A globalização não é aquilo que os conservadores desse país, com forte propaganda oficial do poder – infelizmente, com grande resultado – quer que creiamos. O anúncio do fim do sentido das mediações de um Estado nacional, com a idéia de que o fato econômico (leia-se trocas financeiras e tecnológicas, processos produtivos, comerciais) deve ter absoluta liberdade, e que qualquer obstáculo nacional a essa livre circulação desses fatores de produção seria uma impertinência ou anacronismo organizacional, é absolutamente falso, interesseiro e preconceituoso – embora tenha virado quase uma verdade definitiva, nos tempos presentes que estamos vivendo no Brasil.

Há certos setores da esquerda que imaginam a globalização como o outro nome de imperialismo, porque todo mundo percebe que a ordem internacional permanece sob o estigma da injustiça, com um punhado de países ultrapoderosos militar, tecnológica, financeira, comercial e esteticamente. Isso é imperialismo – uma relação selvagem ainda presente nas relações internacionais, a exploração colonial. Porém, parece que globalização é um fenômeno diferente. Se imperialismo é uma coisa intrinsecamente má, injusta, perversa; globalização não necessariamente o é. Tanto mais se lembrarmos a questão do domínio tecnológico – em que, por exemplo, a conquista do princípio de cura da AIDS pode ser disponibilizada quase em tempo real, de onde quer que tenha acontecido esse domínio, para o planeta inteiro. Isso é um aspecto que põe em relevo a necessidade de compreendermos mais complexamente o que é mesmo essa tal globalização para entendermos o que nos implica.

Esse não pode mais ser um tema opcional, pois da inserção internacional do país deriva um constrangimento que mexe com tudo o que há de concreto na vida do nosso povo.

Nessa nova divisão internacional do trabalho e com esse fenômeno da globalização o mundo está dividido entre tipos de empreendedores. A velha divisão internacional respeitava o mapeamento geopolítico do planeta entre trabalho de alto valor agregado e trabalho de baixo valor agregado. Hoje, o critério de divisão é pela forma de empreender em oposição aos modos tradicionais da retaguarda produtiva do mundo: há uma vanguarda produtiva em oposição a uma retaguarda produtiva. E essa vanguarda produtiva tem três características centrais, não importa onde ela esteja produzindo, pois desconsidera a fronteira política do mundo e se apresenta à competição financiada em padrão internacional na ponta do processo tecnológico e em mega escala. Outro elemento característico do vanguardismo produtivo mundial é a disputa da ponta tecnológica de setor a setor. O terceiro componente: para empreender globalmente, o empreendedor se apresenta para a competição em mega escala – custos fixos, relativizados, custo de produção muito baixo e lucro reduzido a uma fração de centavo, podendo (por exemplo) vender um produto no mundo por um centavo de lucro, pois seu ganho é do volume planetário. Ora, de ponta tecnológica, mega escala e financiamento dramaticamente barato sai um produto necessariamente bom, bonito e barato.

Qual é o padrão de produção médio brasileiro, concretamente? É assim: sob o ponto de vista financeiro, a maior taxa de juros do mundo (2,5% ou 3% de desconto a uma duplicata por mês); no componente tecnológico, três gerações tecnológicas de defasagem em média, ainda sendo verdadeiras as conclusões do Congresso Nacional; e sete em cada dez empregos no Brasil têm origem em pequena e média empresa, por definição a economia é caracterizada pela pequena escala.

Se o desmonte das mediações do Estado nacional for levado a cabo, o espaço mercadológico brasileiro assistirá a uma competição que não existe: a vanguarda produtiva mundial financiada de forma barata, na ponta do processo tecnológico e em mega escala; por outro lado o desmonte completo da estrutura produtiva brasileira – que vale lembrar é de pequena escala defasada tecnologicamente e estrangulada em seu financiamento. A porta disso é a assimetria competitiva; a maior estatística de falências e concordatas (já ocorrendo); a maior estatística de inadimplência; a maior estatística de desnacionalização da economia – e não coloco como argumento por xenofobia, pois advogo a idéia da integração internacional. Entretanto, advogo a integração ativa, não subordinada.

