O baiano Milton Santos – desaparecido no último dia 23 de junho, aos 75 anos – foi titular do Departamento de Geografia, professor emérito da Universidade de São Paulo e um dos pensadores brasileiros mais reconhecidos internacionalmente. Foi também professor da Universidade Federal da Bahia até 1964 e reintegrado em 1995. Ensinou em diversas universidades na Europa, na África, na América do Norte e do Sul. Recebeu o Prêmio Internacional de Geografia Vautrin Lud (o Nobel da Geografia) e é doutor honoris causa em 11 universidades de cinco países. Publicou mais de 40 livros, dentre eles A natureza do espaço; Técnica, espaço e tempo; Urbanização brasileira; Ensaio sobre a urbanização latino-americana; e O trabalho do geógrafo no Terceiro Mundo. Segundo o professor Aziz Ab’Saber (presidente de honra da SBPC), “Milton Santos foi um filósofo da geografia. Um intelectual comprometido com a sociedade e com os excluídos. Um cidadão que reuniu o conhecimento do mundo do seu tempo para pensar as necessidades do Brasil. Eu digo isso com sinceridade porque o conheci quando ele veio da Bahia como advogado e professor secundário de geografia. Tivemos uma longa convivência. Ele fez toda a sua trajetória dentro das Universidades. Primeiro, na PUC de Salvador, depois na Universidade Federal da Bahia e, depois de 1964, no exílio. Vivendo em condições sofridas, Milton se retirou para a França. Lá, ele teve a idéia de buscar um estudo seu sobre o centro urbano de Salvador e transformá-lo em uma tese de altíssimo nível. Aí começou a sua carreira internacional, recebendo o espaço que havia sido negado no Brasil. Uma vez, Milton nos disse que inspirava o seu comportamento no ideário de Jean-Paul Sartre: o intelectual tem de conservar toda a independência imaginável. Milton foi assim. A sua militância não era a da política partidária, mas no campo das idéias. Por isso, ele se diferenciou dos demais. Tinha uma energia permanente e se desdobrava em brigas do cotidiano pelas idéias originais.”

Publicamos a seguir trechos de entrevista realizada em 1998 na Universidade de São Paulo por uma equipe de Princípios. Seria interessante conversarmos sobre sua abordagem em torno do espaço – que é um dos elementos centrais da Geografia…

Milton Santos – E da Filosofia também.
…Da Filosofia também. E pensar como olhar o mundo através desse espaço – o que ele é, de como está constituído, se tem unidade ou se está, hoje, fragmentado.

Milton Santos – Vamos começar com o mundo, porque tudo começa por aí… Acho que é um equívoco as análises que falam com tanta ênfase em “Muro de Berlim”, “Fim do socialismo”… – isso é muito pouco. Acho que temos de tentar estudar a História se dando: como a História se dá? Assim, você tem várias entradas para ver como ela se dá mesmo.

Uma dessas entradas é reconhecer, de um lado, como a vida material se modifica e, de outro, como a vida política também se modifica, acho que são as duas coisas. Porque se o estudo vira o material isoladamente, caio no pessimismo e acabo não acreditando que há mudança possível. Se apenas estudo a vida política, corro o risco de cair no voluntarismo, numa análise puramente ideológica. Creio que haveria de se olhar as duas coisas juntas.

A chamada ‘globalização’ – um nome que é dado nesse fim de século – resulta, de um lado, da produção da Ciência e da Técnica, de uma certa quantidade de possibilidades novas para a história material do homem e, de outro, da produção de certas condições de realização política. As duas coisas juntas deram isso que se chama ‘globalização’.

Antes mesmo disso é que aparece o “Muro de Berlim”, que é apenas um episódio. Quando me fixo apenas no “Muro de Berlim”, estou fixado em uma coisa, num episódio; por conseguinte, estou matando a possibilidade de uma análise dinâmica. Porque está dito, Hegel primeiro, outros depois, que é o processo que permite a aproximação do que é verdadeiro. Então com o “Muro de Berlim” suprimo o processo e me fixo no objeto: o muro.

A mesma coisa quando a gente ouve repetirem: “O socialismo acabou!”… É um pouco isso. Na realidade, o que aconteceu é que as condições materiais criadas para vida no planeta e as condições políticas que se instalaram sobre isso, levaram àquilo que estava sendo uma tendência. E o fim da União Soviética não significou que o socialismo teve uma morte definitiva.

