Erros e fragilidades do Império no início do século XXI
De repente tudo começou a mudar. Sabíamos que isso aconteceria, mas não quando.
Os cérebros do sistema de poder dos Estados Unidos repetiam insistentemente que o primeiro século do novo milênio seria também norte-americano e que a hegemonia planetária do seu país estava vocacionada para se eternizar. Isso, apesar de o crescimento galopante e torrencial da República Popular da China coincidir com indícios da decadência do Império. E, contudo, o que parecia quase impossível esboça-se num horizonte de esperança.
A eleição nos EUA de uma série de presidentes medíocres (alguns de uma incultura chocante) não foi ocasional. Resultou da lógica da engrenagem. Custa a perceber que um político truculento e ignorante como o filho do ex-diretor da CIA, também presidente, possa ter sido o candidato republicano escolhido para dirigir o mais poderoso Estado contemporâneo. E, contudo, foi selecionado precisamente por carecer das qualidades mínimas que supostamente deveria ter.
O sistema, confiado no imenso poder da República imperial, desconfia dos políticos talentosos. Mas não soube extrair lições do comportamento dos últimos presidentes. Por mais incapaz que seja, um presidente dispõe sempre no exercício das suas funções de uma margem de poder que pode fazer dele um estorvo e até, eventualmente, um perigo para o próprio sistema que o controla.
Os 100 dias de Bush foram calamitosos. Os próximos não deixam entrever alegrias para o
establishment.
Os postos-chave da nova Administração foram, com raríssimas exceções, confiados a homens que estão agindo como se o mundo fosse um gigantesco protetorado dos EUA.
George Bush cometeu em primeiro lugar o erro de atacar em muitas frentes. Iniciativas desastradas resultaram de concepções estratégicas contraditórias perfilhadas por homens que não se entendem (caso de Colin Powell com o vice-presidente Cheeney e o secretário da defesa Rumsfeld, ambos falcões agressivos).
Atuações prepotentes, amorais e até insensatas criaram situações conflitivas graves. Algumas conduziram a impasses; outras tiveram como desfecho derrotas humilhantes. Todas contribuíram para piorar a imagem dos EUA.
Washington entrou em choque com a China; permitiu que a extrema-direita israelense intensificasse o genocídio na Palestina; gerou tensões com os aliados europeus e com países do Terceiro Mundo ao negar-se a assinar o Protocolo de Kyoto sobre a defesa do Ambiente; dirigiu veladas mas repetidas ameaças à Rússia, tratando-a como potência de segunda classe; exibiu o seu desprezo pelo Islã ao bombardear Bagdá; desafiou o mundo com a retomada do projeto do chamado escudo espacial.
O paiol latino-americano
Na América Latina, que durante a campanha fora contemplada com uma cascata de promessas, o Governo Bush consegue o prodígio de decepcionar até aqueles governos que Fidel Castro define como “os lacaios e lambe botas”; por exemplo, os da Argentina, do Uruguai, da Costa Rica, da Nicarágua e de El Salvador. Recebem ordens, por vezes pelo telefone, como ocorreu durante a reunião da Comissão dos Direitos do Homem, em Genebra.
A chamada Cimeira das Américas, em Quebec, confirmou que Washington ainda não percebeu que pela vastidão do Continente estão ocorrendo mudanças complexas que expressam a tendência dos povos latino-americanos para situações de confrontação com os EUA; sem data no calendário, mas inevitáveis.
A declaração aprovada no Canadá foi imposta a martelo. Somente se tornou possível porque Washington concordou com o adiamento para 2005 da criação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Será então uma realidade? Os próprios homens do presidente são os primeiros a duvidar. Aos obstáculos externos somam-se os internos. As reservas formuladas por Chávez e a posição assumida por Fernando Henrique (insuspeito por atuar hoje como um neoliberal) deixaram transparente que a América Latina perderá muito com a Alca e ganhará pouco ou nada. A integração concebida pelos EUA seria na prática uma recolonização.
Na Casa Branca as manifestações de indisciplina de alguns governos latino-americanos, habitualmente submissos, suscitam preocupação. Colin Powell não conseguiu que o Equador votasse contra Cuba na Comissão dos Direitos do Homem. Mais surpreendente foi o voto da Colômbia na ONU a favor do envio para a Palestina de uma força de interposição internacional que contenha o genocídio ali praticado por Israel. O gesto de Pastrana foi considerado intolerável.
