo de água era cada vez maior. Quando, em 1968, choveu apenas 66% da média, os reservatórios voltaram aos níveis normais, exatamente porque o consumo não havia sido aumentado. No ano de 2000, e neste de 2001, as chuvas escassearam, e os reservatórios, já esvaziados, chegaram ao ponto crítico. Era a crise!

No enfrentamento da crise, a mesma pusilanimidade

Em primeiro lugar, logo que a crise energética apareceu, com o espectro do “apagão” a todos atemorizando, o presidente adiantou-se perante a Nação para dizer que não sabia da existência do problema. Afora a incompetência que esta declaração revela, técnicos mostraram ter escrito, ao presidente, há anos, sobre o assunto. E receberam dele respostas assinadas!…

Sabendo ou não da evolução do problema, medidas urgentes precisavam ser tomadas, seja para a correção radical dos problemas, seja para diminuir as conseqüências imediatas da crise.
Há algum tempo, o governo havia lançado, como sempre com alarde, o seu Plano Prioritário de Termelétricas, o PPT. A idéia seria construir, até 2002, usinas térmicas em um total de 56, que produziriam, juntas, algo como 16 mil MW; uma Itaipú. O Plano, como tanta coisa nesse governo, não andou. Com a chegada do “apagão”, o PPT foi transformado em PET, Plano de Emergência das Termelétricas, e os problemas do mesmo continuam mal tratados. Um deles é o do gás que alimentará as térmicas, vindo da Bolívia, em gasoduto construído pela Petrobrás para transportar o gás das multinacionais, a ser pago em dólar. O problema cambial daí surgido inibia os famosos investidores estrangeiros, que nunca aparecem para correr risco ou implantar algo novo. O certo é que, na emergência, o governo levou a Petrobrás a assumir o risco cambial na compra do gás da Bolívia. E apesar disso, das 56 usinas a serem construídas apenas 13 ou 14 estão adiantadas, as que tiveram o concurso da Petrobrás. Fica ainda uma questão básica: no novo modelo em gestação, voltando a chover, como ficarão estas 56 usinas, produzindo energia mais cara que a das nossas hidrelétricas?
Verdadeira operação montou o governo para promover o corte dos gastos em energia, o racionamento.

O povo, ante o risco do “apagão”, não teve outro jeito senão contribuir. A meta foi um corte de 20% nos gastos, sem o que nível dos reservatórios ficaria abaixo do crítico, e o “apagão” viria. Curioso como o governo parece satisfeito com esses 20% de corte alcançados, quando, na verdade, isso significa queda da produção, queda da tributação, aumento do desemprego, etc.
As “providências” que o governo encaminha para enfrentar a crise têm características paliativas, além de causarem deformação no sistema. Encaminham-se mudanças não meditadas na matriz energética. Espanta também a incapacidade do governo tratar dos problemas de fundo que provocaram a crise, em particular de três problemas cruciais.

Primeiro, a questão das privatizações do sistema elétrico, notadamente das suas hidrelétricas. O governo insiste em fazer do Brasil cobaia das experiências neoliberais no que respeita a privatizações de hidrelétricas. Porque é isto que está acontecendo, posto que hidrelétrica de grande porte, com grande reservatório a montante, não existe privatizada no mundo. São públicas, estatais. Inclusive todas as dos Estados Unidos. Isso porque o controle de uma grande hidrelétrica não só interfere no estratégico fornecimento de energia para uma região, ou ao país, como também dá, a quem a controla, o poder de decisão na gestão da água, bem público por excelência, e cada vez mais raro.

As privatizações ocorridas, ademais, em nada contribuíram para o país. O tão sonhado e reverenciado investimento estrangeiro que veio comprou o que já estava pronto, o que já existia, o que já estava em operação altamente lucrativa. Não trouxe um KW a mais para o país. E comprou com dinheiro fornecido pelo BNDES, em condições vantajosas, retirado do Fundo de Amparo ao Trabalhador. Uma vergonha. Finalmente, o que seria deste país se a loucura de Fernando Henrique tivesse sido feita e, vendidas aos estrangeiros, estivessem Furnas, a Chesf e Tucuruí? Nem mesmo o controle do “apagão” poderíamos estar fazendo.

Por isso, é de uma irresponsabilidade gritante a insistência do governo de FHC em querer continuar o processo de privatização do sistema elétrico brasileiro. E chega às raias do crime de lesa-Pátria sua reiterada ameaça de privatizar Furnas, Chesf e Tucuruí. A primeira medida que era de se esperar de um governo sério brasileiro seria anunciar que as privatizações das hidrelétricas estariam suspensas.