Sem contar com outro aspecto da análise histórica que é a diferença indispensável entre o chamado real e o chamado possível. Dizer que o socialismo acabou – aí se fala do socialismo real – é imaginar que a impossibilidade atual de ter países socialistas, exceto alguns que continuam sendo socialistas, significa que o socialismo deixou de ser uma possibilidade sobre a face da Terra. Acho que essa posição filosófica de princípio é central quando a gente quer discutir a produção da História. Porque estamos discutindo, no fundo, a produção da História, o futuro e não o presente. E aquela posição é muito pouco como matéria de discussão.

Como a vida humana adquire essa dinâmica que é um pouco elemento dessa globalização, em que se tem essa quantidade de informação?

Milton Santos – Queremos uma globalização, mas não esta – fundada em dois grandes esteios, ambos violentos. Um é a violência do dinheiro e o outro é a violência da informação, que apenas foram possíveis no fim do século XX. Não era possível a violência do dinheiro nos anos 80. A outra coisa é a violência da informação. Enquanto se fala em aldeia global, na realidade, somos cada vez menos informados. A informação é objeto de uma concentração extraordinária na mão de um pequeno número de empresas, que são as mesmas que também presidem a indústria do livro no mundo. Então você tem a produção universitária comandada por um pequeno número de empresas e a produção de notícias comandada pelas mesmas – nas duas, a produção das coisas é excludente.
Quero dizer com isso que hoje, no mundo, você pode produzir tudo, você escolhe o que produzir. Então se produzem algumas coisas, algumas relações, introduzem-se algumas idéias e você joga no mercado. Essas coisas, relações e idéias, o discurso único tem como base – essa produção excludente de idéias, de coisas e de relações. Isso tudo feito na base de um imaginário extremamente poderoso.
Acho que o capitalismo, ao longo deste século, criou e vive de criar necessidades e de multiplicar tal criação de necessidades. Com a relação última da Ciência e da Técnica a serviço de um mercado global, essa produção de necessidades foi acelerada. Há uma produção ilimitada de necessidades e não de respostas. Essas necessidades criadas são cada vez mais exclusivas, quer dizer, há uma escolha das necessidades que vão ser jogadas e, por conseguinte, de idéias também.

E que perspectivas podemos esperar – já que estamos falando sobre o mundo – dos próximos tempos em relação ao futuro do capitalismo?

Milton Santos – O Capitalismo não tem possibilidade de permanecer, porque estamos nos encaminhando para uma outra era histórica. Na era atual, a da globalização – que eu prefiro chamar de científico-técnica, porque ela é fundada na Ciência e na Técnica – a esperança dos grandes universalistas foi frustrada. Estamos começando a viver uma era que estou chamando de era demográfico-popular. As condições técnicas que estamos usando para engrossar o capitalismo não são adequadas a ele. Ao contrário, o progresso técnico que alcançamos nesse fim de século é adequado ao mundo onde as pessoas vão voltar a ser gente e a gente vai voltar a ser pessoa. Porém, não me pergunte em quantos anos isso vai se dar!
Essa era que estou vislumbrando vai começar dos lugares, primeiro, e vai se estender aos estados. Então haverá criações nacionais, formas de democracias e invenções próprias. Na medida em que o mundo não vá renegar o progresso técnico, isto é, que a intercomunicação entre os homens vai se tornar indispensável, isso já está se dando sob o capitalismo – ela será maior quando este capitalismo for enterrado. Então vamos encontrar alguns princípios gerais a estabelecer, mas a partir dos estados nacionais que vão se reconstituir.

O senhor está falando de contradição básica com relação a toda propaganda que se faz hoje do fim do Estado nacional. Hoje em dia se fala ‘globalização’ como se fosse uma lei natural que se impõe.

Milton Santos – É que as pessoas não estão trabalhando com a noção de História, estão trabalhando com a noção de Técnica, é diferente. Porque todo o discurso atual é da Técnica, o próprio vocabulário é da Técnica. Até mesmo nas relações interpessoais estamos sucumbindo ao império da Técnica e não da História e do homem. Estou me referindo ao mundo pleno de humanismo, que é o que vai se instalar.

A partir dessa base técnica?
Milton Santos – A partir da atual base técnica.

Então é possível diagnosticar que hoje se tem com esse movimento de globalização um movimento contrário a ele – que há no mundo um movimento dando indícios de uma saída?