No Equador, no Paraguai, na Bolívia, na Argentina, no Uruguai, a contestação às políticas neoliberais aumenta. No Brasil as iniciativas desafiadoras do Movimento dos Sem Terra diversificam-se, contribuindo para o aumento da tensão social em muitos estados.
Não seria correto afirmar que a pressão dos povos ameaça fazer saltar a tampa da panela. Não. A situação que se vive no mundo latino-americano não é pré-revolucionária. Mas a participação crescente das massas nas lutas contra as políticas impostas por Washington através de governos títeres é uma realidade.
A relação de forças está a mudar aceleradamente em desfavor do imperialismo.
Revolução e contra revolução
A década de 60 e o começo dos anos 70 ficaram marcados pela esperança. A vitória da Revolução Cubana assinalou o início de um período de ascensão dos movimentos revolucionários. Em quase toda a América Latina, partidos e forças muito diferentes desafiaram a dominação imperialista. Ditaduras e democracias de fachada, oligárquicas, foram contestadas pelas armas, através da luta de massas ou de mecanismos institucionais. A contra ofensiva dos EUA ocorreu num contexto contraditório. Enquanto no Brasil e na Argentina, golpes de Estado (com a mão da CIA) assinalavam a resposta imperial à fome de liberdade e independência dos povos, noutros países desenvolviam-se impetuosamente experiências inéditas. Na Bolívia e no Peru militares patriotas, perante o espanto de Washington, usaram as Forças Armadas para garantir transformações sociais e econômicas de caráter progressista. No Chile, Allende, eleito presidente, lançou com a Unidade Popular o desafio romântico da via pacífica para o socialismo.
O desfecho dessas tentativas é conhecido. A aspiração dos povos da América Latina a serem senhores do seu próprio destino não se concretizou. Por todo lado, o imperialismo, intervindo direta ou indiretamente, conteve, recorrendo à violência ou a outros meios, a grande vaga de insubmissão que varria o Sul do Continente.
As guerrilhas, rurais ou urbanas, foram esmagadas numa orgia repressiva sem precedentes que golpeou a sociedade civil no seu conjunto.
Em meados dos anos 70, o imperialismo concluiu que a luta armada contra a ordem vigente fora definitivamente erradicada da América Latina.
Engano. No final dessa década, inesperadamente, a Frente Sandinista de Libertação Nacional, recorrendo a uma estratégia que fundia múltiplas formas de luta, tomou o poder na Nicarágua, após uma luta heróica, até então mal acompanhada pela opinião pública mundial.
Em Washington soou o alarme. O imperialismo percebeu que as sementes da Revolução haviam germinado na América Central.
Dez anos transcorreram antes que Reagan e Bush conseguissem, utilizando com freqüência meios criminosos, destruir a Revolução Sandinista e recolocar no poder em Manágua gente sua.
A vitória imperial foi incompleta. Em El Salvador e na Guatemala, a incapacidade de esmagar militarmente os movimentos revolucionários forçou Washington a compromissos reveladores das limitações do seu poder na Região.
Novos desafios
Com o desaparecimento do campo socialista na Europa e particularmente a implosão da URSS, fortaleceu-se no sistema de poder dos EUA a convicção de que, agora sim, terminara definitivamente na América Latina a era das revoluções.
A capitulação dos intelectuais de esquerda em grande parte da Europa contribuiu para reforçar a ilusão de que Fukuyama estava certo ao anunciar o fim da história e o advento do neoliberalismo globalizado como ideologia definitiva.
Nas grandes universidades norte-americanas e européias, ideólogos do sistema mascarados de liberais de esquerda (alguns ex-marxistas) entregavam-se a exercícios retóricos. A tarefa que apontavam era a humanização do capitalismo, porque a idéia de revolução social se tornara arcaica por ser incompatível com as conquistas da revolução tecno-científica.
Esses fogos de artifício foram mais uma vez prematuros.
O século findou mal para o imperialismo.
Bush tomou posse numa atmosfera anunciante de tempestades.
A sua instalação na Casa Branca ocorreu no rescaldo de uma eleição desacreditada por fraudes e escândalos que abalaram a confiança do povo norte-americano na fiabilidade de uma democracia que lhe era apresentada como quase perfeita.
As repetidas intervenções da Reserva Federal baixando a taxa de juro teriam atenuado os efeitos da chamada desaceleração da economia (a palavra recessão assusta) mas não evitaram a vaga de dispensas maciças nas transnacionais. O sonho de que as novas tecnologias abririam ao país as portas de uma prosperidade eterna ruiu quando ficou claro que os setores mais atingidos são precisamente os ligados à revolução informática.