Em segundo lugar, a suspensão dos investimentos em eletricidade decorreu das imposições constantes de acordo firmado com o FMI. Quando a crise estourou, o governo brasileiro despachou para Washington, na última semana de maio, o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Amaury Bier, com o objetivo de voltar a pedir ao FMI para mudar os critérios, segundo os quais, investimento em sistema elétrico é um gasto que o Fundo não aceitava. O Fundo já havia recusado esse pleito. Mas agora o funcionário do Ministério estava animado, pois na diretoria do Fundo estava Teresa Ter-Minassian, que quando estivera aqui em missão do Fundo, diz ter ficado amiga do Brasil. Mas a Teresa disse não. E o governo brasileiro, que já se prestara às humilhações das súplicas ao FMI, ante o “não” do Senhor, portou-se como um vassalo, concordou. O Bier declarou que qualquer outra posição seria uma “bravata”, coisa sem sentido. (7) Na Lei de Diretrizes Orçamentárias, aprovada no final de junho para orientar o Orçamento de 2002, não se prevê nada de investimento na área energética em crise. A pusilanimidade dá braços à irresponsabilidade. A segunda medida que se deveria esperar de um governo sério brasileiro seria anunciar a retomada imediata de investimentos na área energética, independente de quem quer que seja. E o dinheiro em caixa das estatais seria usado prioritariamente para tais investimentos.

Em terceiro lugar, é sabido que para prestar vassalagem ao FMI e às suas decisões de tudo fazer para que o sacrossanto equilíbrio fiscal seja assegurado no Brasil, o Banco Central, através da Resolução 2.668/99, proibiu o BNDES de financiar estatais brasileiras, podendo, como já vimos, financiar estrangeiras. Pois, a terceira medida que se deveria esperar de um governo sério brasileiro seria a revogação da Resolução 2.668/99 do Banco Central.

Por último, a eventualidade da crise energética é oportunidade para se voltar a pensar, ou se pensar seriamente, em desenvolver nossa matriz energética no caminho da utilização de combustíveis limpos e renováveis, que tanto abundam em nosso país tropical. Destes, realça a importância do uso da biomassa, potente como produtora de energia, versátil pela multiplicidade de alternativas que encerra, limpa por estar destituída de resíduos tóxicos, além de incorporadora de mão-de-obra. O uso programado da biomassa, até em caráter emergencial, pode ser um recurso eficaz para a complementariedade da produção elétrica necessária. Ademais, a energia eólica, a solar e outras formas alternativas, devem ser aproveitadas, para, na emergência, melhorar a nossa capacidade de geração e, a prazo, melhorar nossa própria matriz energética. É claro que o gás também aí se incorpora, mas é preciso não submeter seu uso a interesses de multinacionais, levando-se em conta, por exemplo, que a Petrobrás também tem muito gás.

Haroldo Lima é membro do Comitê Central do PCdoB, cumpre seu quinto mandato como Deputado Federal (PCdoB/BA) e é Engenheiro Eletricista pela Politécnica da UFBA.

Notas

(1) Hoje essa usina se chama Edgarsd de Sousa.
(2) É mais ou menos aceito como alta voltagem, a tensão de até 500 mil volts, e a extra alta voltagem, a tensão superior a 500 mil voltes. Linhas de 750 KV em corrente alternada e 600 KV em corrente contínua saem de Itaipú.
(3) Os dados relativos à evolução do
sistema elétrico no Brasil foram colhidos em “Energia Elétrica no Brasil”,
organizado pelo Centro de Memória
da Eletricidade, Rio de Janeiro, 2000.
(4) Esse processo está bem descrito em texto de César Benjamin, “Foi loucura, mas houve método nela: gênese, dinâmica e sentido da crise energética brasileira”.
(5) César Benjamin, em texto referido, mostra que a Light privatizada compra energia de Furnas a US$ 23 o Kwh e vende ao consumidor residencial a U$120. Na França a mesma empresa vende
energia a US$75.
(6) Dados sistematizados por César Benjamin,
texto citado.
(7) Celso Furtado critica falta de Planejamento no País, Valor, 31/05/01
(8) “Brasil pede para FMI liberar investimentos
nas estatais”, Folha de S. Paulo, 1/6/01

EDIÇÃO 62, AGO/SET/OUT, 2001, PÁGINAS 24, 25, 26, 27, 28, 29