Milton Santos – Creio que sim. Que você tem duas formas de trabalhar isso. Acho que você tem dois caminhos: um filosófico e outro empírico. O caminho empírico você tem através de como a Humanidade está se comportando em lugares e não no mundo como um todo. Primeiro, você tem um fator que nunca houve: uma mistura extraordinária de povos, de cores, raças, cheiros, gostos… Nunca houve isso tão intensamente na Humanidade e nessa escala. Todo mundo se mexe, todo mundo se move.

Segundo, essas pessoas, a Humanidade, se reúnem em poucos lugares. Se pegarmos a população do mundo e a população urbana, você vê que nos últimos 30, 40 anos se tem a Cidade, a aglomeração, que tem um papel extraordinário na produção da cultura e das idéias. Essa aglomeração está se dando sobre uma base de carências – como nunca existiram antes – e o conhecimento dessas carências. As populações sabem o que lhes falta por causa da própria mídia: a mídia promete, mas a população descobre que não vai ter nunca. Isso leva as pessoas a uma interpretação do mundo, em primeiro lugar, e seu lugar no mundo. Isso nunca houve antes. Quer dizer que a informação, enviesada como ela é, oferece a contradição às pessoas – uma dialética na própria existência humana.
Outra coisa importante é que as filosofias estão cedendo lugar no mundo inteiro. Você tem a invasão de outras filosofias: chega nos Estados Unidos, na Europa – já nem falo daqui – e vê a chegada de outras filosofias, vê o povo fazendo política, quer dizer, o povo não dá importância aos políticos e os trata como objetos. O povo trata o político como o político o trata, quer dizer: “Vocês querem que eu receba coisas, eu recebo”. Mas o povo em sua luta cotidiana cria uma outra visão. A Universidade não sabe disso, porque ela não se interessa pelos pobres, pois só se interessa pelas classes médias.
Então, isso acontece do ponto de vista empírico, essa Filosofia produzida a partir da vida cotidiana das pessoas. Tem uma coisa – que quem escreveu não foi um filósofo e por isso não é difundida – que nós chegamos a uma empirização da totalidade. Isso foi escrito por mim há mais de 10 anos. A totalidade se tornou empírica. Você tinha a totalidade dos filósofos, a totalidade do papel. A totalidade que temos, hoje, graças a essa expressão da Técnica, graças às multinacionais, graças a essa informação globalizada, se tornou empírica. Então posso entender a História, o que me dá o trabalho. Em qualquer que seja o lugar, o sujeito mais ignorante, sabe que o trabalho dele é valorizado no mundo e não no lugar.
Essa coisa que nós intelectuais temos de nos segurar para entender o mundo, esse novo entendimento do mundo é que vai permitir que a gente não seja apenas intuitivo, entende? Isso vai ser resultado do desprendimento da Filosofia das mãos dos filósofos. Cada um de nós, na sua área produz uma filosofia a partir da História que está se dando, a História concreta. Senão fico lá produzindo filosofias a partir de outros filósofos. Isso é que acho que permite vislumbrar a produção de um outro mundo. Isso é muito importante porque a Política se faz em torno de idéias, a Política não se faz apenas em torno do que é dito real, do que é coisa. Ela se faz a partir de idéias pioneiras que vão ganhando o terreno lentamente e que passam a ser um guia para as pessoas, porque as idéias centrais não são abraçadas por maiorias.

A literatura burguesa é esvaziada de toda a experiência e o homem passa a ser visto como um ser isolado dentro de uma fragmentação, num isolamento pleno. Não tem mais acesso a essa experiência total, à vida, ao mundo, ao capitalismo. Então, dentro dessa sua idéia há uma possibilidade nova de se recompor essa experiência?