Esse processo gera em todos os países onde esse experimento foi levado a cabo, com mais velocidade ou com mais radicalidade, a instabilidade política imediata. Quem duvidar passe os olhos na América do Sul, lembrando que o processo de desmoralização das ditaduras militares teve um coadjuvante poderoso que foi a crise internacional da dívida externa. Isso explodiu em seguida como um fenômeno da hiperinflação no primeiro momento das democratizações e replicou na estabilização, que depois virou a prostração ao dogma neoliberal. Nos países mais afoitos, o processo transformou-se simplesmente em crise e instabilidade política absoluta. A Argentina, que fez absolutamente tudo que determinava a cartilha do bom moço internacional, está destruída como nação: desindustrializou-se, está fragilizada, com o maior desemprego da sua história, com a malha de seguridade social (que era modelar na América Latina) se desmanchando a cada dia. O povo argentino elegeu uma coalizão de forças de centro esquerda que recusou-se – e participei das discussões – a qualificar essa unidade, pelo mérito do que queria propor; e aceitou apenas a negação do que denunciava, como argumento catalisador da vitória, o que deveria ser uma lição importante.

Ganhamos a batalha moral da crítica no momento em que o real se desvalorizou na seqüência da eleição de 1998 – quando sua mitologia simbólica se desfez. O consenso já houvera se desfeito, porque a plataforma industrial nacional brasileira começou a experimentar conseqüências negativas; o próprio privilegiado sistema financeiro está começando a se assustar; apareceram problemas de infra-estrutura, que agora chegaram ao colapso da energia elétrica; enfim, o consenso se desfez e a batalha moral da crítica foi ganha pela oposição.

Porém, falta-nos a batalha intelectual do que representamos e o que devemos colocar no lugar do que aí está. Não temos traduzido isso, pelo menos de modo eficaz, e quando permitimos que todas as nossas energias derivem-se para essa agenda criminal da política.
Teríamos de ter um diagnóstico retrospectivo e prospectivo.

Primeiro qual é a solução do problema? As dispersões no diagnóstico são cruéis. Por exemplo, o Brasil é a décima quinta economia industrial do mundo; temos as mais sofisticadas plataformas siderúrgica; petroquímica; de telecomunicações; de energia; e de transporte; a melhor comunidade tecno-científica; a melhor burocracia (visto como fator estratégico de manejo de operação do Estado) do mundo em desenvolvimento. Tudo isso se encontra desmantelado, meio decadente, mas não duvidem que são fatores estratégicos que contam para o Brasil.

Breve histórico

Em 1945, após a II Guerra Mundial, este era um país rural, que produzia uma economia simplória de subsistência ou retirava as suas riquezas, “excedentes”, em monocultura de café e cana de açúcar. Essa era a economia brasileira – com o povo que morava 80% no campo. O Brasil foi buscar um projeto no estrangeiro – é assim que faz a elite brasileira – e apropriou-se de uma modelagem de economia política, o nacional-desenvolvimentismo. Propunha a industrialização como caminho. Como conseqüência prática, satanizou-se a agricultura, a economia rural. Os movimentos de 1930, 35, 32, 37 e 46 foram confrontos de uma burguesia urbana que nascia com essa visão liberal-democrática vitoriosa na guerra, em oposição a uma oligarquia rural que dominava – como ainda domina, desproporcionalmente – a nossa superestrutura representativa na política. Como fazer essa industrialização? Substituindo importações – o que exigia capitalistas que pagassem esse negócio.

Ora, os capitais privados não existiam e os poucos que existiam eram rurais, ariscos a novidades. Nasce daí a idéia de fazer o Estado brasileiro o empresário capitalista que não tínhamos, que assume, com capitais públicos, a tarefa de fazer indústrias e a infra-estrutura correlata. Com isso elege uma fração da burguesia com dinheiro público, renúncia fiscal, crédito não retornado; ou seja, instrumentos que se criaram de cessão de riquezas públicas a uma fração da burguesia privada. O Estado também não tinha o dinheiro e daí nasce a idéia de montar-se matricialmente um Estado deficitário.

Assim, industrialização substituindo importação; Estado empresário gastando mais do que arrecada, afundado numa dívida de longo prazo e barata; a economia protegida para essa indústria nascer sem contestação e com um esforço de capacitação tecnológica completa – disso deriva o nosso modelo universitário e boa parte de sua agonia e perda de identidade contemporânea.

Diagnóstico da crise

Por que esse modelo morreu? A resposta envolve três condições. Primeiro, a variável financeira: todo o modelo dependia de capital externo de longo prazo e barato; e isso não existe mais. Lá fora, na academia internacional, por exemplo, todo mundo tem como certo de que esta casa vai cair. Aqui, meio que está proibido de se discutir esse assunto, pelo menos nos mecanismos abertos de discussão e mesmo a nossa universidade não o discute com despudor. E trata-se apenas de descobrir se vamos impor um regulamento, se vamos impor um tributo internacional, se vamos, enfim, fazer restrições nacionais, transitórias; mas, todo mundo tem como certo de que não é possível mais conviver com uma matriz de desenvolvimento que depende, para respirar, de ciclos voláteis de capital. Se não, vamos ficar eternamente nessa enganação de que temos uma crise acidental acontecendo – um dia no México, um dia na Rússia, um dia na Coréia, um dia na Turquia, um dia na Argentina – e nós sempre pagando o pato aqui.