Em todo o mundo sobe a maré de protestos contra a globalização neoliberal; ou seja, o novo imperialismo. Seattle teve continuidade em Melbourne, Praga, Davos, Porto Alegre, Quebec.
Na Europa cresce a contestação ao arrogante hegemonismo da Otan como instrumento imperial dos EUA. Em Paris, o chefe do Estado Maior, General do Exército francês, numa declaração polêmica, afirmou que a futura força de intervenção rápida da União Européia não precisava da tutela da Otan – declaração que suscitou imediata e nervosa resposta do secretário-geral daquela organização e do secretário de Defesa norte-americano.
Na América Latina, o binômio Colômbia-Venezuela tira o sono dos estrategistas do Pentágono e dos assessores de Bush. O imperialismo acompanha com preocupação o que se passa nos dois países. Na Venezuela, o esmagamento eleitoral dos partidos da direita tradicional coincide com o enorme prestígio de Chávez, um presidente que assume os ideais revolucionários de Bolívar e defende uma democracia participativa na qual o povo seja o sujeito da história. Na Colômbia, a guerrilha das Farc-EP emerge hoje como um invencível exército popular.
O imperialismo sente o perigo. Na Venezuela manobra e conspira na esperança de que a sabotagem das forças da oligarquia crioula desgaste o governo de Chávez e conduza o país a uma situação de caos. Na Colômbia desejaria transformar a intervenção indireta numa intervenção militar direta. Mas esta, sem a cooperação dos países vizinhos, não é viável. O Plano Colômbia, em vez de trazer a solução desejada, agravou a crise em toda a Região. A síndrome do Vietnã permanece viva na memória dos generais do Pentágono.
Derrotas
Um vento de contestação, repito, sopra pela América Latina. Já não é somente Cuba que demonstra, com o seu combate exemplar, que é possível resistir.
O entusiasmo que envolveu as visitas de Fidel Castro à Argélia, ao Irã, Malásia, Síria e Líbia e os discursos ali pronunciados confirmam que a contestação à arrogância imperial se alastra, manifestando-se em diferentes áreas do Terceiro Mundo.
Duas derrotas que merecem o qualificativo de históricas, ambas inesperadas, vieram chamar a atenção para a vulnerabilidade do colosso imperial.
A primeira foi a não reeleição dos EUA para a Comissão dos Direitos do Homem da ONU, da qual havia sido membro permanente desde a sua fundação em 1947. A segunda foi a não reeleição para o organismo também da ONU incumbido de acompanhar o combate ao narcotráfico.
Ambas resultaram de votações secretas. Foi quase histérica a reação da direita norte-americana a esses merecidos bofetões.
O significado dessas exclusões é muito mais profundo e complexo do que afirmam os analistas do New York Times, empenhados em subestimá-los.
Representantes de países europeus aliados dos EUA e do Terceiro Mundo somaram votos para negar àquele país autoridade moral para intervir em organismos ligados à defesa dos direitos humanos e ao combate à droga.
Um Estado que se comporta hoje como o campeão mundial da violação dos direitos dos povos e calca aos pés o Direito Internacional (Palestina, Iraque, Panamá, Somália, Granada, Bósnia, Kosovo, bloqueio a Cuba, etc) não reúne condições mínimas para integrar a Comissão dos Direitos Humanos das Nações Unidas. Um Estado que se arroga unilateralmente o papel de atribuir certificados de bom comportamento na luta contra o narcotráfico mas cujas agências federais – a CIA e a DEA – mantêm íntimas relações com as máfias que controlam o mercado das drogas não pode figurar na organização de que acaba de ser excluído.
Essas duas votações fizeram, em maio, o império sentar no banco dos réus.
Muitos dos fenômenos e situações que assinalam neste primeiro ano do novo século o início do declínio da hegemonia imperial dos EUA são ainda pouco perceptíveis. A engrenagem mediática, controlada pelas transnacionais, não ajuda a humanidade a compreender acontecimentos que tendem a mudar o rumo da história. Oculta-os ou deforma seu significado. Mas não pode apagá-los.
Miguel Urbano Rodrigues é jornalista
EDIÇÃO 62, AGO/SET/OUT, 2001, PÁGINAS 30, 31, 32, 33