Milton Santos – É um outro mundo, em outras condições, de se pegar o mundo da informação e torná-lo da comunicação. O povo seqüestra a informação e produz outra coisa, que não temos capacidade para apreender porque somos professores, universitários. Então nós queremos citar autores distantes e deixamos de ver o que é mais importante. As idéias que a mídia oferece o povo já começa a interpretar. O povo não tem acesso a jornais, mas tem acesso à rádio, televisão e reinterpreta tudo isso. Quer dizer, é uma reconstrução intelectual do mundo a partir da experiência.
A América Latina procura desenvolver um pensamento próprio…

Milton Santos – Esse aí conhece os meus fracos… (risos)
Nós intelectuais latino-americanos, falamos com os europeus. Quer dizer que, às vezes, descobrimos as coisas, mas nosso discurso é referido àqueles que nos dão prestígio. Isso reduz a força de nossas idéias porque as envolvemos num envelope estranho. Acho que, digamos, a precoce organização da vida intelectual na América Latina constitui um obstáculo à livre explosão de formas de interpretação do mundo e da própria América Latina em cada um de nossos países. Mas isso seria uma coisa mais longa para se falar…

A gente está acostumado a pensar o Brasil como um país ocidental…
Milton Santos – É, somos todos brancos!… (risos)

O que é o Brasil?
Milton Santos – É um país como qualquer outro e, também, um grande país, uma grande cultura. E nós, contraditoriamente, admitimos que só há grandes culturas no Norte.

Quais elementos têm o Brasil e a América Latina que serviriam de indícios para desenvolvermos uma alternativa a essa “globalização”?

Milton Santos – O que temos de forte na América Latina e no Brasil, em particular, é a idéia de futuro. E é justamente esse sentido de futuro que falta à Europa. Os europeus – os filósofos – falam muito em futuro, mas não crêem nele o bastante, porque é um continente que necessita ter medo todos os dias. Quando não tem medo, inventa. Há um século, a Europa é assim. E a América Latina é o contrário – é o continente do arrojo, do bandeirismo, da disposição de abrir novos caminhos. Creio que é por aí.

Outro dado importante é o fato de fazermos várias revoluções ao mesmo tempo, o que não é incorporado, ainda, pela epistemologia das Ciências Sociais. No caso da América Latina, fizemos ao mesmo tempo a revolução demográfica, a revolução urbana, a revolução industrial, a revolução sexual. Todas concomitantemente. E os parâmetros que utilizamos são os europeus, onde tudo é devagar, tudo é lento e onde, por isso mesmo, as organizações têm um peso forte, porque elas são capazes de comandar de alguma forma a evolução. No nosso caso, as organizações são menos capazes desse comando da evolução – exatamente por essa soma, essa superposição de revoluções na vida social.
Como a organização é incapaz de comandar pacificamente, pelo consenso, então você tem sempre a brutalidade no governo. No caso do Brasil foi a brutalidade do regime militar e, agora, a brutalidade deste regime civil. Quer dizer, temos uma brutalidade sucedendo a outra. A brutalidade é sempre presente, porque não se leva em conta essa dinâmica da sociedade e não se busca uma forma de organização da vida política que acompanhe tal dinâmica social.

Fazemos várias revoluções, mas não conseguimos completar uma revolução democrática. Temos o passado convivendo (e até atrapalhando) com os que querem o futuro.
Milton Santos – Creio que sim. E isso tem a ver com o caráter das nossas classes médias. Apenas quem quer as mudanças são os pobres, pois a classe média quer se manter com seus privilégios. Os direitos não interessam à classe média – a classe média não pede direitos, porque ela prefere ir pelo canal dos privilégios.

É difícil não perceber, dentro dessas contradições sociais, uma contradição racial. A questão do negro é uma questão de raça ou de classe?

Milton Santos – São as duas coisas. Eu tendo a pensar que é mais uma questão de raça mesmo…

O Brasil é um país racista, não?

Milton Santos – É, também é isso. Mas além de ser racista, a sociedade se organizou na base do escravismo e de sua memória. A idéia do outro como uma coisa, que era uma idéia oficial, continua vigente no Brasil atual, onde os negros ainda são coisas. Não importa se eles tenham uma melhoria financeira, econômica ou cultural.

E a relação dos intelectuais brasileiros com um projeto nacional? Milton Santos – Vou dizer uma coisa que é autobiográfica, mas na minha idade a gente pode se permitir algumas considerações. O programa de televisão (Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo) que me deu evidência no país – e que acabou impedindo as pessoas de lerem o que escrevi (as pessoas me ouviram e estão contentes apenas com isso) – estimulou muitas pessoas a me dizerem que tenho coragem. Isso é horrível porque se o intelectual não tiver coragem… A coragem deve fazer parte de seu cotidiano! Não pode haver intelectual que tem coragem e intelectual que não tem. O que é ter coragem? É pensar? É dizer o que pensa? Se você não tiver quem se disponha a pensar, acreditando no que pensou difundir, não se tem a possibilidade de construção de um projeto nacional. Porque não haverá projeto nacional sem um certo número (não precisa muitos) de intelectuais oferecendo o resultado de sua investigação e de seu trabalho. Esse preconceito que temos contra os intelectuais teria de ser diminuído, afastado, porque no Brasil há um grande preconceito contra os intelectuais e muita gente tem vergonha de dizer que é intelectual por esse motivo.