O modelo novo tem de ter clareza de que nosso ciclo esperado, desejado, de desenvolvimento acelerado tem de se fundar num nível alto de poupança doméstica; porque o nível de poupança de uma nação não é obra do acaso, é conseqüência de arranjos institucionais. No caso brasileiro, estamos com essa matriz, morta em 82/83 quando o país quebrou, e que passou a funcionar inflacionariamente de forma criminosa como uma espécie de tributo anti-social em cima do povo, sem consentimento do Congresso Nacional. O Plano Real apenas fecha a porta desse modo de financiar; é vendido para a população como um fim, em si mesmo, quando todos nós que o fizemos (eu participei) sabíamos que aquilo era sério, mas precário. E para usar por pouco prazo, porque as seqüelas do remédio seriam mortais se usadas continuadamente. Por isso, eu rompo em janeiro de 1995, vou embora, e passo a escrever publicamente quando farejei isso. Dessa dinâmica de dependência externa deriva o juro mais alto do mundo.

O modelo morreu também pelo componente tecnológico – a segunda razão de seu esgotamento. A defasagem tecnológica vem do seguinte fato: a tecnologia no passado se sucedia com grande paciência. Uma geração tecnológica passava décadas para outra sucedê-la. Então, tinha sentido um modelo que partia atrasado para tentar replicar as tecnologias já dominadas e, algum tempo depois, chegar à última geração tecnológica. Mas de uns tempos para cá os ciclos tecnológicos se sucedem com grande volatilidade. Estávamos com a economia fechada, fizemos de conta que não era conosco.

A terceira razão é uma inteligência muito delicada do papel da proteção do mercado interno. Com a proteção do passado, fizemos nascer a 15ª economia industrial do planeta. É verdade. Mas na seqüência, essa indústria cartelizou-se totalmente. De maneira que mais de 2/3 dos preços relativos da economia brasileira, no princípio da década de 90 eram formados por cartéis, que se reuniam para assaltar a sociedade e estabeleciam os seus preços. Os preços relativos tornaram-se muito mais caros que o sucedâneo internacional – porque a proteção sancionava isso; além da acomodação tecnológica.

Como resultado a inflação, a baixa competitividade, o desemprego de massa, a incapacidade de manter infra-estrutura, o super endividamento e o colapso.
Condicionantes do projeto futuro

O neoliberalismo já está denunciado e é meio comum entre nós a percepção de seu equívoco. Mas, a solução para a atual perversão não é uma volta ao passado, reexperimentar o nacional-desenvolvimentismo, porque ele não é mais praticável. Isso nos põe a pista do que seria projeto a futuro.

O motor do neoliberalismo não é algo que a gente possa pura e simplesmente resolver na satanização do termo – se você fizer uma pesquisa de opinião entre setores médios da sociedade brasileira e perguntar o que é neoliberalismo, as pessoas não sabem o que significa. Se a batalha fosse por adjetivo, pode se perguntar: “você é contra ou a favor do neoliberalismo?”, dá 80% contra. Mas nem o mais ortodoxo dos neoliberais neste país se reconhece como tal. Pergunte ao FH se ele se reconhece como neoliberal; ele diz para todo mundo categoricamente que não é e que quem diz isso dele é um neobobo. Porque o neoliberalismo, na verdade, é uma perversão absolutamente grave; mas não deixa de ser por isso um marco de economia política, que ganhou as eleições em toda a Europa Ocidental. É um marco da economia política extraordinariamente complexo na sua simplicidade; e entra na nossa alma – estou dizendo da nossa, de todos nós – não nos consultando a inteligência por três motores poderosos.

Seu motor um é a cultura do consumo. Não adianta fazer de conta que a cultura prevalente – embora isso seja de ser criticado – não seja a cultura do consumo. O que é isso na prática? É a predisposição das sociedades modernas de massa a encontrar felicidade no saciar da sua plataforma na sua expectativa de consumir. Se for assim essa população pede às organizações uma engenhoca que lhe garanta a alternativa de escolha do bom, bonito e barato. Se isso vem de ponta tecnológica, mega escala e financiamento dramaticamente barato (e se a nossa economia de micro escala, defasada tecnologicamente e estrangulada no financiamento), aqui está a grande sociedade se vulnerando pela cultura do consumo. Pedir à sociedade que não faça essa opção não é tarefa simples e não se resolve com a satanização de adjetivos.