Imaginar que a solução está no chamado “povo”, acho que é uma simplificação. Porque os homens do povo sentem melhor do que nós e somos quase insensíveis, exceto quando somos empurrados pelo povo. Mas os homens do povo não têm como organizar o pensamento num tom complexo. Essa é tarefa nossa, dos que fomos treinados para isso, e a gente tem medo de dizer isso. É uma forma de populismo barato de recusar nosso desfio – que tem de ser feito com coragem, com disposição e com muito trabalho.

Hoje ninguém discute muito porque é considerado grosseiro dizer-se que o outro tem uma idéia da qual você não concorda. A coisa virou tão consensual dentro da academia, tão corporativo, que você só quer trocar gentilezas. Creio que no mundo atual o papel do intelectual é extraordinário. Num país como o Brasil ele pode ter um grande papel. É preciso que os partidos, os sindicatos, as associações populares não tirem a nata do que os intelectuais podem oferecer, que não tornem aguadas as suas mensagens. O intelectual tem sido usado apenas quando é interessante.

Durante certo tempo se falou em identidade cultural e que temos de construir a Identidade do país. O Brasil é um país complexo, continental, com características culturais particulares muito diferenciadas. O que o senhor acha da possibilidade de uma construção de identidade nacional?

Milton Santos – Por que não? Na verdade, se ela não está pronta, está a caminho. É que a gente talvez não considere Gilberto Gil, Milton Nascimento, Chico Buarque, Fafá de Belém… como intelectuais – intelectuais são só os professores da USP! (risos). Então a gente fica um pouco desiludido com o que vê dos professores universitários. Mas no Brasil inteiro se canta, se repete: esses boiadeiros, esses meninos do rap… que são intérpretes da sociedade brasileira no seu presente e futuro. Acho que é isso que faz um intelectual: essa capacidade de olhar para o futuro – e que os grandes compositores têm.

Talvez isso seja uma expressão do que está acontecendo na base da sociedade brasileira, em que há constante movimentação?

Milton Santos – É enorme e é uma beleza, não é? Aquilo que fizemos em São Paulo: nós, os baianos, viemos para cá para fazer disso uma Cidade – porque ainda era apenas um aglomerado de gente. A chegada dos baianos ofereceu uma linguagem aos paulistas e São Paulo se tornou uma metrópole, principalmente, a partir daí. É a nova fase de São Paulo, digamos, a partir dessa modificação cultural feita pelos baianos e que foi fundamental. Mais adiante os paulistas vão começar a gostar de monumentos, vão construir uma cidade bonita, olhando para o futuro – o que não foi possível ainda.

E a nossa ocidentalização?

Milton Santos – Há a questão de poder envolvida porque, para se ocidentalizar você tem de poder fazê-lo. Nem todo mundo pode se ocidentalizar completamente, porque precisa ter os meios financeiros ou culturais para tanto. A salvação do Brasil é seu grande número de pobres. O fato de que a gente não pôde fazer desse um país onde todo mundo fosse classe média é que permite pensar que a solução ainda é possível.

Você conhece Sartre, tem uma idéia que ele chama de contra-finalidade. As idéias, objetos e relações que você introjeta fazem parte de seu “eu” e comandam sua vida. Os pobres introjetam menos que os ricos e a classe média. Todos estamos subordinados a essa influência do consumo, mas não estamos igualmente prisioneiros da contra-finalidade. Porque a vida é uma contradição – a vida social, a individual… Como é que você dá um passo à frente ou para trás com essa contradição? No Brasil, a classe média foi ajudada a dar o passo para trás politicamente. Você tem então a combinação entre os partidos organizados e a classe média, que é uma coisa só – a mesma lógica. Os pobres têm lampejos em que descobrem o mundo e geram aquela rebelião provocada pela necessidade diária de encarar a sobrevivência, e que são mal representados pelos partidos.

EDIÇÃO 62, AGO/SET/OUT, 2001, PÁGINAS 76, 77, 78, 79, 80