Motor dois – a brutal assimetria da despoupança doméstica do país (cheio de apetites frustrados) e o excedente brutal de poupança no dito Primeiro Mundo. Concretamente, ano passado, no Brasil, sobrou 18% do PIB como taxa bruta de poupança. Se quisermos crescer apenas à suficiência para incorporar os ganhos de produtividade, que troca gente por máquina, e os jovens que chegam à razão de um milhão e 800 mil por ano ao mercado de trabalho, precisamos crescer 5,5% para começar a conversar. O estoque fica sem solução e vamos, pelo menos, empatar no fluxo. Para crescer 5,5% precisamos de uma taxa bruta de investimento que equivale à taxa equivalente de poupança de 33% do PIB. Nós temos 18%. Então, o Brasil está proibido de crescer; e estamos sendo iludidos, engambelados, de que vamos ser salvos da tragédia coletiva em que estamos mergulhados, pela poupança dos outros. Não há precedente empírico; nunca nenhuma nação do mundo cresceu com base na poupança dos outros. A poupança de risco, aquela que se associa por investimento, preferencialmente se reinveste na sua praça de origem – 93% da poupança de risco do mundo reinveste na sua praça de origem e apenas 7% migram. E os 7% migram na direção de países que têm nível de poupança doméstica alto. Porque a finança internacional funciona como o banco: se você tem um saldo médio alto, o gerente se lembra do seu aniversário, manda cesta de natal; se você está com cheque especial furado e ligar para ele, está em reunião. Como é que isso funciona como motor na nossa alma, da prática neoliberal? Está com despoupança, faltando energia, estrada esburacada, quer uma saúde melhor, uma educação melhor, melhorar centros universitários? Todos os apetites frustrados que temos por despoupança: “olha, aqui está sobrando dinheiro, quer um pedaço? Quero.” Vai aí, o manual do bom moço internacional levado pelo meu aditor, por nome FMI, que vai ver se você está disposto a cumprir tal manual. Qual é a cartilha? Desregulamentar, privatizar, liberalização comercial etc, e políticas sociais compensatórias. Está escrito no consenso de Washington: “políticas sociais compensatórias. Tipo: bolsa escola, renda mínima, etc”. Não é que não seja importante. Mas não vamos alimentar ilusão – porque este país vai cair na nossa mão para governar – que bolsa escola muda estruturalmente a sorte de uma nação como o Brasil, deste momento dialético adiante. Não muda. Claro que vai ajudar na macro mudança do futuro, mas não muda dialeticamente do ponto onde estão os problemas para o futuro.

Terceiro motor – e aqui, veja bem, é complicado porque, antes, nós construímos uma dívida, como tentei descrever, para fundar um Estado nacional de industrialização. É um projeto nacional de industrialização. Agora, este endividamento maluco provoca o déficit – ou seja, o rabo passou a balançar o cachorro e é absolutamente antinatural. E esse problema não se resolve com aquela prática da frase “Fora FHC, Fora FMI”, “Moratória Já.” Ela me faz bem ao fígado também, mas é bom lembrar que o problema é muito mais complexo. Por quê? Porque a poupança é capturada pelos bancos, que emprestam ao governo. Se o governo praticar essa frase, os bancos, como intermediários – e as pessoas nem conhecem, aquela letrinha dos contratos que a gente assina, quando abre conta, conta remunerada, renda fixa, caderneta de poupança – é o seguinte: o risco, mesmo na caderneta de poupança, é do cliente. O banco afasta a barriga, você esteriliza a poupança popular, lesa o crédito público, que é um patrimônio intangível, sabe-se lá por quantas épocas futuras. Em cima disso, essa gente conservadora reina dizendo “tem que pagar com casca e tudo, tem que fazer o manual do bom mocismo, se não vamos ser proscritos.” Isto é mentira! Há um terceiro ponto, nesta linha, que é reconhecer o crédito e conseguir uma dinâmica para alongar os prazos de vencimento dessa dívida, não compulsoriamente, mas negocialmente, compatibilizando.

Ciro Gomes é ex-governador do Ceará, ex-prefeito de Fortaleza, ex-ministro
da Fazenda. Este texto reproduz parte de sua intervenção no Seminário 2002:
um projeto novo para o Brasil – no dia 22/5/2001, em Brasília.

EDIÇÃO 62, AGO/SET/OUT, 2001, PÁGINAS 18, 19, 20, 21